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A credibilidade e a complexidade dos sistemas

3.3 Credibilidade e Internet

3.3.4 A credibilidade e a complexidade dos sistemas

A síntese da teorização do ethos ou credibilidade por Aristóteles e pelos investigadores de Yale que acabámos de fazer permite-nos concluir que há, do primeiro para os segundos,81um duplo alargamento do conceito:

alargamento, por um lado, de um ethos meramente artístico, limitado à situação concreta do discurso e manifestando-se no logos e através do logos, até um ethos que se confunde com o conjunto das características do orador/comunicador, de que o logos que se exerce numa situação de discurso é apenas uma parte e nem sempre a mais relevante; alar- gamento, por outro lado, de um ethos ligado ao discurso oral e presen- cial, até um ethos ligado aos “comunicadores” em geral, incluindo aí os meios de comunicação de massas.

A nossa tese é a de que um tal alargamento está longe de ser oca- sional ou de se dever apenas à lógica intrínseca à evolução da própria retórica; ele dever-se-á, antes, ao movimento histórico que leva, ainda que não de forma “progressiva”, isto é, linear e contínua, a uma socie- dade cada vez mais complexa, e que culmina, já nas últimas décadas do século XX, na “sociedade da informação”. Este aumento da comple- xidade social liga-se, de forma directa, ao desenvolvimento dos meios de comunicação. Com efeito, uma sociedade mais complexa é uma so- ciedade em que as alternativas ou escolhas possíveis, para indivíduos e grupos, são em maior número – ou, dito em linguagem de Shannon

80Hovland, Janis, Kelly, Communication and Persuasion, p. 47. Traduzimos o

termo experts por “competentes”

81Este alargamento passa, obviamente, pelo papel de autores como Cícero, Quinti-

e Weaver, uma sociedade em que a quantidade de informação é maior. Ora, este aumento da quantidade de informação só é possível quando, aos tradicionais meios de comunicação presenciais e “de proximidade” – a voz, o gesto, o movimento, a mímica, etc. – se juntam os meios que permitem a tele-comunicação, a começar pela escrita e a continuar na imprensa e nos meios electrónicos, incluindo a Internet.

Que a histórica da retórica se inscreve neste momento histórico mais geral para a complexidade e a tele-comunicação pode inferir-se, também, das obras de estudiosos como Walter Ong e George Kennedy. Assim, de acordo com Kennedy, é possível distinguir entre uma retó- rica primária e uma retórica secundária: a primeira refere-se à retórica como arte de persuasão, primariamente oral – embora o discurso pu- desse, depois de proferido, ser passado a escrito; a segunda, à retórica enquanto “embebida” na escrita e nos meios subsequentes, em virtude de um processo de “literaturização” (do italiano letteraturizzazione).82

Desta “literaturização” deriva, ainda de acordo com Kennedy, a altera- ção dos próprios géneros retóricos. Assim, dos três géneros retóricos aristotélicos – o epidíctico, o judiciário e o deliberativo –83, passamos,

na Idade Média tardia, a uma retórica que “era olhada quer como oral quer como escrita”. À retórica oral pertenciam, sobretudo, a pregação e a controvérsia oral; à escrita, a retórica em verso, manifestando-se em tópicos, tropos e figuras, e a retórica em prosa, sob a forma de epísto- las – verificando-se que “as três formas mais características da retórica na Idade Média tardia eram a pregação, a poesia epidíctica e as epísto- las”.84

Quanto a Ong, é conhecida a sua afirmação de que, a partir da anti- guidade clássica, a retórica “migrou, gradual mas inevitavelmente, do

82Cf. Kennedy, Classical Rhetoric, pp. 2-4; 128-130.

83Que Kennedy apresenta da seguinte forma: “Aristóteles dividiu o assunto da

retórica naquele que não exigia um juízo do auditório e naquele que o exigia. O primeiro era epidíctico. O segundo envolvia juízo ou acerca do passado, no caso da retórica judicial, ou acerca do futuro, no caso da deliberativa.” Kennedy, Classical Rhetoric, p. 225.

