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As sexualidades desviantes nas páginas do jornal Diário Catarinense (1986-2006)

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AS SEXUALIDADES DESVIANTES NAS PÁGINAS DO JORNAL DIÁRIO CATARINENSE (1986 – 2006)

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AS SEXUALIDADES DESVIANTES NAS PÁGINAS DO JORNAL DIÁRIO CATARINENSE (1986 – 2006)

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em História Cultural ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina, sob orientação do Prof. Dr. Rogério Luiz de Souza e coorientação da Profa. Dra. Joana Maria Pedro.

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- Mas, para levar adiante a nossa investigação,

gostaríamos de saber o que aconteceu

efetivamente?

- O que aconteceu efetivamente? - É.

- Então, querem que eu conte outra história? - Hum... Não. Gostaríamos de saber o que aconteceu efetivamente.

- Contar alguma coisa não cria sempre uma história?

- Hum... Em inglês, talvez. Em japonês, uma história teria sempre um elemento de invenção. Não é o que queremos. Queremos que o senhor “se atenha aos fatos”, como se diz.

- Mas contar alguma coisa, usando as palavras, seja em inglês ou em japonês, já não é de certa forma uma invenção? O simples fato de olhar para esse mundo já não é de certa forma uma invenção?

- Hum...

- O mundo não é apenas do jeito que ele é. É também como nós o compreendemos, não é mesmo? E, ao compreender alguma coisa, trazemos alguma contribuição nossa, não é mesmo? Isso não faz da vida uma história?

As Aventuras de Pi Yann Martel

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A todas/os as/os militantes, vivas/os ou não, que lutaram por anos a fio por mais segurança, igualdade, justiça. Ao sangue derramado de dezenas de anônimas/os, muitas/os das/os quais essa pesquisa, infelizmente, sequer permitiu captar fragmentos de suas vidas. Dedico a todas/os vocês esse trabalho.

Pertencentes aos laços sanguíneos ou àqueles que unem nossa mente/coração a alguém, preciosas são as pessoas a quem chamo Família. Obrigado pelo apoio, os pensamentos positivos, o ouvido nas horas difíceis, a paciência de me escutar dizer “acho que não passei, acho que fui bem mal”. Obrigado por estarem ao meu lado, mesmo vocês que se encontram a milhares de quilômetros de distância. Quem seria eu sem vocês e suas certezas de que eu teria sucesso em cada etapa, quando eu mesmo duvidava?

A digitalização da pesquisa aqui apresentada foi facilitada pela simpatia, o bom trabalho, a eficiência de funcionárias/os da Biblioteca Pública do Estado, que chegaram a decorar que mês/ano do jornal eu precisaria aquela manhã ou tarde quando nem eu lembrava e recorria a meu caderno de anotações, vitimado pela fadiga de folhear centenas de páginas diariamente. Em especial Evandro, a quem devo agradáveis minutos de conversa entre as 8 horas diárias de pesquisa, durante meses que pareciam não acabar.

Fazer Mestrado requer atenção e leituras constantes, diárias, e sem professoras/es competentes, penso que seria impossível acompanhar o ritmo. Tive o prazer de ser aluno de professoras que admirava desde que as li durante a Graduação, mas que nunca havia conhecido pessoalmente, como Cristina e Joana, e tive a sorte de conhecer a competência de Juracy, Vanderlei, Louise, em disciplinas optativas ou em razão do estágio de Pós-Doutorado, como o caso do professor Vanderlei. Obrigado a cada uma e cada um, cujas discussões e sugestões foram adaptadas e passaram a fazer parte do texto a seguir. Além das muitas leituras feitas para suas disciplinas, aqui incorporadas, agradeço também a experiência de Docência ao lado da professora Cris e da mestranda Fran, e a possibilidade de participar da edição de uma Revista Eletrônica.

Um texto inicialmente tímido, já que não tinha certezas sobre o que as fontes me possibilitariam escrever até tê-las em conjunto, meses após iniciar o curso. Um projeto de pesquisa que se modificou e tomou a forma de Dissertação sob a orientação do professor Rogério, sempre

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fundamentados em teorias, e a coorientação da professora Joana, sempre apaziguadora, apoiando e respeitando as escolhas e a forma de escrita que adoto, apontando inclusive erros de digitação ou termos que eu deveria modificar. Obrigado, professor, por apostar nesse projeto. Obrigado, professora, pelos muitos elogios que sempre me deixaram vermelho e sem palavras, por incentivar e acompanhar a lápis cada linha escrita e ajudar para que dele se desdobrasse um projeto de Doutorado.

Colegas queridas/os, Camila, Elias, Maurício, vocês fazem e farão falta! Voltem, mais inteligentes que nunca, seus extremamente capazes. Obrigado pelas ajudas, correções e compartilhamentos de textos, dicas de livros, parcerias em apresentações e trabalhos e conversas-calmante. Precisamos marcar que optativas faremos juntas/os! De minha instituição de proveniência, UDESC, muitas/os são as/os docentes que me servem de exemplos de dedicação e competência. Obrigado pela torcida, pelos parabéns dados em redes sociais e corredores da Universidade. E pelas dicas preciosas entre cigarros, não é, professora Cláudia? João, exemplo de rapaz que promove a mudança em suas andanças por ruas e alamedas ainda nem nomeadas, a quem tento convencer que devemos ir para escolas e universidades para dar aula e tentar mudar o mundo. Ainda sou um desses (iludidos?). E você, uma aula de vida. Enquanto você luta, escrevo sobre quem lutou. Vamos sincronizar! Bruno (Brunis), penso que o tema que escolhemos para escrita em qualquer área, mas especialmente nas Humanas, deve sempre buscar ser orientado para o bem, para trazer para a Academia, para o Discurso, sujeitas/os que diariamente fazem História, mas nunca são mencionadas/os pela História ou, quando o são, estão dentro de saladas de letras, categorias homogeneizantes, ou, pior, enquadradas/os em imagens bem pouco lisonjeiras. Que tal desconstruí-las e, talvez, montar outras, mais positivas? Só uma opinião pessoal que aqui compartilho, pois espero um trabalho engajado no final da sua Graduação.

Por fim, gostaria de agradecer ao CNPq, que financiou essa pesquisa de 2012 até agosto de 2013, quando mudei para a CAPES. Uma mudança que não serviu ao propósito a que se destinava, mas que foi feita rapidamente pelo técnico administrativo em educação Thiago e a coordenadora da Pós e professora Eunice, que sempre me receberam muito bem e procuraram tirar as dúvidas e problemas que levei comigo todas as vezes que lá fui. Muito obrigado.

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RESUMO... 13 ABSTRACT ... 15 INTRODUÇÃO ... 17

ERA UMA VEZ: A TÍTULO DE APRESENTAÇÃO POLÍTICA E PESSOAL

... 17

NORMATIZANDO O TEXTO ACADÊMICO: AS CATEGORIAS DE

ANÁLISE ... 32

O JORNAL E A PROPOSTA HISTORIOGRÁFICA ... 40

PREÂMBULO ... 47

CAPÍTULO 1 - APONTAMENTOS SOBRE A ARTE

INFORMATIVADIÁRIA ... 52

1.1–FAMILIARIDADES E EXPANSÕES... 52

1.2–A DIDATICIDADE DO DISCURSO JORNALÍSTICO ... 75

2.1-LIBERDADE ATRÁS DAS PORTAS, DEBOCHE CARNAVALESCO99

2.4–A CIDADE EM CRISE E A LUCRATIVA MARGINALIDADE ... 147

2.5–O SEXO MERCENÁRIO, OS AMORES PERIGOSOS ... 154

2.8 – MULTIPLICAÇÃO DOS DISCURSOS DE RESISTÊNCIA, A

MOBILIZAÇÃO NA GRANDE FLORIANÓPOLIS E AS AÇÕES DE

CLÔ ... 173 INTERLÚDIO ... 187 CAPÍTULO3-POSSÍVEISOLHARESSOBREUMAPARADA 214

3.1-PARADA,VERÃO,PRECONCEITOS E LEIS ... 214

3.2-FLORIANÓPOLIS: O NOVO PARAÍSO GAY DO BRASIL ... 226

3.3 - A I PARADA DA DIVERSIDADE – ORGULHO GLBTS:

