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PARTE II – SINGULARIDADE INTERPRETATIVA

4.1 A crítica como exercício de leitura

Para Gilda, o olhar crítico deve orientar-se por uma percepção a meio caminho da ciência da arte (apud Miceli; Mattos, 2007, p.202). Nesse sentido, a ideia de entre-lugar, como um modo de lidar com a diferença, pode ser considerada uma chave de leitura possível para compreender aspectos de seu ensaísmo.1 Em entrevista concedida à Augusto Massi, Gilda definiu sua produção crítica da seguinte maneira:

A crítica que faço é uma crítica bissexta. Por isso, me permito escolher as obras com as quais tenho mais afinidade. E, em princípio gosto muito de analisar coisas de mulher. Em segundo lugar, não afino com a arte heroica. [...] A minha tendência para obra de arte é que ela seja mais baixa que o comum (Galvão, 2014, p.107).

Nesse trecho, Gilda aponta as duas principais chaves de leitura que foram mobilizadas na dissertação até o momento: i) a ideia de uma diferença feminina e ii) a “estética pobre”. Em outra entrevista do ano de 1991, ela afirmou que a crítica de arte brasileira sempre manteve um forte interesse pela arte “monumental” (dos quadros de batalha do século XIX, por exemplo) e, em oposição, possuiria uma “aversão ao insignificante” em qualquer plano que ele se apresentasse. Para ela, a arte e a crítica estiveram por muito tempo preocupadas em avaliar o “gesto heroico, a ação excepcional, a correção da realidade através de um padrão ideal de perfeição”, uma necessidade de “enaltecer o cotidiano” (Galvão, 2014, p.81).

Em linhas gerais, pode-se considerar essas duas afirmações da ensaísta a partir dos dois níveis analíticos aqui propostos: o primeiro diz respeito ao confinamento social e simbólico das mulheres ao espaço doméstico, onde tudo o que possui afinidade com o universo feminino soa estranho ao mundo masculino, podendo ser admitido apenas excepcionalmente. Há, portanto, uma forma velada de deslegitimação e mesmo dúvidas quanto a qualidade das “coisas de

1 Conferir a nota de rodapé 11 da Introdução desta dissertação. Emprego a noção de maneira similar à

conceitualização de Homi Bhabha (1998). O entre-lugar não é a fronteira, mas um modo de lidar com a diferença, em partes, como Bhabha aponta, como espaço conceitual da crítica e da sociologia, que i) avança nos modos de definir e compreender a relação colonial; ii) o fazê-lo, desestabiliza as categorias tempo e espaço e iii) Aponta para o valor heurístico e histórico da diferença.

mulher” que se encontram em oposição à monumentalidade do gesto masculino, justamente porque estão inscritas no cotidiano e no gesto insignificante, fora dos grandes atos históricos. Já o segundo nível analítico refere-se ao plano propriamente artístico, das ditas artes pobres, onde ela identifica o problema da formalização descompassada estabelecida entre a matéria local e os esquemas perceptivos herdados da tradição europeia, um processo de aclimatação dos preceitos acadêmicos das escolas de arte europeias que, durante o século XIX, por exemplo, visavam o modelo representativo dos atos históricos monumentais, problema que será analisado mais adiante.

Além dessas duas linhas chaves empregadas para compreender os principais pontos de sua crítica – a experiência/visão feminina e a estética pobre –, existem outros elementos que ela mobiliza nos ensaios dedicados a Mário de Andrade, Roger Bastide e aos colegas de grupo Clima, que podem ser convertidos em comentários sobre seu próprio método de abordagem.

Em “Paulo Emílio: a crítica como perícia” (2009, p.261), a “paixão pelo concreto”, pelas coisas do real, dos acontecimentos das obras, é o que ela define como característica compartilhada pelos integrantes do grupo de Clima que, no início da década de 1940, saiam recém-formados dos cursos de filosofia e ciências sociais da FFCL e, desinteressados pelas teorias, privilegiavam o contato direto com as obras, mas sem deixar de levar em conta o quadro social . Para Gilda, essa característica, apoiada na análise das obras e não em posições teóricas, é constituinte do processo de construção crítica minuciosa comum a todos eles, definida como uma “práxis consciente, um estilo” (2009, p.262). Mesmo que o foco desse ensaio esteja na figura e na crítica de cinema de Paulo Emílio, ele também pode ser elucidativo do trabalho da ensaísta, que também fugiu dos modelos convencionais, da exclusividade dos livros, da oscilação das vogas intelectuais, estando mais interessada em “decifrar indícios, unindo fragmentos, recompondo destroços e suprindo o que faltava com a imaginação” (2009, p.268).

Ademais, como evidenciou Otília Arantes (2006), há uma afinidade entre o “método” de Gilda e dois métodos de abordagem, que na época não gozavam de muito prestígio na academia nem nas ciências humanas, a saber, o da arqueologia visual dos mestres da escola formada pelo historiador da arte alemão Aby Warburg (1866-1929), e o método indiciário praticado pelos connaisseurs (“peritos”), notadamente pelo médico italiano do século XIX, Giovanni Morelli (1816-1891). Segundo Otília, essas referências se cruzam por dois fatores:

