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2.2.1 “A CORRENTADO COMO ANIMAL , VESTIDO COMO MULHER ,

Em dezembro de 1988, sua coluna social apresentava uma lista do que estava “in” ou “out”, dentro ou fora de moda

2.2.1 “A CORRENTADO COMO ANIMAL , VESTIDO COMO MULHER ,

TRATADO COMO HOMEM, VIVENDO COMO PRESO E SEM

ESPERANÇAS”: A TRAVESTI SILVANA

Madrugada de 04 de novembro de 1986, esquina entre as ruas Tiradentes e Hercílio Luz, Florianópolis. A troca de ofensas morais entre três pessoas logo se tornou luta corporal. Cansada de apanhar e ser humilhada em público por Cárida Cleide e buscando ajudar sua amiga Malvina, esta noite a vítima das agressões, Silvana apanhou do chão um pedaço de paralelepípedo de aproximadamente 3 quilos e desferiu um golpe na cabeça de Cárida, que se desequilibrou e caiu. Aproveitando a desvantagem da rival e temendo uma possível vingança, Silvana continuou a golpeá-la até seu desfalecimento. Um soldado da Polícia Militar, que fazia a guarda de um prédio da Rua Tiradentes e assistia a tudo desde o início, ligou para a polícia, que logo prendeu Malvina e Silvana e tentou prestar os primeiros socorros à vítima, que não resistiu e morreu minutos depois.

Na manhã seguinte, o assassinato ganhou destaque na seção policial do DC, em matéria ilustrada por fotos das protagonistas do episódio e de um pedaço de pedra.288 Curiosa e paradoxalmente, a contracapa do jornal contradizia seu texto interno. Intituladas como “os assassinos da madrugada”, logo abaixo das imagens de Silvana e Malvina era informado que elas teriam matado um “amigo” a pedradas.289 De forma insidiosa, o periódico deliberadamente colocara em sua contracapa o que se chama em jornalismo de “título quente”,290 aquele que exagera uma notícia para vender mais jornais, que estimula a leitura, mas engana leitoras e leitores. Em outras palavras, mentira. Nada indicava que houvesse qualquer vestígio de reciprocidade afetiva entre a travesti assassinada e as outras duas envolvidas no crime, apesar do texto.

Após o homicídio de Cárida Cleide, Silvana passou 4 meses na Cadeia Pública de Florianópolis. Foi posta em liberdade para aguardar o julgamento, mas em julho de 1987 seria presa novamente, desta vez acusada de assaltar um mecânico.291 Assassina e assaltante, a criminosa

288 Briga entre travestis termina em homicídio. Diário Catarinense, Florianópolis, 05 nov.

1986, p. 47.

289 Travestis matam amigo a pedradas em Florianópolis. Diário Catarinense, Florianópolis, 05

nov. 1986, p. 48.

290 Para tal, ver: NOBLAT, op. cit., 2010, p. 117.

foi encaminhada ao presídio. Sua história e seu nome seriam relegados ao silêncio, mas não por muito tempo.

Muito magra, pálida, apresentando debilidade física e problemas pulmonares, em março de 1988 Silvana foi levada da Cadeia Pública, onde dividia cela com mais 3 sentenciados, para o Hospital Nereu Ramos. Segundo a notícia, não era sua primeira internação, mas o interesse em trazer Silvana novamente para o espaço redacional era uma novidade em sua história: a possibilidade de ela ter o vírus HIV, como indicava o título da notícia, Preso da Cadeia Pública com suspeita de

AIDS.292

Dois dias depois, a história de Silvana saiu das páginas policiais e foi para uma das primeiras seções do jornal. Ela estava algemada à cama, isolada e proibida de receber visitas no Hospital, e suspeitava-se ter ela contraído o vírus na cadeia. O resultado de seu exame, no entanto, seria divulgado apenas para ela, afirmou o periódico.293 Não foi o que aconteceu: em 10 de março de 1988 a terceira página anunciava

Confirmado: preso está com AIDS. Em tom alarmante, a notícia

informava que o diretor da cadeia determinara a coleta de sangue em massa, ou seja, todos os 169 detentos da Cadeia Pública realizariam o teste para detectar a presença ou não do vírus HIV.294

Lentamente, os posicionamentos de sujeito de Silvana se transfiguravam. Em 11 de março de 1988, a capa do jornal prometia

Revelações do presidiário aidético.295 Silvana passou a ser chamada de travesti com AIDS ou o aidético, e a reportagem afirmava que ela temia retornar ao presídio e ser assassinada por outros presidiários, pois havia mantido relações sexuais com, no mínimo, 11 outros detentos, que segundo ela a ameaçaram com barras de ferro para consumar o ato.