FLORIANÓPOLIS, A CAPITAL GAY DO BRASIL ... 233

* VIOLÊNCIAS, HOMICÍDIOS E CRIMES EM GERAL (1986 –

2006)* ... 237 REFERÊNCIAS ... 253

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Entre a notícia sobre a prisão de dois homens por estarem cometendo o crime de se beijarem dentro de um carro na cidade de Florianópolis, ano de 1986, e o anúncio de que a mesma cidade seria a capital gay do Brasil, em 2006, inúmeros foram os discursos publicados pelo maior jornal impresso do Estado de Santa Catarina acerca daquilo que chamo de sexualidades desviantes. A proposta do presente trabalho é não descrever e analisar todas as notícias encontradas a respeito de tais sujeitos e suas práticas, mas demonstrar os trânsitos discursivos encontrados em tais páginas jornalísticas e os efeitos de verdade produzidos e divulgados pelas notícias e reportagens que circularam pela sociedade catarinense sobre tais práticas e sujeitos, apontando o gradual deslizar semântico – marcado por rupturas e permanências – que culminou em e ao mesmo tempo permitiu tal anúncio. Assim, busquei acompanhar as transformações na construção de tais notícias, das iniciais associações entre desvio, doença e criminalidade, passando pelo medo e a vergonha do assumir-se desviante em uma pequena cidade, até as contestações e a emergência de resistências locais a violências e arbitrariedades, em prol dos direitos de ir e vir, trabalhar, aparecer em espaço público e, finalmente, ir à rua para anunciar que não se era “nem mais, nem menos, apenas iguais”. Assim, a proposta é de uma História que é, simultaneamente, escrita a partir de uma fonte – o jornal Diário

Catarinense - e sobre as transformações pelas quais passou esta fonte ao

longo de 20 anos, tematicamente construída a partir dos inúmeros efeitos de verdade e distintas formas de visibilidade desviantes elaboradas e postas em circulação.

PALAVRAS-CHAVE: Sexualidades desviantes; Diário Catarinense;

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Among the news about the arrest of two men as they were committing the crime of kissing inside a car in the city of Florianópolis, 1986, and the announcement that the same city would be the gay capital of Brazil, in 2006, many were speeches published by the largest newspaper printed in the State of Santa Catarina on what I call deviant sexualities. The purpose of this paper is not to describe and analyze all news found about such subjects and their practices, but show the discoursive transits found in these pages and the effects of journalistic truth produced and disseminated by news and reports that circulated by the society of Santa Catarina about such practices and subjects, pointing the gradual semantic slide - marked by ruptures and continuities – that culminated and allowed such an announcement. So, I tried to follow the transformations in the construction of such news, the initial associations between deviance, disease and crime, through fear and shame of assume being deviant in a small town to the challenges and the emergence of local resistance to violence and arbitrariness, for the rights to come and go, work, appearing in public space, and finally go to the streets to announce that it was not "no more, no less, just the same." The proposal is a history that is simultaneously written from one source - the newspaper Diário Catarinense - and the transformations of this source over 20 years, thematically constructed from the numerous effects of truth and different forms of deviants visibility prepared and put into circulation.

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INTRODUÇÃO

Perdi-me do nome, hoje podes chamar-me de tua, dancei em palácios, hoje danço na rua. Vesti-me de sonhos, hoje visto as bermas da estrada, de que serve voltar quando se volta pro nada. Eu não sei se um Anjo me chama, eu não sei dos mil homens na cama e o céu não pode esperar. Eu não sei se a noite me leva, eu não ouço o meu grito na treva, e o fim vem-me buscar. Sambei na avenida, no escuro fui porta-estandarte, apagaram-se as luzes, é o futuro que parte. Escrevi o desejo, corações que já esqueci, com sedas matei e com ferros morri. [...] Trouxe pouco, levo menos, e a distância até ao fundo é tão pequena, no fundo, é tão pequena, a queda. E o amor é tão longe, o amor é tão longe e a dor é tão perto.

Balada de Gisberta, Pedro Abrunhosa.

ERA UMA VEZ: A TÍTULO DE APRESENTAÇÃO POLÍTICA E PESSOAL

Gostaria de poder iniciar esta dissertação utilizando “Era uma vez”, que daria ares de atemporalidade e indícios de que os fatos que aqui serão expostos e analisados não seriam relativos a um movimento que provoca mudança, uma travessia, uma viagem a uma destinação para a qual se encontrou uma possível passagem, em outros termos, a experiências1 de fato vivenciadas. A expressão, como as adaptações de contos e lendas realizadas durante o século XX nos fizeram crer, garantiria que heroínas ou heróis teriam seus problemas existenciais, sociais, econômicos ou familiares resolvidos por meio de intervenções fantásticas, mágicas, que culminariam na resolução de todos os seus conflitos e a total purgação dos males. Cativantes finais felizes que repousam à sombra da confortável tenda ficcional em milhões de imaginários, palavra que representa uma matriz, uma atmosfera, uma força social de ordem espiritual, construção mental ambígua, perceptível, mas não quantificável, elemento racional ou razoável, mas

1 Adoto aqui o termo experiência segundo a descrição de Derrida, para o qual a “experiência é

uma travessia, como a palavra o indica, passa através e viaja a uma destinação para a qual ela encontra passagem. A experiência encontra sua passagem, ela é possível”. Para tal, ver: DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 29.

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também onírico, lúdico, fantástico, imaginativo, afetivo, não racional, construções mentais potencializadoras de práticas.2 Não, não falarei de ficção, mas de História, escolhendo arbitrariamente3 principiar por algo supostamente4 ocorrido na madrugada do dia 05 de dezembro de 1986. Apesar disso, tomarei de liberdade criativa para introduzir esta dissertação de forma pouco convencional, pois não seria a História uma intriga, um tecido que vai ser retramado e refeito, nesta verdadeira arte de inventar o passado?5 Que se inicie a artesania, portanto.

Apresento então meu personagem principal. Ele era um jovem chamado Paulo que, em 1986, tinha apenas 20 anos de idade. Era natural de Jequitinhonha, Minas Gerais, e morava há quatro anos em Florianópolis sem qualquer parente, ou seja, rompera seus laços familiares e deixara sua região de origem tendo em torno de 16 anos de idade. Um rapaz de coragem? Ou uma vida, como tantas, forçada ao desenraizamento, à mobilidade, característicos das sociedades pós-modernas em constante processo de desterritorialização?6 Paulo mudara há pouco menos de um mês para a casa de um amigo no bairro Capoeiras, parte continental da cidade, de nome Cláudio. Nada me autoriza a tentar recompor os mais de três anos em que morou em outros locais, mas sei que Paulo e Cláudio já se conheciam há bastante tempo.

Cláudio era dono de uma pequena cadela de cor clara e rosto fino, chamada Megui, e morava há mais de vinte anos no mesmo bairro. Ele era, segundo suas próprias palavras, conhecido e respeitado por seus vizinhos por nunca ter perturbado ninguém. Não posso indicar o que Cláudio quis dizer com perturbar, mas possivelmente significa que seus comportamentos dentro daquele espaço geográfico seriam vistos como

2Para tal, ver: MAFESOLI, Michel. O imaginário é uma realidade (entrevista). Revista

FAMECOS, Porto Alegre, n. 15, ago. 2001. Disponível em:

<http://200.144.189.42/ojs/index.php/famecos/article/view/285/217>. Acesso em: 02 nov. 2012.

3 Em 1943, Marc Bloch já nos alertava sobre o caráter arbitrário dos recortes temporais

exigidos pelo trabalho historiográfico. Para tal, ver: BLOCH, Marc. Apologia da História, ou, O ofício de historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 147.

4 Adoto a palavra suposição, pois a exatidão de datas não era característica à fonte escolhida

para análise, como será posteriormente exposto, o que não impede a análise aqui proposta, como se verá.

