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A crítica de Trendelenburg ao conceito hegeliano de repulsão do uno

No documento Leituras da Lógica de Hegel (páginas 175-183)

A análise do uno na lógica do ser para s

3. A crítica de Trendelenburg ao conceito hegeliano de repulsão do uno

Em suas Logische Untersuchungen, 9 Trendelenburg

questiona o método dialético e, pelo que nos interessa aqui, a plausibilidade da dedução da repulsão, ou seja, da autodiferenciação do uno em múltiplos unos. O ponto de partida dessa crítica é o conceito de ser para si. Trendelenburg admite que ser para si significa a autorrelação que resultou do fato de que o

algo se juntou consigo em seu outro. Ser para si deixa de ser mera relação com outro, mas acolhe o outro como momento de uma autorrelação. Para Trendelenburg, não é possível compreender como a “relação do negativo consigo” se torna uma “relação negativa” consigo. Baseando-se na Lógica da Enciclopédia (§96) o autor observa que a dialética do algo e do outro gera a “posição” do ser para si por meio da negação da negação, mas “não se vê como agora repentinamente a relação do negativo consigo, esquecendo este seu significado, volta-se contra si mesma e se torna uma relação negativa que fragmenta dentro de si o todo que acabou de produzir” (p. 49).

A relação do negativo consigo circunscreve o ser fazendo dele a unidade de um todo, mas como é possível que essa autorrelação se transforme numa relação negativa? Onde aparece a justificação da diferenciação do uno de si mesmo?

Se se admite que a relação negativa consigo coincide com a repulsão, surge a confusão entre a negação, que é um conceito lógico, e a repulsão, que é um conceito real, isto é, derivado da intuição sensível. De um ponto de vista lógico, fica claro o que é a negação e também a negação da negação, ou seja, a relação negativa consigo. Ao contrário, “o fato de que o uno se nega dentro de si mesmo” é “totalmente incompreensível se não se interpola a intuição de que o uno se repele de si mesmo” (p. 49). Decerto, entre negação lógica (entendida como oposição entre contraditórios) e repulsão existe uma “vaga analogia na representação” (p. 50), mas a relação negativa consigo não pode se transformar numa repulsão de si sem a intervenção da intuição real ou sensível.

Além disso, Trendelenburg argumenta que a ideia de repulsão contém uma pressuposição injustificada ao nível de pensamento lógico: “no conceito do uno que se repele de si não está uma simples representação da mecânica, como poderia parecer, mas já a ideia difícil de uma atividade livre [atuando] a partir de si mesma, de uma substância que age puramente a partir

de si e sobre si mesma. Estes conceitos grandiosos – pergunta Trendeleburg – são obtidos tão facilmente?” (p. 50). Nessa passagem, Trendelenburg admite que o conceito de autorrepulsão pode não derivar nem da negação lógica nem da representação da repulsão obtida pela intuição sensível de corpos em movimento, mas aponta que, nesse caso, seria necessária uma investigação de outro tipo (a saber, de tipo metafísico10) que a derivação dialética

simplesmente não oferece.

Em suma, a crítica de Trendelenburg contém um aspecto geral e um aspecto específico, cada qual chama para uma réplica por parte do ponto de vista da lógica hegeliana.

O aspecto geral questiona a ideia, ou melhor, a pressuposição infundada de que o pensamento investigado pela

Lógica seria uma atividade livre que produz seus próprios

conteúdos. A réplica hegeliana consistiria em voltar ceticamente essa objeção contra a lógica formal assumida por Trendelenburg, mostrando inversamente os pressupostos contidos na ideia de que o pensamento lógico não é uma atividade de determinação de seus próprios conteúdos. Esse tipo de resposta corresponde ao exame que se encontra na Introdução geral à Ciência da Lógica, onde Hegel esclarece o ponto de vista da lógica dialético-especulativa em contraste com os pontos de vista da lógica formal, da metafísica de outrora e da lógica transcendental.

