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PARTE I – O UNIVERSO FEMININO E A EXPERIÊNCIA CRÍTICA

Capítulo 2 MIOPIA FEMININA

2.3 Um lugar para a diferença

Na Introdução (“Fatos e mitos”) ao volume 1 de O segundo sexo, Beauvoir (2009, n.p.) refere-se à ideia de que quando se consentia em conceder um lugar social ao outro sexo, no caso a mulher, isto se fazia apenas em termos de uma “igualdade dentro da diferença”. Mais adiante, a filósofa francesa afirma que a partir da condição da mulher na sociedade, retomada por sua própria experiência, é que se pode compreender como as mulheres puderam se realizar dentro dessa condição: “conhecemos mais intimamente do que os homens o mundo feminino, porque nele temos nossas raízes; apreendemos mais imediatamente o que significa para um ser humano o fato de pertencer ao sexo feminino e preocupamo-nos mais com o saber”. Por esse ângulo, aponta-se que o exercício intelectual de Gilda, seja nos ensaios ou nos depoimentos e cartas que deixou, esteve em grande parte preocupado em descrever e afirmar seu ponto de vista, o ponto de vista das mulheres, o mundo que lhes é proposto.

Gilda e Antonio Candido eram amigos íntimos do casal de críticos Ángel Rama (1926- 1983) e Marta Traba (1930-1983). As últimas correspondências trocadas entre Gilda e Rama datam dos meses de agosto e novembro de 1978 e registram os derradeiros ajustes editoriais da publicação da Obra escogida (1979) de Mário de Andrade, organizada por ela e publicada no ano seguinte como volume integrante da coleção brasileira da Biblioteca Ayacucho. Devido a

essa relação de proximidade entre eles, nos cumprimentos finais de uma das cartas enviada ao escritor, ela dirige saudações à crítica de arte e escritora argentina, tecendo alguns comentários sobre as relações de proximidade e afinidade com sua personalidade e com sua obra:

penso sempre em Marta com uma devota solidariedade feminina. Não a admiro apenas como inteligência, mas afino muito com tudo que ela escreve – ensaio ou ficção; amo sobretudo a sua alma inflamada que, não obstante a paixão com que se integra às ideias e convicções, não renuncia a sua frágil diferença. [ilegível] cada vez convicta que é urgente preservar o lado positivo da cultura feminina (Candido; Rama, 2018, p. 217).

A crítica Marta Traba produziu alguns textos sobre o tema mulheres e literatura; em um deles, intitulado “Hipótesis de una escritura diferente”, escrito nos anos 70, considera que a escrita feminina está inscrita em um sistema distinto do canônico: “é uma literatura diferente, o que significa que o seu território ocupa um espaço diferente” (Traba, 1985, p.21) . A hipótese de Traba é que esse outro lugar possa ser estratégico para a afirmação das mulheres que escrevem. Partindo dele o sistema expressivo da mulher é fortemente reforçado por uma experiência particular, de percepção, elaboração e projeção, da qual se deve aproveitar.

Seguindo a sugestão do texto de Traba, com o qual Gilda parece provavelmente ter dialogado na carta, procura-se compreender quais os sentidos conferidos por ela a ideia de diferença feminina, e quais seriam as possibilidades de preservação de seu “lado positivo” em meios de realização diversos aos descritos na tese sobre a moda. Para percorrer essa questão, em um contexto posterior ao de produção da tese, retoma-se um certo ponto de uma famosa entrevista concedida pela ensaísta a Walnice Nogueira Galvão, originalmente publicada na revista Língua e Literatura (1984).16

Nessa entrevista, Gilda é questionada sobre o problema da liberdade e do destino feminino considerando retrospectivamente sua própria experiência como mulher nos primeiros tempos universitários. Para respondê-la, a autora recupera a dimensão do papel exercido pelas mulheres de sua geração, analisada, naquele momento, da posição que ocupava no mundo intelectual e universitário nos anos de 1980. Gilda afirma que não existiria vantagem em reivindicar para a mulher do mundo contemporâneo um destino “tipicamente masculino, como se isso fosse uma conquista indispensável” (Galvão, 2014, p.54). Desenvolvendo tal ideia, resgata durante a entrevista os argumentos de dois artigos escritos por Roger Bastide que foram

16 Utilizaremos a versão da entrevista republicada na coletânea Palavra Afiada (2014, p.37-61) que também foi

publicados no Brasil na ocasião do aparecimento do livro O segundo sexo (1949). Segundo Gilda, Bastide analisou as principais teses da teórica feminista refutando a ideia de que, no argumento de Beauvoir, a mulher estaria excluída da transcendência criadora, privativa dos homens, e condenada à imanência, Para Beauvoir (2009, n.p.):

o que define de maneira singular a situação da mulher é que, sendo, como todo ser humano, uma liberdade autônoma, descobre-se e escolhe-se num mundo em que os homens lhe impõem a condição do Outro. [...] O drama da mulher é esse conflito entre a reivindicação fundamental de todo sujeito que se põe sempre como o essencial e as exigências de uma situação que a constitui como inessencial.