5 Para o mesmo, ver: ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História: a arte de

inventar o passado. Bauru: Edusc, 2007, p. 63.

6 No sentido dado por Deleuze, como algo retirado de seu domínio para se re-territorializar. O

termo é utilizado pelos estudos culturais para explicar o desenraizamento, a mobilidade e o hibridismo característicos das sociedades pós-modernas. Para tal, ver: DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2004, p. 29.

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adequados, estariam de acordo com os padrões considerados normais para o local e a época.

Paulo morava, então, em uma boa vizinhança com seu amigo. Ele iria trabalhar como babá de um recém-nascido. Uma pausa se faz necessária, em vista desse novo dado. A profissão a ser desempenhada por Paulo talvez nos permita supor que ele não pertenceria a uma família de posses ou, caso pertencesse, que não teria acesso às mesmas. Era alguém que viera para Florianópolis e trabalharia prestando serviços, como tantas pessoas fizeram e diariamente fazem. Para a própria sobrevivência? Para enviar dinheiro para a família em Minas Gerais? Ou para guardar e poder realizar algum sonho de consumo? Nenhum indício me permite afirmar categoricamente. Posso apenas formular questionamentos, levando em consideração o fato de Paulo ser proveniente de uma região brasileira economicamente pouco desenvolvida. A mudança de Paulo para a casa de Cláudio para exercer a profissão de babá, portanto, talvez me permita analisar sua história a partir do viés de classe ou grupo social. Afinal, o acesso ou não a todo um conjunto de bens e serviços é proporcionado pelo poder econômico que, provavelmente, Paulo não detinha. Se a igualdade é ilusória,7 esta seria apenas uma dentre as múltiplas desigualdades que recortaram e constituíram Paulo, mas para não correr o risco de ser acusado de impotência para historicizar qualquer coisa que não seja explicada pela busca por salário,8 continuo minha investigação por mais detalhes sobre a história de Paulo.

Algumas observações sobre a aparência deste jovem rapaz: o formato de seu nariz e o tamanho de seus lábios parecem indicar que o componente racial poderia ser apontado como mais uma das facetas de sua história. Aparentemente, Paulo teria traços que o aproximariam da descendência africana. Seria ele afrodescendente? Teria ele vivenciado a exclusão social historicamente inerente à sociedade brasileira por ser, como se costuma dizer, ‘preto e pobre’? Apenas questionamentos sem respostas, feitos não para reduzir Paulo à condição de vítima, mas para levantar hipóteses plausíveis sobre detalhes de sua história. Voltando à aparência de Paulo, outros aspectos despertaram minha atenção. Seu

7 Para o mesmo, conferir: NOGUEIRA, Conceição. Um novo olhar sobre as relações sociais

de gênero. Feminismo e perspectivas críticas na Psicologia Social. Braga: Fundação Calaouste Gulbenkian / Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2001, p. 199.

8 Apesar de citar algumas contribuições marxistas para o que chama de higiene mental

epistemológica feminista em sua ânsia por objetividade, impressiona a insidiosa formulação inicial de Donna Haraway. Cf. HARAWAY, Donna. Saberes Localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, n.5, 1995, p. 14.

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rosto era aparentemente imberbe, apesar de sua idade. Seu cabelo cacheado revelava certa intencionalidade em não o deixar totalmente curto. Suas sobrancelhas, muito finas, formavam delicados arcos sobre seus olhos. Vejamos a imagem de seu rosto reproduzida pelo jornal para melhor compreender a descrição:

Diário Catarinense, Florianópolis, 06 dez. 1986, p. 35. Acervo pessoal.

Há, além disso, um pequeno fio que deixei escapar nesta trama: dentro dos padrões culturais brasileiros do período, década de 1980 (e mesmo atuais, em 2014), a atividade a ser desempenhada por Paulo não seria considerada adequada para seu sexo civilmente registrado. Afinal, os significados atribuídos a determinadas ocupações se estabeleceram por muito tempo de acordo com supostas qualidades ditas “naturais” de mulheres e homens.9 Ênfase ao ‘supostas’ feita, presumo que cuidar de bebês não estava entre as ocupações ditas masculinas na Florianópolis dos anos 1980. Claro que devo buscar desconstruir tais hierarquias binárias e essencialistas, mas o ponto que gostaria de enfatizar é o caráter manifestamente transgressivo da atividade profissional e da aparência de Paulo para a época.

Assumo agora minha quase imperdoável gafe, justificando-a como forma de manutenção do clima de suspense, busca por um clímax. Suponho que Paulo não gostaria de ser chamado de ‘ele’, de ter artigos ou adjetivos vinculados a seu nome a partir do que se chama gênero masculino, na língua portuguesa. Sim, Paulo era, como se costumava falar à época, ‘um travesti’. Seu nome social era Dalva. Para mim, ‘a’ travesti Dalva. Após breves incursões pelas categorias classe e raça, eis

9 Cf. SCOTT, Joan. Igualdade versus diferença: os usos da teoria pós-estruturalista. Debate

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que me deparo com esta performance social contínua, esta repetição estilizada de atos, esta temporalidade social constituída, esta ilusória aparência de substância, esta norma fantasmática nunca inteiramente internalizada, o gênero.10 Categoria essencial ao trabalho aqui proposto, que será melhor explicada adiante, no subtítulo Normatizando o texto

acadêmico: as categorias de análise.

Poucas são as informações que posso acrescentar para enriquecer a breve história desta mineira que se nomeou Dalva e escolheu Florianópolis como local de moradia. Segundo Cláudio, ela era uma pessoa bondosa, não tinha inimigos e nenhum caso sério com ninguém. Ora, esta frase de Cláudio me abre a pequena possibilidade de imaginar que há chances de Dalva ter tido algum envolvimento amoroso, mas nada fixo ou duradouro. Cláudio e Dalva tinham por hábito se reunir em uma esquina próxima de sua residência com amigas e amigos. Gostavam de beber “como todo mundo”, nas palavras de Claudio, e não usavam qualquer tipo de drogas – ele foi enfático ao afirmar que nem maconha fumavam – mas de onde poderia ter saído esta ideia de uso de drogas?

Entro agora no desfecho de minha breve incursão pela história de Dalva, revisitada quase trinta anos depois. A polícia, esta instituição cujos enunciados detêm efeitos privilegiados de verdade e de poder,11 quis envolver os nomes de Dalva e Cláudio com uso ou tráfico de drogas, o que deixou Cláudio magoado, de acordo com suas palavras. Que motivações teria a polícia para assim fazer? Possível associação entre travestilidade e criminalidade, comum ao imaginário da época (e mesmo atual)? Não há como afirmar, mas desvendo o que me levou a traçar estas poucas linhas como forma inicial de minha dissertação.

Em notícia de 06 de dezembro de 1986, o jornal Diário

Catarinense informou que um travesti havia sido assassinado às três e

quinze da madrugada anterior com dois tiros de revólver – um tiro na boca e outro na axila esquerda, que atingiu seu coração - por um homem não identificado que fugiu do local em uma moto vermelha, tendo por única testemunha um vigia de um prédio próximo. Dalva virou notícia. Ela seria sepultada no Cemitério Itacorubi, em terreno doado pela família de Cláudio e um caixão doado pela Secretaria de

10 Para tal, conferir: BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da

identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 200-201.

11 Cf. FOUCAULT, Michel. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). São

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Desenvolvimento Social da Prefeitura Municipal.12 Sua morte se transformou em mais um dos tantos casos de crimes insolúveis, trazida novamente às páginas jornalísticas anos depois em uma notícia que descrevia a morte da travesti de nome social Guta, a facadas, segundo constava, enterrada no mesmo túmulo de Dalva. Nesta notícia, o periódico afirmava ter Dalva morrido em 1987.13 Um dos tantos equívocos cronológicos cometidos em suas páginas e que pude perceber ocorrerem com certa frequência. E depois, silêncio, esquecimento, desaparição. Uma vida abjeta, um corpo sem importância, um ser repudiado.14 Como tantos outros.