O aspecto específico concerne à passagem da autorrelação para a autodiferenciação do uno. A réplica hegeliana consiste em suspender a pressuposição de que “negação” significaria unicamente e desde sempre oposição entre conceitos contraditórios e em apontar que no conceito de relação consigo está presente um momento negativo. Aquilo que se relaciona consigo precisa conter uma diferença interna, porque, em caso contrário, a expressão “relação consigo” perderia seu sentido. Mas

10Para uma reconstrução da metafísica neoaristotélica de Trendelenburg como metafísica do

o que se diferencia de si, diferencia-se absolutamente de si, quer dizer, não pode se diferenciar de si senão como um todo. Não se trata de duas partes que se juntam e se relacionam reciprocamente, nem se trata de um algo que se relaciona com outro algo fora de si, mas sim da relação consigo de um todo como um todo. Na diferenciação interna, a negação não é um operador funcional, mas o modo de ser do todo. Por causa disso, aquilo que se relaciona consigo, e especificamente o ente para si ou uno, é relação negativa consigo. O que Hegel chama de “repulsão” não é um fenômeno físico, mas o momento negativo da autorrelação do ente para si. Ao contrário, Trendelenburg pensa o negativo como algo que é negado e, então, por meio da repetição da negação, reestabelece sua relação consigo. Para Hegel, a gênese da categoria de uno mostra que a relação consigo do ser para si suprassumiu a relação com outro e, por conseguinte, a alteração como transformação de algo em outro. O uno é essencialmente negação autorrelativa, e precisamente a negação autorrelativa conduz a categoria de uno simples para a categoria do uno plural. A análise da seção “B. Uno e múltiplo” mostrou que não é possível apreender o conceito do uno sem pensar a pluralidade dos unos.

A rejeição de Trendelenburg da ideia de uma autorrelação negativa não é justificada por uma falha do método dialético, mas decorre da tese geral da dependência dos conceitos da intuição sensível e do preconceito segundo o qual o tema da Lógica são pensamentos, mas não a própria atividade de pensar, reduzida a uma esfera real ou psicológica. Desta maneira, a repulsão é concebida como um fenômeno que ocorre entre coisas reais. Pode- se conceder que os vocábulos “repulsão” e “autofragmentação do uno”11 sugerem ligações ao âmbito físico e que, portanto, sua

escolha por parte de Hegel pode não ter sido a mais apropriada. Mas é preciso acrescentar que Hegel deixou claro que o contexto

lógico não tematiza coisas ou objetos das representações, mas sim

11 HEGEL, 2016, p. 180.

determinações puras do pensar, as quais, consideradas unicamente em seu conteúdo, não têm nada a ver com a intuição sensível. A escolha dos nomes que designam as categorias não preordena o significado das próprias categorias.

Conclusão

O exame da conexão ou desconexão (no caso da “repulsão segunda”) entre uno e múltiplo mostrou que a lógica hegeliana não endossa nem um modelo henológico (primazia do uno sobre o ser) de tipo platônico nem um modelo ontológico (primazia do ser sobre o uno) de tipo aristotélico. A colocação sistemática da categoria do uno (e do múltiplo) na Doutrina do Ser e a colocação desta última na Ciência da Lógica nos convidam a fazer duas considerações conclusivas. Em primeiro lugar, o uno não é nem um ente numericamente um, nem um número nem o Uno-todo de uma cosmovisão de ascendência neoplatônica12, mas antes a

articulação mais complexa do ciclo das categorias da qualidade. Mas a qualidade é constitui apenas o primeiro dos três ciclos categoriais do ser, portanto o uno não coincide com o sujeito

12O processo da Ideia em Hegel é diferente da emanação do uno dos neoplatônicos sob quatro

