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A relação da Lógica hegeliana com a Fenomenologia do

No documento Leituras da Lógica de Hegel (páginas 82-87)

Uma pequena introdução à Lógica de Hegel

I. A relação da Lógica hegeliana com a Fenomenologia do

Espírito

Mas como nós alcançamos aquele âmbito do pensar puramente conceitual que Hegel denomina o lógico? A relação da

Lógica com a Fenomenologia do Espírito nos dá indicações sobre

esse processo. A Fenomenologia do Espírito tem para Hegel uma função introdutória, propedêutica à Ciência da Lógica, que, na verdade, é imprescindível para o espírito finito que nós simplesmente somos. Ela é, por isso, apenas no sentido genético, não num sentido teórico-validacional, uma pressuposição para a

Lógica. Há que se dizer, portanto, que a Fenomenologia do Espírito

não é nenhuma parte integrada do sistema definitivo de Hegel, – o que naturalmente não altera o fato de que a riqueza de suas análises singulares não foi superada em nenhum outro escrito de Hegel. Aqui são refutadas formas deficitárias da consciência para alcançar aquela esfera pura do pensar conceitual, que é desdobrada na Lógica. A pressuposição da Lógica é, portanto, apenas que são suprassumidas pressuposições falsas, dentre outras a assim chamada oposição da consciência do sujeito e do objeto. Essa tarefa negativa da crítica de todas as pressuposições insustentáveis poderia assumir também um ceticismo consequente. Esse ceticismo estaria consumado na “decisão” de “querer pensar

puramente, pela liberdade [...] que abstrai de tudo e apreende sua

abstração pura, a simplicidade do pensar”, como Hegel diz na

Enciclopédia (Enc. I § 78 obs.; TW 8, 168). 4

De fato, com essa espécie de pressuposição que a Lógica tem na Fenomenologia do Espírito, é compatível que Hegel conceda

4 Por este motivo Hegel pôde, mais tarde, pôr o conceito preliminar da pequena Lógica enciclopédica,

que conduz de modo reduzido, a saber, através da discussão das posições fundamentais filosóficas da Modernidade e da Contemporaneidade (metafísica, empirismo, filosofia crítica, saber imediato cf. Enc. I §§ 26-78), a consciência ao ponto de vista da Lógica, no lugar da Fenomenologia do Espírito como introdução à Lógica. Foi essencialmente a hipercomplexidade da Fenomenologia do Espírito que levou Hegel a essa substituição reduzida.

à Ciência da Lógica “ausência de pressuposição” (Enc. I § 78 obs.; TW 8, 168). Se se leva a sério a intelecção central de Hegel segundo a qual cada reflexão – e isso vale também das investigações filosóficas reais como a da Fenomenologia do Espírito – pressupõe inevitavelmente categorias lógicas, assim se torna inevitável reconhecer que a Fenomenologia do Espírito, pelo contrário, pressupõe inversamente a Lógica. Em todo caso, a Fenomenologia

do Espírito não poderia fundamentar de igual modo a Lógica tal

como esta aquela, sem cometer um círculo vicioso. A Ciência da

Lógica é, portanto, teórico-validacionalmente uma ciência sem

pressuposto; e isso ela é, porque ela pode se fundamentar reflexivamente a si mesma. Em todo caso, Hegel tem uma convicção profunda no fato que o pensar pode se fundamentar no pensar a si mesmo. E precisamente isso é a tarefa da Ciência da

Lógica. O pensamento da autofundamentação da lógica parece,

portanto, ser central para o projeto de Hegel da Ciência da Lógica, que, sob pontos de vista teóricos de fundamentação, reivindica supremacia diante de todas as posições filosóficas anteriores.