Essa “inessencialidade” constitui a imanência, ou seja, a vida feminina limitada por seu caráter não autônomo. Segundo Gilda, Bastide teria contra-argumentado afirmando que não eram apenas as mulheres que viveriam na imanência, mas os operários, os pobres etc.17 O autor ainda defendia que para a mulher ser livre ela não precisava necessariamente escolher o projeto masculino, poderia se realizar livremente “dentro do projeto que lhe foi atribuído” (apud Galvão, 2014, p.55).

Para Gilda, a mulher não deveria “negar tudo o que a história, a cultura, haviam feito dela”; sua carreira ou realização pessoal poderiam ser feitas a partir da diferença na qual estava inscrita. A partir desse trecho, não parece haver, portanto, uma separação entre as conclusões a que a ensaísta chega em sua tese de doutorado escrita em 1950 - quando afirma que a mulher do século XX deveria “inscrever no novo curso da vida, aqueles elementos que se gravaram na sua individualidade”, “combinando a graça com a eficiência”, encontrando um equilíbrio tão harmonioso “como o estilo da mulher no século XIX” (Souza, 1987, p.107) - , com as ideias que defendia a respeito da condição da mulher nos anos de 1980.18

17 Beauvoir (2009, n.p), em contrapartida, expõe na introdução de sua obra que, na falta de um acontecimento, é o

desenvolvimento histórico que explica a existência e a distribuição de indivíduos proletários no interior de sua classe. Ao contrário, as mulheres, em virtude de sua diferença fisiológica sempre estiveram subordinadas ao homem: “sua dependência não é consequência de um evento ou de uma evolução, ela não aconteceu. A “mulher”, devido a esse fator, não consegue retornar ao seu caráter essencial porque “não opera, ela própria, esse retorno”, ou seja, a transcendência: “a ação das mulheres nunca passou de uma agitação simbólica [se comparada a dos proletários, no caso da Revolução Russa; dos negros, no Haiti etc.]; só ganharam o que os homens concordaram em lhes conceder; elas nada tomaram; elas receberam” [...] “Assim, a mulher não se reivindica como sujeito porque não possui os meios concretos para tanto, porque sente o laço necessário que a prende ao homem sem reclamar a reciprocidade dele, e porque, muitas vezes, se compraz no seu papel de Outro”.

18 Contudo, é interessante mencionar que, alguns anos depois da defesa da tese, em 1956, quando escreveu um

ensaio analisando a peça Três irmãs, do dramaturgo russo Anton Tchecov (1860-1904), Gilda faz a seguinte afirmativa: “na medida em que o indivíduo aceita o papel que lhe é atribuído, este sufocando para sempre o herói que porventura trazia dentro de si”. Mais adiante, ao se referir a uma personagem da peça, ela diz: “Para Olga, o vestido azul marinho de ginásio é opressivo”, no entanto, adaptando-se a ele, “se conforma com um papel atribuído que a distancia da vida e do humano” (Souza, 2009, p.164).

Por fim, ainda nessa mesma entrevista, Gilda endossa o argumento de Bastide, traçando um paralelo com a análise que a filósofa e militante Simone Weil (1909-1943) faz da romancista francesa Colette (1873-1954) – na qual Weil afirma que a romancista teve uma vida limitada e retirou dela sua própria grandeza. Diante desse debate, a conclusão a que Gilda chega é a de que para tratar do problema feminino com objetividade, deve-se procurar “preservar a diferença”, a “identidade feminina”. Ao final da entrevista, faz a seguinte afirmativa: “nesse momento não me interessa investigar como e porque, ao longo do tempo, fomos sistematicamente espoliadas [...] a exploração também gera defesas, formas sutis de resistência, de poupança, a valorização dos miúdos, das sobras” (Galvão, 2014, p. 56. Grifos nossos).

Nesse sentido, o argumento de Gilda aproxima-se daquele sugerido por Marta Traba, no que se refere à reivindicação de um outro lugar, diferente do canônico, do qual as mulheres devem partir para observar e atuar no mundo social:

Afinal, as mulheres podem ter as qualidades...dos seus defeitos. Talvez gostem de inventar de outro modo desprezando os projetos rígidos, excessivamente racionais, para ir experimentando, substituindo, improvisando, adaptando-se (Galvão, 2014, p.57).

Ao reivindicar o posicionamento a partir desse outro lugar, que afirma a potencialidade da diferença feminina expressa na produção cultural, descobre no processo entrecortado e fragmentário da miopia feminina, também característico de sua própria escrita ensaística, uma via legitima de expressão do trabalho intelectual e criativo, que aparece nos exercícios de leitura de Gilda como uma forma sutil de resistência.