aspectos importantes. Em primeiro lugar, na Ideia não há hiato entre primeira e segunda hipóstase, entre o uno e o nous, porque a Ideia é uma e simultaneamente múltipla, e é o uno (o elemento lógico) que produz o intelecto (elemento espiritual) e o mundo (natureza) negando a si mesmo, isto é, dividindo-se em nous ativo e nous passivo. Em segundo lugar, o processo da Ideia confere ao momento da passividade uma significação mais relevante do que a emanação neoplatônica, porque a passividade pertence ao nous (isto é, ao elemento lógico) enquanto este é a racionalidade implícita de tudo o que é; a passividade não é uma queda da união originária, mas a atividade inconsciente do lógico na esfera da natureza e do espírito finito. Em terceiro lugar, a apropriação neoplatônica do intelecto aristotélico desconhece o princípio moderno da experiência, o qual inclui a particularidade e subjetividade do pensar, e assim desconhece o Nachdenken como processo de transformação que se eleva do pensar subjetivo (atividade do eu) ao ponto de vista do pensar objetivo. Em quarto lugar, a relação entre espírito finito e espírito infinito não é uma relação de comunhão ou participação entre alma humana e as hipóstases, em que o elemento participado permanece igual a si mesmo, indiferente ao elemento participante, mas antes uma determinação recíproca de objetivação do subjetivo e de idealização do objetivo, o ritmo de exteriorização e de interiorização em que a ideia se torna Ideia para si na dupla relação constitutiva do espírito: a relação do em si (logos que atua) com a efetividade, e a relação do espírito efetivo com seu saber-se.

absoluto da Lógica de Hegel, embora seja uma etapa necessária para a autocompreensão desse mesmo sujeito. Em segundo lugar, o múltiplo não pode ser pensado sem desenvolver a categoria de uno, porque todo múltiplo é necessariamente autorrepulsão do uno (repulsão segundo o conceito) ou composto de unos (repulsão segunda).

A identidade entre matemática (especificamente, teoria dos conjuntos) e ontologia proposta por Badiou contrasta com o argumento hegeliano examinado acima, porque o filósofo francês

postula o ser como pura multiplicidade, sem qualquer resolução

numa figura de unidade. A primeira lei ontológica de Ser e o

Evento (1988) afirma que todo múltiplo é múltiplo de múltiplos,

ente “sem-um”; portanto, a multiplicidade entendida como conjunto é a categoria fundamental da ontologia de Badiou. A este respeito, a análise lógica do uno pode abrir o campo de um confronto entre a ontologia de Badiou e a Lógica de Hegel em torno da questão: por que é necessáro identificar ontologia e matemática? Para Badiou, a resposta remete a um axioma que não pertence nem à ordem da necessidade matemática nem àquela da necessidade lógica, mas antes à vontade de quebrar “a série unificadora entre infinito, um e absoluto”13, ou seja, à vontade de

romper com a tradição onto-teo-lógica da metafísica aceitando o diagnóstico de Heidegger, sem compartilhar seu projeto de ontologia fundamental e ainda menos sua virada tardia para a linguagem poética. Em todos os casos, a posição da categoria do uno na progressão da Doutrina do Ser, especialmente o fato de que o uno não pode ser nem categoria primeira nem categoria última, aponta as múltiplas direções para onde buscarmos a resposta da lógica dialética ao desafio lançado por Badiou: o questionamento de qualquer início axiomático em filosofia, a discussão do início da ciência por meio de uma decisão, porém não de tipo axiomático, a reivindicação de uma passagem imanente da qualidade para a

quantidade, a filosofia da matemática exposta na segunda seção (quantidade) da Doutrina do Ser, com sua explicação do número como efeito de uma “conta-por-um”, a subtração do infinito hegeliano da alternativa entre monismo ou pluralismo ontológico.

Referências

BEISER, F. German Late Idealism. Trendelenburg and Lotze. New York: Oxford University Press, 2013.

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HEGEL, G.W.F. Ciência da Lógica. 1. A Doutrina do Ser. Petrópolis: Vozes, 2016. HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio (1830).

Volume I: A Ciência da Lógica. São Paulo: Edições Loyola. 1995. MADARASZ, N. O múltiplo sem um. São Paulo: Ideias &Letras, 2011.

REALE, G. “L’‘henologia’ nella Repubblica di Platone: suoi presupposti e sue conseguenze”. Em: L’Uno e i molti, Melchiorre V. (Org.). Milano: Bompiani, 1990, pp. 113-53.

hegeliana atuante nas mediações do silogismo

No documento Leituras da Lógica de Hegel (páginas 175-183)