mundo oral para o mundo quirográfico”. Assim, os recursos retóricos passaram a ser utilizados na escrita – a retórica vai começando a fazer surgir a “estilística” – e, por volta do século XVI, os próprios manuais de retórica já omitiam, das partes desta, a memória, ao mesmo tempo que minimizavam a pronunciação – um processo que continuou de tal modo que hoje, “quando os currículos listam a retórica como uma ma- téria, isso significa, usualmente, apenas o estudo de como escrever de forma efectiva”85. No que se refere ao mundo da pós-tipografia ou

electrónica, a prática retórica/oratória sofre também alterações. Assim, e para se referir apenas o que acontece no campo da política, aconteci- mentos como os debates entre candidatos presidenciais são hoje muito diferentes dos que ocorreram, por exemplo, entre Lincoln e Douglas, em 1858: feitos frente a um auditório de milhares de pessoas, durante várias horas, com os oradores a discursar alternadamente. Com meios como a televisão, para além de o auditório se encontrar ausente, invi- sível e inaudível – o que não permite monitorizar, em tempo real, as reacções do auditório, de forma a adaptar-se a elas –, cada um dos can- didatos tem de fazer apresentações curtas, evitar o antagonismo aberto, etc.86 Exigências a que podemos acrescentar outras como a demonstra-

ção do maior auto-domínio possível, a repetição de determinadas pala- vras ou frases consideradas fundamentais (sound-bytes) ou a utilização de argumentos o mais simples e directos possível.

A diferença entre a sociedade do tempo de Aristóteles e a “socie- dade da informação” no que se refere à credibilidade pode ser traçada da forma que se segue: no primeiro caso temos uma sociedade em que todos os cidadãos estão em condições de discutir todos os assuntos relativos à polis, valendo, em cada caso, os melhores argumentos em presença – e em que, portanto, interessa o que se diz – o discurso – e não propriamente quem o diz – o orador. No segundo caso, temos uma sociedade em que a competência para discutir os diversos assuntos va-

85Walter J. Ong, Orality and Literacy. The Technologizing of the Word, London,

Routledge, 1988 (1982), p. 114.

ria de cidadão para cidadão ou de grupo para grupo de cidadãos – pelo que interessa, em cada caso, interrogar a competência ou “autoridade” daquele que fala – o orador –, antes mesmo de saber o que é isso que ele diz – o discurso.

No primeiro tipo de sociedade, a prudência (phronesis) aparece como uma componente decisiva do ethos do orador. Na Ética a Ni- cómaco, Aristóteles indica como próprio do homem prudente o “ser capaz de deliberar correctamente sobre o que é bom e vantajoso para si, não apenas no que diz respeito a um ponto particular (como por exemplo que espécies de coisas são favoráveis à saúde ou ao vigor do corpo), mas de uma maneira geral, que espécies de coisas por exemplo conduzem a uma vida feliz.”87 Desta maneira, a prudência é “uma dis-

posição, acompanhada de regra verdadeira, capaz de agir na esfera do que é bom ou mau para um ser humano”88ou, ainda, “uma disposição,

acompanhada de uma regra exacta, capaz de agir na esfera dos bens humanos”.89 A prudência não é, no entanto, uma disposição que res-

peite apenas à acção individual. Assim, e de acordo com Aristóteles, homens prudentes como Péricles e outros são os que “possuem a facul- dade de perceber o que é bom para eles mesmos e para o homem em geral, e tais são também, pensamos nós, as pessoas que são entendidas na administração de uma casa ou de uma cidade.”90 É possível, mais

concretamente, distinguir as seguintes espécies da prudência: a que diz respeito à pessoa privada, e a que diz respeito ao colectivo; e, dentro desta, a “economia doméstica”, que diz respeito à família e, dizendo respeito à cidade propriamente dita, a “legislação” e enfim, a “política” em sentido restrito, que se subdivide, por sua vez, em deliberativa e judiciária (em sentido amplo, a política diz respeito à cidade no seu conjunto, englobando assim a legislação e a política em sentido res-

87Aristote, Éthique à Nicomaque, 1140 a 25, Paris, Librairie Philosophique J. Vrin,

1994, pp. 284-5.

88Aristóteles, Éthique à Nicomaque, 1140 b 5, p. 285. 89Aristóteles, Éthique à Nicomaque, 1140 b 20, p. 286. 90Aristóteles, Éthique à Nicomaque, 1140 b 5-10, p. 286.

trito).91 Em termos da importância relativa de cada uma das espécies

da prudência, há uma sobredeterminação da prudência individual pela política que é, assim, superior à primeira.92 A prudência é, também,

uma capacidade de previsão, demonstrada mesmo por certos animais superiores que não o homem: “Daí resulta, ainda, que certos animais são qualificados de prudentes: são os que, em tudo o respeita à sua própria vida, possuem manifestamente uma capacidade de prever.”93

A prudência tem, finalmente, uma relação directa com a experiência – na medida em que, sendo da ordem da acção, ela não tem apenas por objecto os universais mas também os factos particulares, as coisas sin- gulares a que a acção necessariamente se refere e que são objecto da experiência.94 Uma das provas desta relação entre prudência e experi-

ência é que é inverosímil que um jovem possa ser prudente, na medida em que falta aos jovens a experiência necessária para tal – ainda que possam “tornar-se geómetras ou matemáticos ou sábios nas disciplinas deste género”.95