Em determinado aspecto, tal reportagem inovou a produção discursiva do jornal a respeito das travestis. Silvana seria a primeira ainda viva a ter partes de sua história pessoal divulgadas. O texto informava que ela saíra de casa aos 11 anos para seguir o que foi chamado à época de “carreira” de travesti. Tinha oito irmãos e não falava sobre o pai, que a abandonara. Filho mais calmo, segundo sua mãe Noêmia, não escondia que gostava de homens desde criança. Estudara até a 8ª série em uma escola estadual de Picadas do Sul e

292 Preso da Cadeia Pública com suspeita de AIDS. Diário Catarinense, Florianópolis, 03 mar.

1988, p. 38.

293 Polícia isola detento com suspeita de AIDS. Diário Catarinense, Florianópolis, 05 mar.

1988, p. 09.

294 Confirmado: preso está com AIDS. Diário Catarinense, Florianópolis, 10 mar. 1988, p. 03. 295 Revelações do presidiário aidético. Diário Catarinense, Florianópolis, 10 mar. 1988, p. 01.

recebera o nome Silvana de outras travestis aos 13 anos, em uma rua de Porto Alegre, cidade para onde fugira. Vivera também em São Paulo, Curitiba e Joinville. Em Florianópolis, seus locais de trabalho eram a Avenida Hercílio Luz e a Praça XV de Novembro. Segundo a reportagem, antes de ser presa Silvana bebia, fumava, usava drogas, perdia inúmeras noites de sono e tinha certeza que contraíra o vírus quando estava em liberdade. Sentia-se rejeitada e queria ir para a casa de uma irmã ou da mãe ao sair do hospital. Nesta data, o jornal informava que Silvana havia sido presa novamente por ter sido encontrada bêbada pela Polícia depois das 22 horas, e não mais por assalto, como anteriormente noticiado e perdera a conta do número de homens com quem transara. Seu único arrependimento era ter matado Cleide.296

Desregramentos, culpa, arrependimento, confissões de erros cometidos. A descontrolada, assassina e ladra aos poucos passava para os posicionamentos de sujeito de doente, arrependida. De criminosa, Silvana começava a transitar e se tornar vítima. Um dia depois, novas imagens passaram a ser divulgadas. Em uma foto, ela sorria de uma janela do Hospital; outra a mostrava sentada no jardim, rodeada de flores, enquanto o texto informava que, por falta de estrutura, estava suspensa a coleta de sangue em massa no presídio.297 Em 18 de março de 1988, o jornal noticiou que presos e funcionárias/os da Cadeia Pública teriam aulas sobre AIDS e aprenderiam a lidar com Silvana, que retornaria para lá.298

Um mês depois, Silvana voltou para as páginas policiais. Em foto com a legenda Silvana transmitiu vírus, a notícia discorria sobre um detento que confessava ter transado com ela, mas cujo primeiro resultado do exame para detecção do HIV dera negativo. Segundo o jornal, as maiores especulações giravam em torno do número de presos com que Silvana transara nos nove meses em que estivera presa.299 Nada foi citado sobre sua alegação de ter sido violentamente forçada, estuprada por alguns presidiários.

Sem ao menos consultar as próprias notícias já divulgadas sobre o caso, em junho de 1988 o jornal afirmava que tanto Silvana quanto Malvina teriam cometido o assassinato de Cárida, desferindo ambas

296 ROCHA, Silvana. Travesti com AIDS teme ser morto. Diário Catarinense, Florianópolis,

11 mar. 1988, p. 09.

297 Só fará teste preso que quiser. Diário Catarinense, Florianópolis, 12 mar. 1988, p. 03. 298 Presos aprendem a lidar com AIDS. Diário Catarinense, Florianópolis, 18 mar. 1988, p.

08.

299 Mais um presidiário pode estar com vírus da AIDS. Diário Catarinense, Florianópolis, 11

golpes com uma pedra de 6 quilos, em uma briga causada por um ponto de prostituição na Rua Tiradentes, e que os exames de Silvana para detectar o vírus da AIDS teriam dado negativos. Silvana voltara para o posicionamento de sujeito que a destacava como fria assassina e deixava de ser doente. Talvez a única informação coerente fornecida nesta data tenha sido a de que os julgamentos “dos travestis homicidas”, como o jornal as intitulou então, haviam sido adiados.300