Gostaria de terminar esta breve exposição com aquela frase inicial, revertendo minha pequena gafe já justificada. Era uma vez uma jovem mineira chamada Dalva, sujeita15 diaspórica que escolheu Florianópolis como lar aos 16 anos e que, aos 20, parte de uma rede de solidariedade e envolvida em laços de amizade, teria a profissão de babá. Atrevida, Dalva ultrapassou fronteiras, tanto em sentido literal quanto no mais gendrado sentido. Foi assassinada brutalmente por um qualquer não identificado, em uma calçada perto de sua residência, fato que rompeu catastroficamente a linearidade que me proporcionaria a narração de um final feliz. Dalva, a travesti inaceitável para os códigos de inteligibilidade de sua época: seria isso que a teria matado, para além da materialidade das 2 balas que tiraram sua vida? Uma das muitas questões sem resposta.

Que a divulgação de sua história, no entanto, possa se somar aos esforços para a construção de outros finais. Pois este breve e inicial retorno ao passado é motivado por implicações políticas bem atuais, mas também pessoais. Lembro-me de chegar ao Estado de Santa Catarina no ano de 2005, motivado e encantado com o que tinha lido e escutado sobre a praticamente inexistente homofobia que atraía diariamente dezenas de pessoas para a região de sua capital. Em meus primeiros meses como morador de Florianópolis, frequentei alguns espaços de sociabilidade e trabalhei em empresas que me permitiram conhecer várias pessoas de diferentes bairros da cidade e região metropolitana e níveis sociais, culturais e econômicos distintos. Dentre elas estava

12 BORDIN, Paulo. Travesti assassinado a tiros em Capoeiras. Diário Catarinense,

Florianópolis, 06 dez. 1986, p. 35.

13 Facada no coração mata travesti. Diário Catarinense, Florianópolis, 31 mar. 1989, p. 36. 14 Para tal, conferir: BUTLER, Judith. Cuerpos que importan: sobre los límites materiales y

discursivos del "sexo". Buenos Aires: Paidós, 2002, p. 19-20.

15 Adoto o neologismo como tentativa de subverter o predomínio do masculino e o

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Roberto,16 jovem de pouco mais de 20 anos, afrodescendente e morador de um bairro popular, sempre alegre e cujo sorriso contagiava a quem estivesse próximo. Roberto foi brutalmente esfaqueado em uma noite qualquer daquele ano, por um sujeito qualquer, após uma relação sexual com um homem qualquer, constatada pelo exame de seu corpo. Provavelmente seu assassino. Encontrei seu nome em uma das várias listas produzidas pelo jornal sobre os “mortos do mês”: banalização da violência, materializada em tabelas de nomes, datas e números.

Minha história pessoal, portanto, não está desvinculada de meu intento político de mudança não apenas de um discurso que constitui a região como um paraíso homossexual, mas também de denúncia das práticas de violência que tais discursos ora constroem e divulgam, ora silenciam e disfarçam. Almejo não só fazer emergir17 os fragmentos de vida e morte de Dalvas, Claudios, Gutas, Robertos ou Kelis e tantas outras sujeitas e sujeitos relegados ao esquecimento e ao desprezo e inabitabilidade social, mas descrever as construções discursivas correntes que as fizeram adentrar as páginas jornalísticas, veiculadas especialmente (mas não apenas) através das páginas policiais do Diário

Catarinense entre o período de seu lançamento (1986) e o que se

chamou então de primeira Parada de Diversidade da cidade de Florianópolis (2006) e demarcar os deslocamentos e permanências na construção destes discursos, identificar as autoridades chamadas a falar, a escrever, a produzi-los, apontar as possibilidades de enunciação das vítimas, criminosos e criminosas e suas testemunhas e as diferenças existentes entre tais posições de subjetividade ou posicionamentos de sujeito, entendidos aqui como os diversos status, lugares, posições que se pode ocupar ou receber quando se exerce um discurso, na descontinuidade dos planos de onde se fala.18 Ressalto que dentro de tal recorte temporal, houve a alteração da Lei Orgânica do Município de Florianópolis, que incluiu a coibição da discriminação por motivo de orientação sexual em um de seus incisos no ano de 1994.19 Seria

16 Por não ter contato com sua família e não saber se posso ou não divulgar detalhadamente sua

história, prefiro adotar aqui um nome ficcional.

17 Utilizo aqui a noção foucaultiana de emergência. Conferir: FOUCAULT, Michel. Nietsche, a

genealogia e a história. In: ____. Microfísica do poder. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2006, p. 15-37.

18 Cf. FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense-Universitária,

1987, p. 61.

19

Lei Orgânica do Município de Florianópolis. Disponível em:

<http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&ved=0CFgQFjA A&url=http%3A%2F%2Fsistemas.sc.gov.br%2Fcmf%2Fpesquisa%2Fdocs%2F1990%2Fleior

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possível apontar que experiências e sujeitos teriam influenciado tal alteração? E teria a força de lei, este fundamento místico da autoridade,20 influenciado a produção discursiva do jornal aqui analisado? São respostas que buscarei responder a partir do que foi noticiado, destacando a importância da veiculação de discursos como uma das práticas intrinsecamente imbricadas, constitutivas do processo de violência percebido, bem como das resistências.

Trabalho, portanto, a partir de um jornal de circulação estadual de periodicidade diária. Para tanto, escolhas e possíveis diálogos com trabalhos já publicados devem ser feitos. Ressalto que, longe de formular críticas ou apontar falhas, as linhas que se seguem cumprem uma exigência acadêmica de norteamento, não uma prática de enaltecimento de meu trabalho ou desvalorização de outros. Uma pergunta inicial: como nomear o que pretendo estudar? Viado (e suas variantes viadinho, viadão, viadaço), boiola, sapatão (sapata), machuda (machorra), bicha (e suas variantes bicha-louca, bichona, bicha-velha), gay (gayzinho e gayzão), roça-roça, aranheira, traveca (travecona), boneca, fruta (frutinha), (o regionalista) baitola, pederasta, meigo, Moura Brasil, jiboia - a pejorativa pluralidade semântica disponível em nossa língua mostra quão polimorfos são tais sujeitas, sujeitos e suas práticas. Que traço haveria em comum, além das marcas deixadas na maioria pela violência de tais palavras, quando utilizadas para qualificar, diminuir ou intimidar seres, corpos, comportamentos? A não conformidade, o escape, o deslize. Por mais que busquem se enquadrar dentro de normas e tentem reproduzir padrões, baseados nos (decadentes) modelos burgueses de relacionamentos, comportamentos e relações conjugais e familiares,21 seus desejos e práticas divergem, diferenciam-se, explodem fronteiras estabelecidas e rompem barreiras idealizadas de masculino e feminino. Suas tentativas de reproduzir as normas acabam por desviá-las, não se encaixando perfeitamente dentro

ganica.doc&ei=cDa3T6yzOZSi8ATnsLmyCg&usg=AFQjCNGthpXslkyVXooUROHiYZi5n2 OhNA>. Acesso em: 10 maio 2012.

20 Segundo Derrida, em uma releitura de Pascal e Montaigne, leis não são justas como leis. Não

as obedecemos por serem justas, mas porque têm autoridade, e esta autoridade repousaria apenas no crédito que a concedemos, um ato de fé que justificaria a alusão ao caráter místico de sua autoridade. Para tal, ver: DERRIDA, op. cit., p. 21.

21 A respeito da decadência de tais modelos, ver: GROSSI, Miriam. Masculinidades: Uma

revisão teórica. Antropologia em Primeira Mão, n. 75, Florianópolis, PPGAS/UFSC, 2004. Disponível em: <http://www.antropologia.ufsc.br/75.%20grossi.pdf>. Acesso em: 10 maio 2012.

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do culturalmente hegemônico heterocentrismo.22 Sem a pretensão de encaixar, enquadrar ou limitar, mas ao mesmo tempo consciente de que acabo fazendo-o, penso que um termo adequado para nomear tais sujeitos e suas práticas seja desviantes – os que não seguem a maioria, os de fora, os das margens – e ao mesmo tempo os que desviam, que borram as fronteiras, que mudam as trajetórias: sujeitos e suas práticas ambivalentemente desviantes, chamados a ocupar tais posicionamentos por meio de interpelações injuriosas. Os sujeitos, no entanto, são súditos e ao mesmo tempo sujeitos de poder – emergem como efeito de um poder anterior e esta submissão é condição de possibilidade de sua própria resistência e oposição.23 Em seguida, explicarei mais detalhadamente a teoria aqui adotada.