Um pouco por temperamento, mas sobretudo por uma escolha muito meditada, Gilda sempre valorizara, na interpretação das obras, aquilo que aparentemente era desimportante e que não aparecia de imediato numa primeira leitura ou a olho nu, os pequenos indícios a serem perseguidos, como

as pegadas, por um caçador, ou os “sinais” característicos que despertam a imaginação de um detetive, de modo a decifrar o enigma que nos é proposto pela obra, fosse ela quadro, filme ou livro. Por outro lado – já então na linha de Aby Warburg, Panofsky, mas sobretudo Gombrich –, acreditava que a interpretação de uma tela pelo crítico, tanto quanto da realidade pelo artista, era sempre mediada por um esquema dado, um modelo relacional, por isso mesmo variável, [...] A questão, porém, que se colocava para a aficcionada brasileira daqueles métodos sem prestígio não era exatamente o da atribuição de autoria da obra, nem se tratava de peritagem no sentido estrito do termo, mas de algo como uma descoberta dos “códigos” (Arantes, 2006, p. 311-312). Para Carlo Ginzburg (2014, p.150), o método desenvolvido pelo médico italiano Giovanni Morelli, indica que os dados marginais “eram reveladores porque constituíam os momentos em que o controle do artista, ligado à tradição cultural, distendia-se para dar lugar a traços puramente individuais, ‘que lhe escapam sem que ele se dê conta’”. Essa ideia é similar à que foi apresentada por Gilda (2005, p.170) quando analisou detalhadamente o filme Blow- up (1967) de Michelangelo Antonioni, onde afirma que “a intenção do criador é precária diante da autonomia incontrolável das formas”.

No entanto, Bento Prado Jr. (2006, p.32) relativiza a influência desses métodos na obra da ensaísta. Comparando sua abordagem a do historiador da arte alemão Erwin Panofsky (1892- 1968), também ligado à escola Aby Warburg, afirma que apesar de ambos se dedicarem a uma análise de iconologia atenta aos indícios, estas são praticadas “segundo espíritos diferentes”. Para Bento Prado Jr., a iconologia de Panofsky se baseia essencialmente numa epistemologia de direção iluminista e universalista, em que “a ordenação artística da experiência e do mundo abre o espaço de uma estruturação simbólica superior”, europeia, herdeira da tradição do passado ocidental. Já em Gilda, “situada na periferia do capitalismo”, encontra-se uma visão oposta, seu interesse está na arte pobre, artesanal e localizada na margem. Seus ensaios se dirigem ao campo periférico, sem tradição, situado na “convergência entre o movimento de modernização da literatura brasileira e os esforços teóricos dos sociólogos e dos historiadores para dar conta da formação brasileira” (Prado Jr, 2006, p.34). Contudo, Prado Jr (2006) identifica que há um movimento feito pela ensaísta de aclimatação das “boas tradições da Estética europeia” no contexto brasileiro, decorrente, sobretudo, de sua formação “artesanal”, ainda não marcado pela especialização e com forte influência dos professores franceses.

De acordo com Ginzburg e Enrico Castelnuovo (1989), a valorização dos detalhes e dos fenômenos marginais também é protagonizada, na produção de conhecimento, a partir dos anos 1930, pela valorização cultural e social dos sujeitos e dos espaços excluídos pela historiografia.

Nesse texto, elaboram uma crítica à relação passiva e de sentido único entre centro e periferia,2 onde o centro é por definição o lugar da criação artística, enquanto a periferia passa a ser sinônimo de atraso. À vista disso, o atraso periférico, pode ser considerado um atraso de método? (1989, p.53) Ainda segundo os autores, há possiblidades de produção crítica na periferia na medida em que os “paradigmas dominantes” produzidos no centro não são absorvidos de maneira passiva e nem reproduzam uma linha linear progressiva da história, mas procuram se inscrever em outro registro na circulação das ideias e saberes.

Embora Gilda não deixe de mobilizar uma bibliografia especializada, do “centro”, sobre os assuntos invocados - como, por exemplo, na tese de doutorado, através da aproximação metodológica com a escola de Warburg e com o método indiciário, ou na utilização de Bakhtin para analisar o processo de “carnavalização” de Macunaíma -, seu tipo de formação acadêmica, que reafirma sua inclinação de ensaísta, é justamente de onde extrai sua diferença interpretativa, convertendo-a em potencialidade. Gilda defendia que a “norma construtiva da mulher é combinatória” (Galvão, 2014, p.95), isto posto, conjugou a experiência vivida, na periferia, e as várias tradições e interlocuções ambientadas em seu contexto de formação, em definição de seu trabalho intelectual.

Em vários momentos de sua obra, ela tensiona, mesmo que de maneira implícita, fronteiras disciplinares já consolidadas, permitindo que transite livremente entre várias tradições intelectuais, o que, como notou Otília Arantes (2006, p.312), constitui um movimento singular da produção ensaística da autora: “aparentemente incapaz de captar o essencial ou a estrutura geradora de uma obra, por isso mesmo desconcertava os seus pares, intrigados com tanta despretensão teórica”. Não se filiando à nenhuma tradição, Gilda combinou diversos elementos, tendo como objetivo principal encontrar o verdadeiro sentido da obra:

Acho que para mim, a função do crítico é definida pelo termo desentranhar. Crítico é aquele que procura desentranhar o sentido que o artista encarnou na obra. Criticar é, em larga medida, des-cobrir: procurar os indícios, examiná- los, agrupá-los com o método, levantar hipóteses, tirar conclusões. Mas sempre atento ao recado da obra a sua própria informação. [...] no exercício da crítica, em vez de um conhecimento técnico, é preferível um conhecimento mais itinerante e analítico (Galvão, 2014, p.77. Grifos do autor).

Diante dessas condições, Gilda optou pelo entre-lugar do masculino/feminino, da crítica impressionista/especializada, do ensaio/da monografia especializada, da arte/da ciência, da arte rica/arte pobre, conquistando um estilo independente, forjando um espaço próprio na produção

2 Centro e periferias são considerados aqui como lugares geográficos, culturais e políticos para pensar a produção

de ideias sobre as relações entre arte e sociedade, demonstrando interesse por uma produção artística brasileira inscrita em “mundo tímido e arcaico” do século XIX e do início do século XX.