No final de novembro de 1988, Malvina foi julgada e absolvida por omissão de socorro. Ao noticiar o fato, o jornal atribuiu o início da briga que culminou na morte de Cárida à Silvana.301 Malvina reapareceria em pequenas notícias sobre desentendimentos e agressões, como a intitulada Com razão, de setembro de 1989, que textualizava a aversão, a repugnância causada pelo contato com o sangue travesti em policiais:

Com a onda de AIDS, policiais do 8º DP, que atendem a ocorrências na Avenida Ivo Silveira – ponto disputado pelos travestis, um dos grupos de risco da doença -, em Florianópolis, reclamam da falta de material adequado, principalmente luvas. “Como é que a gente vai botar a mão num travesti sangrando, como aconteceu com a Malvina?”, reclamou um tira.302

Poucos dias depois do julgamento de Malvina, em dezembro de 1988, o periódico publicou uma reportagem de página inteira sobre as agruras de Silvana na prisão. Ela voltara a ter AIDS, mas desta vez certamente contraíra por participar de reuniões com várias pessoas para aplicar cocaína.

Beneficiada com prisão domiciliar antes mesmo de seu julgamento por seu precário estado de saúde, segundo o jornal uma regalia até então inédita na justiça brasileira conquistada pelos esforços do advogado Batista Luzardo, mas rejeitada pela família devido às precárias condições em que viviam, como inexistência de banheiro na casa de quatro ambientes onde moravam sua mãe e algumas irmãs e irmãos, a reportagem afirmava que a debilitada e solitária Silvana

300 Adiado o julgamento dos dois travestis homicidas. Diário Catarinense, Florianópolis, 29

jun. 1988, p. 37.

301

Travesti julgado por crime foi absolvido. Diário Catarinense, Florianópolis, 01 dez. 1988, p. 37.

sonhava apenas em tomar um remédio para crescer o peito e morrer como mulher.303

Acolhida por uma irmã que morava no Morro da Caixa, Florianópolis, após um desentendimento Silvana iria morar na Rua Paraguai, Bairro Jardim Atlântico. De volta à prostituição na Avenida Ivo Silveira, parte continental de Florianópolis, entre idas ao hospital e brigas familiares que a levaram novamente ao espaço redacional em pequenas notícias, Silvana ganharia destaque em ampla matéria pela última vez em outubro de 1989, ao ser presa por tentar furtar cosméticos e alimentos em um minimercado do bairro em que morava. Fotografada na delegacia para onde foi levada, ela encontrava-se ao chão, mãos e pés algemados e presa a uma corrente, apresentando posições e expressões faciais que sugeriam desespero, dor. De volta ao presídio, escreveu um bilhete para o Diretor da Cadeia Pública, implorando por sua remoção, fotografado e reproduzido pelo jornal: “[...] Não estou me sentindo bem aqui [...] não é ambiente para mim, pois sou um travesti e o sr. sabe dos meus problemas [...]”. Abjeta, animalizada, símbolo da violação das leis da sociedade e da natureza, personificação do impossível e do proibido,304 a legenda de uma das fotos reproduzidas assim definia sua situação: “Acorrentado como animal, vestido como mulher, tratado como homem, vivendo como preso e sem esperanças”.305

O bilhete escrito por Silvana e publicado pelo jornal, no entanto, demonstra a apropriação não apenas de sua identificação travesti, como também dos problemas que enfrentava, provável referência a seu debilitado estado de saúde, para utilizações em favor próprio, ou seja, a adesão de Silvana aos posicionamentos em que era colocada e a utilização das interpelações injuriosas como foco produtivo de negociação, resistência, reação.306 Ela apareceria novamente em pequenas notícias, como uma de dezembro de 1989, que informava não ter sido aceita em qualquer Hospital da cidade após uma crise nervosa em que quebrara vidros de uma sala do Grupo de Apoio e Prevenção à AIDS, GAPA.307

Em março de 1992, Silvana foi julgada e condenada a 5 anos e 4 meses por homicídio privilegiado – seu advogado convenceu o júri

303 CASARA, Marques. Drama de um travesti confinado na cadeia. Diário Catarinense,

Florianópolis, 04 dez. 1988, p. 45.

304 FOUCAULT, op. cit., 2010, p. 47. 305

A morte ronda a Cadeia Pública. Diário Catarinense, Florianópolis, 08 out. 1989, p. 61.