Parto então para um segundo questionamento: quem haveria, em uma perspectiva local, trabalhado a partir de tal termo? Quem teria problematizado o desvio e transformado desviantes em sujeitos de história? Juliana Sardá, em sua dissertação Na contramão da lei: a

repressão policial e os desviantes da ordem em Florianópolis nas primeiras décadas do século XX,24 parece apontar uma possível resposta. A autora busca mapear discursos, intervenções, instituições que buscavam a normatização de uma sociedade que tinha por meta o civilizar-se, estabelecendo para tal o controle daquelas e daqueles que se desviavam da ordem que se queria impor - vadios, desordeiros, prostitutas, presos, alcoólatras, jogadores, mendigos, alienados, menores, estrangeiros, praticantes de jogos e brincadeiras de rua, os que proferiam palavras indecorosas, casais enamorados - os indesejáveis da Florianópolis do início do século XX que teimavam em aparecer publicamente. Remodelar, modernizar e higienizar ruas e vidas, esta era a meta.

A autora aponta a necessidade de extremo cuidado ao nos apropriarmos do termo desviante, visto que a noção de desvio implicaria a existência de um comportamento ideal, que expressaria uma pretensa harmonia com as exigências do funcionamento do sistema social. A

22 Sobre a hegemonia heterossexual, ver: WELZER-LANG, Daniel. A construção do

masculino: dominação das mulheres e homofobia. Estudos Feministas, vol. 9, n. 2, 2001. Disponível em: <http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/9620/8853>. Acesso em: 10 maio 2012.

23 Cf. BUTLER, Judith. Mecanismos psíquicos del poder. Teorías sobre la sujeción. Madri:

Ediciones Cátedra, 1997, p. 25.

24 SARDÁ, Juliana. Na contramão da lei: a repressão policial e os desviantes da ordem em

Florianópolis nas primeiras décadas do século XX. Dissertação (Mestrado em História), UFSC, 2005. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cp098902.pdf>. Acesso em: 10 maio 2012.

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autora irá, assim, afirmar o caráter multifacetado, dinâmico e ambíguo da vida cultural: o desviante não seria um indivíduo fora de sua cultura, mas que faz uma leitura peculiar desta. Seu argumento, portanto, corrobora minha proposição inicial de trabalhar a partir do termo desviante, a despeito de seus milhares de significados. Assim, proponho a releitura e positivação do termo. Seu trabalho, no entanto, está temporalmente distanciado de meu recorte e seu silêncio a respeito de práticas e sujeitos não-heterossexuais (ou simplesmente práticas e sujeitos desviantes), impossibilita maiores diálogos com sua obra.

Busco aqui descrever como o periódico em questão, ao fazer circular pela sociedade determinados discursos, cria, constrói, inventa, atribui significados a tais sujeitos e suas práticas. Surge, então, a terceira indagação: como fazê-lo? Como problematizar notícias de jornais, analisá-las e não apenas as reproduzir? Uma primeira resposta vem do instigante livro de Rosa Nívea Pedroso, A construção do discurso de

sedução em um jornal sensacionalista.25 Rosa analisa o discurso do jornal carioca popular e sensacionalista Luta, buscando estabelecer as pontes entre a construção dos sentidos que instauram a realidade social, perpassados por aspectos sociais, econômicos e históricos que formam a imagem de mundo de e para excluídos e marginalizados. Jornal que recorria à imaginação para preencher páginas em dias menos sanguinolentos, a autora demonstra como tal periódico explorava mazelas sociais, fatos e sujeitos considerados aberrantes, periféricos, marginais, criminosos, anormais. Detalhista, Rosa chega a montar quadros a partir dos vocábulos encontrados no periódico, apontando as operações de investimento de sentido nas matérias, títulos, temas e figuras do noticiário, além das expressões eróticas e sexuais utilizadas para ‘seduzir’ leitoras e leitores. Se não posso caracterizar o Diário

Catarinense apenas como popular ou tão abertamente vulgar quanto o

periódico analisado por Rosa, certamente reconheço traços de sensacionalismo e técnicas similares de exploração do que se divulgou como aberrante em suas páginas.

Mais recente, além de mais próximo da pesquisa proposta quanto aos sujeitos de estudo, Baltasar Pena Abal traz uma discussão sobre os discursos veiculados em notícias sobre a implementação do casamento homossexual na Espanha através dos jornais eletrônicos El

Pais e Elmundo.es em sua dissertação A construção da homossexualidade em discursos produzidos pela mídia eletrônica

25 PEDROSO, Rosa Nívea. A construção do discurso de sedução em um jornal

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espanhola.26 Com uma rica discussão sobre o sujeito e o poder na mídia, seu trabalho a problematiza enquanto local de produção de verdades acerca da homossexualidade que constrói posições de sujeito a partir de locais de saber e poder por meio de uma discursividade que traduz lutas entre diferentes discursos, como os da psicologia, medicina, religiões, justiça, política, sempre hierarquizando negativamente a homossexualidade, em oposição ao padrão heterossexual. Atento ao local social de onde partem tais discursos, o autor aponta a manutenção de já-ditos sobre a homossexualidade, resultando em lugares comuns como representações negativas, estereotipadas, vitimizantes, patologizantes e preconceituosas. Os sujeitos desviantes, segundo sua análise, passam do silêncio a um lugar de sujeito homossexual, nunca apresentado como professor, advogado ou qualquer outra profissão, mas sempre baseado no que o autor chama de orientação sexual – sujeitos com escassa representatividade para falar de si, muitas vezes aparecendo no último parágrafo das matérias analisadas.

Como as páginas policiais do referido jornal recebem aqui maior atenção, local por excelência da criminalidade, anormalidade e de imposição de silêncio à fala dos considerados criminosos, desviantes ou não, e visto que abordo a implementação da proibição de discriminação por orientação sexual na emenda à Lei Orgânica do município de Florianópolis no ano de 1994, o diálogo com os trabalhos de Rosa e Baltasar faz-se necessário – por um lado, a análise sobre o sensacionalismo das páginas jornalísticas, por outro, as estratégias utilizadas por jornalistas/articulistas para produzir sujeitos e narrar situações a partir de posições pré-definidas e locais de enunciação de saber e poder. Saliento, no entanto, que os trabalhos possuem recortes espaciais, temporais e temáticos transversais, apenas.

Outra referência importante para a problematização aqui proposta é o livro A TV no armário: a identidade gay nos programas e

telejornais brasileiros, de Irineu Ramos Ribeiro, também resultado de

uma dissertação.27 Irineu parte de questões simples: o que levaria a mídia a veicular apenas certas representações, como a lésbica cervejeira/pagodeira de roupas masculinas ou o gay bombado que só usa marcas famosas? Que significados tal homogeneidade cria? Que sujeitos

26 ABAL, Baltasar Pena. A construção da homossexualidade em discursos produzidos pela

mídia eletrônica espanhola. Dissertação (Mestrado em Linguística), UERJ, 2007. Disponível

em:

<http://www.bdtd.uerj.br/tde_arquivos/2/TDE-2007-05-16T083810Z-106/Publico/Baltasar%20Pena.pdf>. Acesso em: 10 maio 2012.

27 RIBEIRO, Irineu Ramos. A TV no armário: a identidade gay nos programas e telejornais

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são excluídos e silenciados em tal processo? Suas respostas são polêmicas: Irineu problematiza as notícias acerca da Parada de Orgulho

Gay de São Paulo do ano de 2007, discorrendo sobre padrões de

consumo, faturamento, turismo, frases abertamente preconceituosas, o (teoricamente) inconsequente clima de festa, uso de drogas, perigos e violências que rondariam tal evento, segundo o que as imprensas televisivas e impressas veiculariam, constatando o silêncio sobre temas e palavras de ordem do evento (pelo fim do racismo, machismo e homofobia), a criação/reprodução de estereótipos ao se veicular imagens apenas de drag queens caricatas em detrimento do que chama de outros tipos de gênero e o enfoque em questões financeiras ou ocorrências policiais em tais notícias. O autor explora detalhes, como as chamadas e a cronometragem das reportagens televisivas, as impressões trágicas causadas pelo número de roubos e pela morte de um turista francês.