Em sociedades altamente complexas como a “sociedade da infor- mação”, em que as questões são difíceis de analisar e responder mesmo por parte dos peritos, a prudência é cada vez mais difícil de aplicar, a não ser como uma espécie de “princípio da precaução” que é mais uma decisão de não decisão – uma abstenção – do que uma decisão propria- mente dita. Com efeito, é impossível a cada cidadão ter conhecimento de todos os domínios da vida social e, por consequência, examinar e avaliar as diversas mensagens persuasivas atinentes a cada um desses domínios – com excepção, nem sempre verificada, dos domínios em que ele é mais ou menos conhecedor, e que tendem a ser cada vez me- nos e menores. Face a essa impossibilidade, parecem restar-lhe apenas duas soluções possíveis: ou decidir de forma mais ou menos aleatória

91Cf. Aristóteles, Éthique à Nicomaque 1141 b 20-30, pp. 293-4. 92Cf. Aristóteles, Éthique à Nicomaque, 1142 a 5, 10, p. 294-295. 93Aristóteles, Éthique à Nicomaque, 1141 a 25, p. 291.

94Cf. Aristóteles, Éthique à Nicomaque, 1141 b 15, 20, p. 292-3. 95Cf. Aristóteles, Éthique à Nicomaque, 1142 a 10, 15, p. 295.

ou, então, decidir confiando na competência dos peritos – uma compe- tência que é, no essencial, veiculada e consagrada pelos/nos media.

A este respeito, pode mesmo dizer-se que a importância da credi- bilidade do orador é directamente proporcional ao grau de dúvida que uma questão envolve – quanto mais duvidosa é uma questão maior será a motivação do auditório para se concentrar na credibilidade (ou na au- sência dela) do comunicador. Como vimos atrás, era essa precisamente uma das conclusões dos estudos de Hovland e colegas.96 Uma perspec-

tiva semelhante é defendida por Michel Meyer, para quem o ethos - a “autoridade” – do comunicador permite que, de certa forma, também na retórica haja um momento em que, e para parafrasearmos a célebre afirmação de Kant que marca a transição da razão teórica para a razão prática, o saber terá de dar lugar à crença – sob pena de ficarmos inde- finidamente na dúvida e na indecisão.97 Pode-se, é claro, perguntar se

um tal momento não envolve o risco de a retórica se tornar anti-retórica, isto é, de a persuasão mais ou menos racional ser substituída pela acei- tação mais ou menos irracional. A nossa resposta a essa questão é que a “racionalidade” não se limita aos argumentos, antes se estendendo à apreciação do próprio orador, no qual decidimos acreditar (ou não) por determinadas razões, por motivos que podem ser tão racionais como os que nos permitem examinar os seus argumentos; a crença não é, de forma alguma, sinónimo de aceitação irracional.

Não admira, assim, que autores como Luhmann ou Fukuyama te- nham enfatizado o papel e a importância da “confiança” nas actuais sociedades – mesmo se o fazem a partir de perspectivas e com objec-

96Cf. Hovland, Janis, Kelly, Communication and Persuasion, p. 47.

97“Assim, uma questão pode ser duvidosa não apenas porque não conhecermos a

resposta, mas sobretudo porque não dispomos dos meios para a resolver, meios co- muns partilhados pelos protagonistas e destinados a criar um acordo sobre a resposta boa ou justa. Em consequência, o ethos desempenha então um papel mais determi- nante: a credibilidade daquele que fala e propõe, a sua “autoridade”, porá ponto final nas dúvidas, teoricamente sem fim, sobre as respostas propostas.” Michel Meyer, Questões de Retórica: Linguagem, Razão e Sedução, Lisboa, Edições70, 1998, p. 36.

tivos diferentes98. No caso de Luhmann, a confiança é uma condição

que permite às sociedades, simultaneamente, aumentarem a sua com- plexidade e reduzirem – e lidarem com – essa mesma complexidade99.

Este duplo desiderato torna-se possível porque, mediante a confiança, os indivíduos podem agir como se tivessem a informação que não têm – mas que confiam que outros tenham – e, também, orientar o seu com- portamento por determinadas expectativas comuns a todos os indiví- duos, incluindo os ausentes – sabendo, num e noutro caso, e como se diz habitualmente, “com o que podem contar”. Neste sentido, e como observa Luhmann noutra parte do seu livro, os argumentos até podem ser motivo de desconfiança – já que “oferecer informação factual, deta- lhada e argumentos especializados é negar a função mesma e a forma da confiança, embora deva sugerir-se a possibilidade de tal explicação”.100