306 Para tal, ver: FOUCAULT, Michel. op. cit., 2007, p. 112.

que matara sob domínio de violenta emoção.308 Como já cumprira 4 anos e 6 meses entre o presídio e as internações hospitalares, passaria o restante da pena em regime aberto. Saiu do julgamento sem querer dar entrevistas, abraçada a um companheiro.309 Foi a primeira vez que um portador do vírus HIV enfrentou um júri, segundo o jornal, que ao mesmo tempo proferiu sua própria sentença para o que nomeou como o “homossexual infectado”, o “aidético”: Silvana estaria “em fase terminal”.310

O conjunto de informações policiais, jurídicas, médicas, julgamentos morais e certas doses de criatividade e imprecisão, amalgamado por efeitos de verdade e poder, transformaram Silvana em personagem para a espetacularização sensacionalista do discurso jornalístico,311 proporcionando o fascínio pelo extraordinário, o vulgar e corriqueiro, a distância entre leitura e realidade. Tragédia, choque, atração, intensificação do desvio, da aberração, do oculto, mas ao mesmo tempo próximo, obsceno, proibido. Silvana tornou-se, nas páginas do DC, a travesti exemplar – penalizada por seus próprios atos e por seu desafio às normatizações de gênero, condenada à aniquilação em consequência deles. Sexo e morte personificados.

Enquanto a história de Silvana se desenrolava, muitas foram as notícias que enredaram as travestis em tramas de roubos, escândalos, uso de drogas, mortes brutais: Bianca, procurada pela Polícia de Joinville por supostamente invadir uma residência para furtar;312 Valdir, sem nome social divulgado, enforcou-se na casa onde trabalhava como doméstica por descobrir ser portadora do vírus HIV;313 Priscilla, sem documentos, idade aproximada de 22 anos, deixada na porta de um Hospital supostamente depois de sofrer um acidente automobilístico, morta por traumatismo craniano após dois meses de internação sem receber qualquer visita e enterrada como indigente, sem identificação,

308

As leis penais brasileiras preveem a redução de um sexto a um terço da pena em casos de homicídio, caso seja comprovado que “o agente atuou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima”, como parece ter sido alegado por Batista Luzardo no julgamento de Silvana. Para tal, ver: GRACO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial, volume II: introdução à teoria geral da parte especial: crimes contra a pessoa. Niterói: Impetus, 2011, p. 150.

309 Homossexual cumpre pena em casa. Diário Catarinense, Florianópolis, 21 mar. 1992, p.

25.

310 Acusado de homicídio vai a julgamento hoje. Diário Catarinense, Florianópolis, 20 mar.

1992, p. 25.

311 Para tal, ver: PEDROSO, op. cit., 2001, p. 52. 312

Travesti procurado. Diário Catarinense, Florianópolis, 08 ago. 1987, p. 39.

313 Travesti que era portador do vírus encontrado morto. Diário Catarinense, Florianópolis, 08

em 1988.314 Sua foto em um leito do hospital que acompanhou a notícia sobre sua morte seria utilizada de forma ilustrativa pelo jornal em 1992, em notícia sobre a fabricação de um similar do AZT, medicamento para tratamento da AIDS, no Brasil. Perversa e ironicamente, acima da foto estava escrito “Esperança”;315

Neide, natural de São Paulo, 20 anos, morta por um tiro na virilha na frente de uma boate, onde outra travesti também levou tiros, mas sobreviveu;316 Sheron, paranaense de 22 anos, companheira fixa de um homem casado cuja esposa tentou baleá-la;317 Dorotéia, 24 anos, encontrada em avançado estado de putrefação num matagal às margens da BR-101, próximo ao Shopping Itaguaçu, morta por violenta pancada no lado direito do rosto, possivelmente “desovada” lá após o crime.318 Os casos são inúmeros e estes, apenas alguns exemplos. Depreciadas pelos meios de comunicação, apresentadas ora como piada, ora como perigosa aberração, prostitutas, doentes, praticantes ou vítimas de crimes, o termo travesti vinculou-se semanticamente no discurso midiático ao perigo, à criminalidade, a drogas, doenças e prostituição, e demoraria até novos posicionamentos emergirem dentro do periódico. Em fins dos anos 1980, no entanto, o foco sensacionalista do DC recairia sobre outro crime envolvendo o desvio.

314 Travesti aidético morre abandonado. Diário Catarinense, Florianópolis, 08 jul. 1988, p. 36. 315 AIDS – Laboratório brasileiro vai fabricar similar do AZT. Diário Catarinense,

Florianópolis, 14 jun. 1992, p. 16.

316 Na boate Chega Mais, a morte do travesti. Diário Catarinense, Florianópolis, 04 jan. 1989,

p. 36.

317

A era da prostituição em Lages. Diário Catarinense, Florianópolis, 05 mar. 1989, p. 05.

318 Travesti morto a pancada é mistério. Diário Catarinense, Florianópolis, 27 dez. 1989, p.

2.3 O DESVIANTE DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO: DO SEXO ÀS