Além disso, analisa programas distintos e um capítulo de novela, que teriam em comum a reprodução implícita de preconceitos, a hipocrisia das relações sociais, a incapacidade de representar as diferenças sem ultrapassar conceitos hegemônicos e visões heterocentradas da sociedade e a manipulação caricatural das identidades. Ora desqualificariam os desviantes, ora os relegariam a papéis secundários. Apesar de utilizar mídias distintas da que pretendo trabalhar, o viés crítico que dá o tom de sua obra, penso, é aplicável a outros contextos temporais e espaciais, o que me levaria a uma quarta questão: quem haveria trabalhado sobre sujeitos desviantes em Santa Catarina a partir das classificações usualmente utilizadas para as práticas sexuais, como homossexual, travesti, lésbica?

Uma busca nas bibliotecas universitárias estadual e federal do Estado mostra que existe uma pluralidade de trabalhos a respeito da temática: sob títulos que envolvem homossexual, lésbica, travesti ou

gay, várias áreas de saber discorreram sobre a temática, em especial a

Antropologia e a Psicologia. Dentre eles, gostaria de destacar a tese interdisciplinar de Luiz Fernando Neves Córdova, Trajetórias de

homossexuais na Ilha de Santa Catarina: temporalidades e espaços.28 A partir da realização de 16 entrevistas com homens e mulheres de diferentes classes sociais e gerações, o autor descreve vivências, trajetórias e espaços de sociabilidades homossexuais na cidade de Florianópolis e região metropolitana. Sua reflexão sobre as vivências

28

CÓRDOVA, Luiz Fernando Neves. Trajetórias de homossexuais na Ilha de Santa Catarina: temporalidades e espaços. Tese (Doutorado em Ciências Humanas), UFSC, 2006. Disponível em: < http://www.tede.ufsc.br/teses/PICH0047.pdf>. Acesso em: 10 maio 2012.

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apontou para a diversidade de orientações de desejo sexual, identidades de gênero e sujeitos, diferenças que desapareceriam ao se utilizar a categoria homossexual, visto que a desigualdade entre estes sujeitos seria enorme, por ser atravessada por diferentes contextos culturais, econômicos, étnicos, geracionais e de gênero. O autor conclui que é necessário desconstruir a ideia estereotipada de uma homossexualidade generalizável, pois seriam várias, múltiplas. Como fatos culturais que são, as práticas mudariam no espaço e no tempo.

Luiz discorre sobre a visibilidade de desviantes ilhéus dentro da imprensa catarinense por meio dos textos de Beto Stodieck, em especial nas épocas de verão e carnaval e aponta as consequências do impacto da AIDS nas diferentes gerações que entrevistou. O autor chegou a utilizar 16 notícias do jornal Diário Catarinense em seu texto e afirma ter encontrado diversas matérias que tratavam de assassinatos de homossexuais em Florianópolis sem, contudo, citá-las. Sua tese apresenta uma análise de todos os trabalhos sobre não heterossexuais catalogados pela Biblioteca da Universidade Federal de Santa Catarina até o ano de 2005, descritos no subtítulo Olhares acadêmicos sobre

homossexualidades em Florianópolis: vai longe o Desterro. Cabe

ressaltar que nenhum dos trabalhos revisados pelo autor discorre especificamente a respeito da produção discursiva jornalística sobre sujeitos e práticas desviantes e nem pertencem à área da História.

Tal silêncio na historiografia produzida em Santa Catarina está prestes, no entanto, a acabar, pois não só o presente trabalho fará emergir histórias diversas sobre diferentes sujeitos. O trabalho do doutorando Elias Veras, a ser defendido também na Universidade Federal de Santa Catarina, discorrerá sobre as produções discursivas acerca das travestilidades de uma capital nordestina, a partir de jornais, livros, panfletos e entrevistas, em sua por hora intitulada tese Além do

paetê: produção discursiva e subjetividades travestis em Fortaleza. (1970-2000). Outro trabalho será o do mestrando Maurício Pereira

Gomes, que escolheu analisar, por meio de jornais e de capítulos de uma novela, a emergência discursiva do termo homofobia. Já a também mestranda Camila Diane Silva buscará discorrer, por meio de entrevistas e documentos judiciais, sobre as práticas sexuais das mulheres do presídio feminino da cidade de Joinville. Desvio e desviantes, portanto, lentamente tornando-se foco de discurso e prática de pesquisa para a História.

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Em tal disciplina, destaco a tese de James Green, transformada no livro Além do carnaval. A homossexualidade masculina no Brasil do

século XX,29 espacialmente delimitado ao Rio de Janeiro e São Paulo, e que discorre desde as intervenções e classificações médicas e jurídicas de inspirações eugenistas de fins do século XIX, que pretendiam curar, encarcerar ou silenciar a homossexualidade, passando pelos espaços de sociabilidade e de encontros furtivos, como as praças da região central das cidades, os motéis, cinemas, praias, cafés, bares, banheiros, restaurantes, saunas, utilizados para encontros ou “sexo rápido”, a visibilidade na imprensa, prostituição, produções culturais e artísticas, festas privadas e públicas, até a emergência dos movimentos homossexuais, ainda no período da ditadura militar, fase em que, apesar da repressão, o historiador aponta como época de proliferação de espaços voltados ao público homossexual.

Seu trabalho é construído a partir das categorias de identidades e subculturas homossexuais, e o autor demonstra como elas se constituíam, por exemplo, através de vestimentas, comportamentos, e em especial práticas sexuais, que definiam quem seria o “bofe” e a “bicha” em um relacionamento a partir da atividade ou passividade, além das demarcações e distinções sociais baseadas no poder aquisitivo. O livro é temporalmente delimitado ao início da década de 1980, momento de consolidação de novas identidades, em especial constituídas por meio do ativismo, das organizações e das novas formas de visibilidade homossexuais que passaram a circular. Seu trabalho aparece aqui como uma inspiração, dada a aproximação temática e as formas de abordagem, mas meus recortes temporal e espacial são distintos e, apesar de buscar demonstrar como sujeitos desviantes eram apresentados e como se percebiam através das páginas jornalísticas, não adoto as categorias de identidade e subcultura utilizadas pelo autor.

Por fim, quem haveria problematizado o jornal Diário

Catarinense enquanto fonte a partir de um recorte temporal similar?

Ora, o jornal já foi utilizado em trabalhos que discorreram sobre temas tão diversos quanto violência sexual infanto-juvenil, moda, transporte coletivo, tráfico de crianças, transgressões femininas, meio ambiente, charges de futebol, migração e turismo, dentre outros, mas a resposta a tal questionamento aponta para a dissertação de Rafael Araújo Saldanha,

Classificados e o sexo: anúncios de prostituição masculina em SC

29 GREEN, James N. Além do carnaval. A homossexualidade masculina no Brasil do século

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(1986-2005).30 A partir de anúncios de prostituição masculina veiculados pelo periódico entre seu lançamento e o ano de 2006, Rafael problematiza as representações e identificações que formam e perpassam as subjetividades masculinas a partir de marcadores corporais e sexuais que visam singularizar tais sujeitos, como o dote e a posição assumida durante o ato sexual. Além disso, discute a mercantilização dos corpos, a prostituição e a comunicação nos últimos 30 anos e as modificações pelas quais passaram, do serviço de rua à oferta via internet, as mudanças textuais, o histórico do grupo RBS, responsável pelo periódico em questão, a repercussão midiática das figuras homem-objeto a partir da década de 1990, concomitante ao proliferar de empresas como Disk-gatos. Duplo processo: alteração das subjetividades e construção de novas, em suas palavras, a partir do que foi veiculado pelo jornal em seus classificados. As categorias e conceitos que mobiliza para historicizar os anúncios, como identificações, subjetividades, masculinidades hegemônicas e gênero, são de grande utilidade para analisar o periódico.