O “lógico” (Lógica I, Prefácio 2, 32; TW 5, 20) é o princípio absoluto fundamentalmente irredutível, porque é o princípio do pensar do pensar que fundamenta a si mesmo, o qual precede a todo o pensar do homem finito e está na base de todo o ser real da natureza e do espírito. Essa intenção fundamental da Lógica de Hegel encontramos em formulações como aquela do lógico como “forma absoluta” (Lógica I, Introdução, 52; TW 5, 44) ou do “absolutamente verdadeiro” (Lógica I, Introdução, 62; TW 5, 56) ou do conceito como “base absoluta” (Lógica II; TW 6, 264). Visto que a lógica pressupõe apenas a si mesma, a lógica, o empreendimento da Ciência da Lógica pode ser interpretado como autorreconstrução da lógica. Como teoria sem pressuposição, a lógica de Hegel é ao mesmo tempo metafísica, filosofia primeira. 5

5 Como autofundamentação e, com isso, fundamentação última da lógica, a Lógica é ao mesmo

tempo metafísica, filosofia primeira. Dessa ideia do lógico como uma estrutura que fundamenta a si mesma e precede a todo o ser real é deduzida também a pretenção da Lógica Hegeliana de ser

A Lógica é “ciência do pensar puro”, que tem por princípio e base “o saber puro” (Lógica I, Introdução, 63; TW 5, 57), tal como ele, no fim da Fenomenologia do Espírito, surge como resultado da sequência das figuras da consciência, no qual a oposição da consciência do sujeito e do objeto juntou-se numa unidade do conceito e do ser e, com isso, estabelece o âmbito do pensar puramente conceitual, o lógico, que tem ao mesmo tempo significado ontológico. Dentro desse âmbito se efetua o desenvolvimento do conceito da Lógica.

Ora, qual é o tema especial da Lógica? O tema da Lógica são as “formas necessárias e as próprias determinações do pensar” (Lógica I, Introdução, 53; TW 5, 44). Em nosso pensar natural essas formas estão já sempre relacionadas com conteúdos objetivos, enquanto a Lógica as considera puramente por si. Correspondentemente o conteúdo da Lógica não é nada mais do que essas formas mesmas do pensar.

A consciência natural, diz Hegel, “enredada nos laços de suas categorias, está fragmentada numa matéria infinitamente múltipla” (Lógica I, Prefácio 2, 37; TW 5, 27). As formas do pensar estão expostas e depositadas na linguagem. A ciência lógica tematiza as determinações do pensamento, que em geral perpassam nossa linguagem instintiva e inconscientemente. Sua tarefa é o desvelamento daquilo que está envolvido na linguagem, o descobrimento do solo no qual nós, como falantes, já sempre estamos. Esse solo Hegel designa, como nós vimos, como aquele “lógico” (Lógica I, Prefácio 2, 32; TW 5, 20), que ele confronta e antecipa à natureza e ao espírito. Nesse sentido, a Lógica de Hegel é algo similar a uma fundação da semântica, uma certificação reflexiva da linguagem que avança para a estrutura lógica subjacente à linguagem. Não se deve, todavia, nivelar a Lógica de Hegel com a semântica ou com a teoria da linguagem. Seu escopo é

teologia especulativa. Em todo caso, Hegel compreendeu sua Ciência da Lógica continuadamente como uma teoria do absoluto.

analítico de linguagem apenas na medida em que ela põe em liberdade as determinações do pensamento contidas na linguagem. Na Lógica Hegel considera, portanto, as determinações do pensamento ou as formas do pensar puramente em e para si, quer dizer, não como elas estão relacionadas com substratos conteudísticos, mas livre dos substratos sensíveis, os substratos da intuição e da representação. Para evidenciar essa ausência de substrato, Hegel dinstigue entre as coisas e a Coisa como o conceito das coisas (Lógica I, Prefácio 2, 39; TW 5, 29). A Lógica lida com a Coisa conceitual, porque o próprio conjunto das formas do pensar é o conteúdo universal pensado (Hegel também diz: o conteúdo verdadeiramente substancial) de toda a efetividade.