Os trabalhos selecionados e acima descritos, portanto, tangenciam ora a temática, ora o periódico que buscarei analisar, ora o recorte temporal, ora sujeitos e práticas desviantes, e quase todos utilizam categorias de análise de extrema utilidade para este trabalho. Nenhum, no entanto, coincide com o que aqui proponho. Mas afinal, que categorias pretendo utilizar? Que pegadas teórico-metodológicas seguirei?

30

SALDANHA, Rafael Araújo. Classificados e o sexo: anúncios de prostituição masculina em SC (1986-2005). Dissertação (Mestrado em História), UFSC, 2010. Disponível em: <http://www.tede.ufsc.br/teses/PHST0370-D.pdf>. Acesso em: 10 maio 2012.

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NORMATIZANDO O TEXTO ACADÊMICO: AS CATEGORIAS DE ANÁLISE

Há mais de 20 anos, Joan Scott convenceu a nós, historiadoras e historiadores, em texto já clássico e fartamente citado, que o gênero seria uma categoria útil de análise histórica.31 Para ela, naquela época, uma nova História precisaria ser escrita, e esta abriria possibilidades de reflexão às estratégias políticas feministas a partir da categoria Gênero, em suas lutas para redefinir e reestruturar as visões de igualdade política e social, caso incluísse de forma relacional não só o sexo, mas também a classe e a raça nesta nova proposta analítica. Curiosamente, seu texto é finalizado propondo o emergir desta nova história que tornaria as mulheres visíveis como participantes ativas do passado. Apesar de sua proposta de fuga, escape, explosão dos binarismos homem-mulher, masculino-feminino, talvez a historiadora não tenha avançado na proposição de uma pluralidade de posições, se considerarmos seu silêncio sobre outras sujeitas e sujeitos que não as mulheres ativas do passado. Ou não estariam imbricadas dentro destas relações que constituem o gênero aquelas e aqueles sobre os quais o discurso de Joan Scott silencia? Pergunta provocativa, apenas. O intuito de sua discussão era outro, bem como as sujeitas que desejava tornar históricas.

O exercício genealógico do conceito será efetuado alguns anos depois por Donna Haraway em “Gênero” para um dicionário marxista:

a política sexual de uma palavra,32 no qual apresenta as problematizações até então produzidas sobre a categoria. A autora destaca os deslocamentos provocados dentro das discussões feministas por teóricas lésbicas e em geral negras, que não se sentiam representadas por um feminismo ocidental, classe média, branco, heterossexual. Haraway anuncia profeticamente, ao final, que uma fênix falaria todas as línguas de um mundo virado de ponta cabeça. Ora, não estaria esta fênix lá, citada em seu texto? Não me arriscaria a dizer que ela fala todas as línguas, pois acredito que qualquer esforço de totalização é falho, mas refiro-me à filósofa Judith Butler, sobre quem Haraway afirmava existir um medo provocado por suas inquietantes propostas de que o feminismo deveria aprender a produzir legitimidade narrativa para uma diversidade de gêneros não coerentes, desqualificando as categorias

31 SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação &

Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, jul./dez. 1995, p. 71-99.

32 HARAWAY, Donna. “Gênero” para um dicionário marxista: a política sexual de uma

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analíticas que buscariam um centro organizador, univocidades e coerências, em realidade, fictícios. Proposta derridiana,33 influências nietzscheanas.34

Ora, lá estão eles, então: os gêneros não coerentes. Pergunto-me: afinal, qual seria a proposição teórica de Gênero para Judith Butler? Criticada e incompreendida por seu polêmico livro Problemas de

gênero,35 Butler dirá em Corpos que importam36 que o gênero é parte do que determina o sujeito, construído através de relações de poder e restrições normativas que produzem e regulam os seres corporais, uma repetição ritualizada através da qual essas normas produzem e estabilizam os efeitos de gênero e também a materialidade do sexo - materialidade que se constrói através de repetições ritualizadas de tais normas. Em outras palavras, por meio da performatividade – entendida não como ato deliberado e singular de vestir e desvestir um gênero, como quis a leitura de Pierre Bourdieu,37 mas antes como uma prática reiterativa e referencial mediante a qual o discurso produz os efeitos que nomeia de forma simultânea. Normas reguladoras de sexo trabalhariam, para a filósofa, de maneira performativa, para constituir a materialidade dos corpos e materializar o sexo do corpo, assim como a diferença sexual para consolidar o imperativo heterossexual. Desta forma seriam produzidos os seres abjetos, invisíveis, como os não heterossexuais alvos da presente pesquisa.

O abjeto, segundo Butler, designaria as zonas invisíveis e inabitáveis da vida social que estão densamente povoadas por quem não goza da hierarquia dos sujeitos, mas cuja condição de viver sob o signo

33 Derrida afirma que, a partir de Nietzsche, Freud, e Heidegger, questionaram-se,

deslocaram-se os lugares de referencia e os centros e significados transcendentais. A centralidade conceitual ocidental não teria um lugar, mas funções a exercer, e afirma que a desconstrução e o descentramento precisam partir das noções mesmas que busca desconstruir. Para tal, ver: DERRIDA, Jacques. A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas. In: ____. A Escritura e a Diferença. São Paulo: Editora Perspectiva,1995, p. 229-252.

34

Para Nietzsche, existiriam apenas uma visão e um conhecer perspectivos. Buscar eliminar as vontades e suspender os afetos seria castrar o intelecto, impossível. O puro sujeito do conhecimento não passaria de uma fábula conceitual. Cf. NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 100-101.

35 BUTLER, op. cit., 2008.

36 Sem versão em português, o texto é uma tradução pessoal. Para tal, ver: BUTLER, op. cit.,

2002.

37 Quase ao final de A dominação masculina, o sociólogo chega a citar uma passagem escrita

por Butler justamente para ironizar as errôneas interpretações que seu livro e em especial a performatividade suscitaram, como se a autora estivesse assumindo um erro que, na realidade, teria sido cometido por seus intérpretes e transformado em piada por ela. Para tal, ver: BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011, p. 122-123. Já para o texto de Butler, ver: BUTLER, op. cit., 2002, p. 12-13.

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do invisível é necessária para circunscrever a esfera dos sujeitos. Esta zona de inabitabilidade constitui o limite que define o terreno do sujeito; constitui o lugar de identificações temidas contra as quais - e em virtude das quais - o terreno do sujeito circunscreve sua própria pretensão à autonomia e à vida. Neste sentido, o sujeito se constitui através da força de exclusão e abjeção, uma força que produz um exterior constitutivo do sujeito, um exterior abjeto que, apesar de tudo, é interior ao sujeito como seu próprio repúdio fundacional. A formação de um sujeito exigiria uma identificação com o fantasma normativo do sexo e esta identificação se daria através de um repúdio que produz um campo de abjeção, um repúdio sem o qual o sujeito não pode emergir.38 Agora sim, o Gênero se torna categoria útil para minha análise histórica.

Ora, como esta pesquisa se utiliza de notícias que nomearam tais sujeitos, faz-se necessária uma problematização deste processo. Parto da pressuposição de que o que foi escrito no jornal constituiu-se a partir de posicionamentos assimétricos: se de um lado temos a abjeção, materializada em corpos, sexos e gêneros considerados inabitáveis, por se desviarem e por desviarem as normas de gênero, do outro temos o discurso que a constitui enquanto tal a partir de uma topografia linguística que organiza a ordem social por meio de seu poder de nomeação ou nominação, que classifica os sujeitos em lugares circunscritos por uma multiplicidade de campos de poder e saber.39 A partir desta relação desigual, portanto, os sujeitos são chamados de forma afrontosa, ofensiva, a ocuparem determinadas posições – nas palavras, novamente, de Judith Butler, mediante interpelação injuriosa.

Ao ser chamado, nomeado, receber uma designação, ao ser interpelado, os termos constituem social e culturalmente tais sujeitos. O paradoxo apontado por Butler é que somente ocupando tal lugar e sendo ocupado pelo apelativo injurioso há a possibilidade de resistir, transformar este poder que constitui, em poder ao qual o sujeito se opõe, condição para a ressignificação do que injuria por meio da imitação burlesca ou o que a filósofa chama de adesão paródica.40 Neste trabalho, proponho a nomeação de tais práticas e sujeitos como desviantes, partindo do pressuposto de que o desvio é não um erro, um descaminho, mas em especial a mudança de direção, a sinuosidade, o recurvo em diferentes sentidos, o inclinado que altera, desloca, desestabiliza o

38 Para tal, ver: BUTLER, op. cit., 2002, pp. 19-20. 39

Para tal, ver CERTEAU, Michel de. A linguagem alterada. In: ____. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 261-288.

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preceito, a regra, o teor, a norma.41 Não uma qualidade inerente a um comportamento, aparência ou sujeito, mas produzido na e pela interação contextual, histórica, entre o desvio e a reação a ele, ambos mutáveis, como espero demonstrar ao longo do texto.42 Ora, se ser desviante envolve um processo relacional, é indispensável pensar o próprio desvio e os sujeitos desviantes dentro de modalidades que a fonte permita reconhecer, como raciais, classistas, regionais, geracionais, ou seja, em múltiplas interseções constituintes, valorativas, hierarquizantes,43 todas elas perpassadas por discursos que se querem verdadeiros em torno do sexo e dos prazeres, que se multiplicam, produzem saberes, geram poderes. Em outras palavras, pelas sexualidades desviantes, alvos, produtos de discursos que, paradoxalmente, só podem emergir a partir delas.44

Para caracterizar o espaço em que tais interpelações injuriosas acontecem, recorro a Michel Foucault, que em A ordem do discurso45 discorre sobre alguns procedimentos de controle da produção de discursos. A partir do filósofo, entendo o jornal como uma sociedade de discurso, que conserva e produz discursos para fazê-los circular a partir de determinadas regras. A escrita jornalística seria um ritual que define a qualificação daqueles que falam, a eficácia suposta ou imposta das palavras, os efeitos, coerções e limites sobre aqueles aos quais se dirigem e sobre os quais profere tais discursos, o que me levou a buscar mapear, ao longo do primeiro capítulo, determinados procedimentos de tal escrita e de seu processo de produção diária.

Dentro das páginas jornalísticas, nem todas/os são qualificadas/os a proferir discursos, ou seja, existe a rarefação dos sujeitos autorizados a falar. Constituído por uma multiplicidade de discursos provenientes de campos de saber e poder variados que ora convergem, ora divergem, o discurso jornalístico obedece a determinadas regras do que o filósofo chama de “polícia discursiva” para encontrar-se no verdadeiro de sua época, entendendo que encontrar-se no verdadeiro significa produzir efeitos de verdade que constituem aquilo sobre o que se fala a partir de regras e coerções que

41 Para tal, ver: LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho – ensaios sobre sexualidade e

teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2008, p. 17.

42 BECKER, Howard S. Outsiders: estudos de sociologia dos desvios. Rio de Janeiro: Zahar,

2008, p. 27.

43 Para tal, ver: BUTLER, op. cit., 2008, p. 20.

44 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro:

Edições Graal, 2007, p. 77-83.

45 Para tal, ver: FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de

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distinguem o verdadeiro do falso, determinadas por instituições e locais institucionais de quem fala, técnicas e procedimentos que formam saberes e atribuem ao considerado verdadeiro efeitos de poder específicos.46 Como entender esta palavra que se repete constantemente, o poder?

Recorro novamente a Michel Foucault, que em História da

Sexualidade I: a vontade de saber,47 explica que o poder deve ser entendido como múltiplas correlações de força próprias ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização, transformadas, reforçadas ou invertidas por lutas e afrontamentos, que se apoiam umas nas outras formando cadeias, defasagens, contradições, estratégias em que se originam e se solidificam institucionalmente em aparelhos estatais, leis, hegemonias sociais. As correlações de força, condição de possibilidade do poder, são móveis, desiguais, e induzem a estados de poder instáveis e localizados. O poder se produz a cada instante, está em toda parte, em todas as relações, provem de todos os lugares. Para o filósofo, o que se convenciona chamar “O Poder” seria apenas um efeito de conjunto, esboçado a partir de mobilidades nas quais se apoia e procura fixar. Poder é o nome dado a uma situação estratégica de forças desequilibradas, heterogêneas, instáveis, tensas. Ele se exerce a partir de inúmeros pontos e em meio a relações desiguais, móveis.

As relações de poder não são exteriores a outros tipos de relações (econômicas, sexuais, de conhecimento), mas fazem parte delas. São efeitos de partilhas, desigualdades e desequilíbrios que se produzem nas mesmas e são condições internas destas diferenciações. Elas possuem um papel produtor. Assim, para além do binarismo dominante-dominado, as correlações de força múltiplas atuam como suporte a efeitos de recorte que atravessam o corpo social e simultaneamente provocam redistribuições, alinhamentos, homogeneizações, arranjos, convergências.

As grandes dominações seriam efeitos hegemônicos sustentados por afrontamentos, e onde há poder há resistências, pontos que representam o adversário, o alvo, o apoio, e que estão presentes no campo estratégico das relações de poder. Eles são o outro termo nas relações de poder e são distribuídos de modo irregular, disseminam-se, são móveis e transitórios, introduzem na sociedade clivagens que se deslocam, rompem unidades e provocam reagrupamentos, recortam e remodelam os próprios indivíduos. A fragmentação dos pontos de

46 Para tal, ver: FOUCAULT, Michel. Verdade e poder. In: ____. op. cit., 2006, p. 01-14. 47 FOUCAULT, op. cit., 2007, p. 102-113.

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resistência atravessa estratificações sociais e unidades individuais e as relações de poder são modificadas pelo seu próprio exercício, não havendo um modo de sujeição estável e dado definitivamente.

As relações e exigências de poder instituem algo como objeto e, ao tomá-lo como alvo, investem sobre ele através de técnicas de saber e procedimentos discursivos através de focos locais de poder-saber – diferentes formas de discurso veiculam formas de sujeição e esquemas de conhecimentos em vaivém, e as distribuições de poder e apropriações de saber, as relações de poder-saber, são matrizes de transformações que só atingem efeitos globais se apoiadas em relações precisas e tênues que servem de suporte e pontos de fixação.

É no discurso que se articulam poder e saber, a partir de uma multiplicidade de elementos discursivos e estratégias. Coisas ditas e ocultas, enunciações exigidas e interditadas, produção de variantes e efeitos diferentes segundo quem fala, sua posição de poder, o contexto institucional em que se encontra. Discursos não são completamente submetidos ou opostos ao poder, eles podem ser instrumentos e efeitos de poder e também obstáculos, pontos de resistência e oposição. O discurso produz, veicula e reforça o poder, mas também pode minar, expor, debilitar, barrar. O silêncio e o segredo podem dar guarida ao poder, fixar suas interdições, mas também afrouxar laços e permitir tolerâncias. Como elementos táticos no campo das correlações de força, podem existir discursos diferentes e mesmo contraditórios dentro de uma mesma estratégia, ou os mesmos discursos podem circular sem mudar de forma em estratégias opostas. Assim, o jornal seria não apenas um local de produção de discursos, mas um local de divulgação de saberes e de relações de poder, uma sociedade de discurso que faz circular efeitos de verdade.

Mas afinal, o que seriam discursos? Patrick Charaudeau e Dominique Maingueneau,48 discorrendo sobre a categoria, afirmam que a inclusão de um texto em seu contexto ou o estudo linguístico das condições de produção de um texto o transforma em discurso. Conjunto de enunciados na medida em que provêm: da mesma formação discursiva (conjunto de enunciados a partir de posicionamentos em um campo discursivo); de um tipo de discurso (jornalístico, médico); das produções verbais específicas de uma categoria de locutores (discurso das enfermeiras, dos padres); de uma função da linguagem (discurso polêmico, discurso prescritivo).

48 CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do

Referências

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