Com que direito Hegel pode fundar sua lógica na hipótese da identidade da forma e do conteúdo das determinações do pensamento? As formas do pensar, cuja conexão a Lógica investiga, estão, com efeito, desligadas dos conteúdos da nossa consciência habitual bem como das coisas enquanto substratos sensíveis, mas somente porque elas mesmas constituem o conteúdo verdadeiro de todas as coisas. Que as determinações do pensamento da lógica já sejam elas mesmas o conteúdo verdadeiro, é uma declaração legítima, desde que as determinações do pensamento sejam o pensado fundamental em todo o pensar conteudístico. O pensar no sentido pleno do pensar conceitualizante, que alveja a verdade, é apenas o que é, como o pensar de um conteúdo que perdeu a forma de um substrato imediatamente intuido e representado e foi acolhido na forma do pensamento. A determinidade do conteúdo se deve, contudo, às determinações do pensamento, e elas se chamam determinações, porque elas dão ao conteúdo sua determinidade fundamental. A tese de Hegel, portanto, é: a própria Coisa, o conceito das coisas nos é dado apenas no pensar, no conjunto das determinações do pensamento. Nesse caso, nós temos que distinguir um conceito duplo de conteúdo: (i) fora da lógica permanece o conteúdo determinado do substrato da intuição e da representação, (ii) disso

se diferencia o conteúdo das próprias determinações do pensamento. Esse conteúdo se deve às formas do pensar como formas.

Eu gostaria de tentar esclarecer esse estado de coisas sucintamente. Hegel elogia Platão, porque ele reconheceu a natureza das determinações do pensamento. No diálogo Fédon Platão introduz o termo “ideia”, na medida em que ele deixa claro a diferença entre o igual e a igualdade, quer dizer, entre aquilo o que é aí igual e a própria igualdade (Fédon 74as.). Se eu penso “o que é aí igual”, se considero dois objetos, por exemplo, dois fósforos, se eles são iguais ou desiguais, o que no fundo eu penso é a própria igualdade ou desigualdade. Hegel manifesta explicitamente a consequência da ausência de substrato numa passagem radicalmente polêmica, e precisamente aí onde ele critica “o mal- entendido fundamental, a péssima conduta, quer dizer, inculta, de pensar, na consideração de uma categoria, algo outro e não essa própria categoria” (Lógica I, Prefácio 2, 41; TW 5, 32). Essa péssima conduta se mostra não apenas, quando se pensa na determinação “ser aí”, tal como na determinação “algo”, mas também quando, ao invés da determinação, se pensa no determinado, no determinado pela determinação, quando não se pensa, portanto, meramente “identidade”, mas esse ou aquele idêntico, não apenas “oposição”, mas todas as relações opostas possíveis no mundo. E assim vale na contradição justamente pensar essa categoria e não qualquer contraditório, por exemplo, a contradição entre trabalho assalariado e capital.

Conceitualizado de maneira geral pode-se, portanto, dizer que a tarefa da Lógica é “trazer à consciência essa natureza lógica, que anima o espírito, impulsiona e age nele” (Lógica I, Prefácio 2, 37; TW 5, 27). A Lógica lança luz sobre aquilo que se pensa, quando se pensa; ou nela é pensado o que se pensa, quando se pensa. Hegel diz: “Purificar essas categorias, que são ativas apenas de modo instintivo e, primeiramente, [são] trazidas à consciência do espírito como isoladas e, com isso, de maneira variável e

confusa, conferindo-lhes, assim, uma efetividade isolada e incerta e elevar, com isso, o espírito nas categorias à liberdade e à verdade, isto é, portanto, o empreendimento lógico supremo” (Lógica I, Prefácio 2, 38; TW 5, 27). Pois, “o ponto mais importante”, assim diz Hegel, “para a natureza do espírito é a relação [...] como ele se

sabe; esse saber de si é, porque ele [é] essencialmente consciência,

determinação fundamental de sua efetividade” (idem.). Na Lógica, o pensar se torna objeto de si, adquire um saber de si mesmo e do seu poder irredutível. O fim e a finalidade da Lógica é, portanto, trazer o poder do pensar a si mesmo ao saber de si. Na Lógica se trata do estabelecimento da dominação da razão que se fundamenta a si mesma.

No documento Leituras da Lógica de Hegel (páginas 82-87)