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A crença como operação estrutural: véu necessário

O fundamento da crença em Freud vincula-se à noção de Verleugnung que traduziremos por recusa. Se fizermos uma busca da palavra crença ou de alguma expressão similar no índice das obras completas não encontraremos nenhuma referência. Este tema não recebeu um tratamento sistematizado em Freud. Mas isso não quer dizer que no pensamento freudiano esta discussão esteja ausente e sim que a mesma foi se produzindo no seio da teoria de forma indireta e irregular. Três textos especificamente formam uma espécie de matriz sobre a interpretação psicanalítica da crença: Fetichismo (1927), A divisão do ego nos processos de defesa (1938) e Esboço de psicanálise, seção

VIII (1938). Segundo Mannoni, com o texto O fetichismo Freud “abriu a problemática da

crença, dando toda a precisão necessária à noção de Verleugnung” (Mannoni, 1973, p.10). O conceito de Verleugnung foi se estabelecendo gradativamente ao longo das elaborações freudianas. É em A divisão do ego nos processos de defesa (1938) que encontramos um último esforço elucidativo sobre sua definição.

Em 1927, Freud introduz a Verleugnung no contexto de suas investigações sobre o fetichismo. Em todos os casos estudados por ele, a constituição do fetiche estava associada a uma recusa em tomar conhecimento do fato desagradável de que a mulher não possuía pênis. Esse encontro traumático com a castração feminina tinha na instalação do fetiche, sua resolução. Segundo Freud:

Na situação que estamos considerando, (...) vemos que a percepção continuou e que uma ação muito enérgica foi empreendida para manter a rejeição. Não é verdade que, depois que a criança fez sua observação da mulher, tenha conservado inalterada sua crença de que as mulheres possuem um falo. Reteve essa crença, mas também a abandonou. No conflito entre o peso da percepção desagradável e a força de seu contradesejo, chegou-se a um compromisso, tal como só é possível sob o domínio das leis inconscientes do pensamento – os processos primários.

Sim, em sua mente a mulher teve um pênis, a despeito de tudo, mas esse pênis não é mais o mesmo de antes. Outra coisa tomou seu lugar, foi indicada por seu substituto, por assim dizer, e herda agora o interesse anteriormente dirigido a seu predecessor (Freud, 1996/1927, p.156/157).

Vemos aqui a Verleugnung surgir como um mecanismo relacionado à perversão. Mas devemos salientar que neste mesmo texto Freud discute o caso de dois irmãos que perante a morte do pai, adotaram uma atitude semelhante à do fetichista, embora fossem neuróticos. Esses dois jovens recusaram a morte do pai – fragmento penoso e difícil da realidade – correlato da castração feminina no caso do fetichista. Merece destaque ainda o fato apontado por Freud de que conviviam lado a lado nesses irmãos, duas correntes: uma condizente com a realidade, que acatava e aceitava a morte do pai, e outra condizente com o desejo que o pai estivesse vivo, que rejeitava completamente a realidade. Nesta mesma direção encontramos no texto Reflexões para os tempos de guerra e paz (1915) um comentário análogo sobre a reação das pessoas frente à morte, também neste caso há duas correntes que coexistem embora excludentes: aquela que reconhece a morte como extinção da vida e aquela que nega tal fato, refugiando-se na irrealidade (Freud, 1996/1915). Essa presença simultânea de duas crenças que se contradizem mutuamente, essa manobra de ver e não ver, acreditar e não acreditar ao mesmo tempo, engendrará a divisão (Spaltung) no eu e fará com que Freud perceba posteriormente que a Verleugnung é um mecanismo de ocorrência mais ampla, um conceito estrutural, extensivo a neurose, perversão e psicose. O ponto que merece destaque é que o sujeito – independente da estrutura – se divide frente à castração e “isso produz uma fenda que jamais se fecha, indicando portanto que a divisão do sujeito (Ichspaltung), assim como castração, é incurável” (Quinet, 2000, p.27).

Não podemos perder de vista que uma das correntes é sempre vinculada ao desejo e submetida ao processo primário e que é essa corrente que origina a crença. “Isto quer dizer que em última análise ela [a crença] sofre os efeitos do recalcado e, em particular, do desejo inconsciente. (Mannoni, 1973, p. 11). Mas não há recalque no que diz respeito às crenças. Diante de uma percepção desagradável, o menino não alucina um pênis onde não havia nada a ser visto, ele efetua um deslocamento de valor, transfere a importância do pênis para outra parte do corpo. (Freud, 1996/1938). Para Mannoni, o dispositivo da

Verleugnung estará presente em relação a outras crenças, “como se a Verleugnung do falo

origem de todas as crenças que sobrevivem ao desmentido da experiência” (Mannoni, 1973, p.12). Para este autor, nas análises através de uma frase sempre proferida pelos pacientes – que chega quase a ser estereotipada em função de sua recorrência – confirmamos este modo de apresentação da Verleugnung desconectado do mecanismo do recalque. Trata-se da frase: “eu sei, mas mesmo assim”... (Mannoni, 1973). O eu sei, mas

mesmo assim demonstraria que apesar de ter visto algo desagradável – eu sei – a Verleugnung entra em cena e o sujeito segue acreditando na corrente mais afeita ao seu

desejo – mas mesmo assim –. Conforme observa Mannoni, só há “mas mesmo assim”, porque existe o “eu sei” e neste sentido,

A afirmação: ‘tenho certeza de que não é minha mãe’ não tem necessidade nenhuma de um ‘mas assim mesmo’. Porque o ‘é minha mãe’ permanece recalcado – precisamente da maneira pela qual o recalque subsiste após a negação. E, nesse caso, fala-se de saber e não de crença. Ou, se quisermos, não há realidade mais ou menos diretamente em jogo (Mannoni, 1973, p.13).

Em estrita consonância com o que estamos discutindo o livro de Rosset, O real e

seu duplo – ensaio sobre a ilusão traz uma descrição do conceito de ilusão muito próxima

ao conceito de Verleugnung. Rosset propõe que a “percepção do iludido é como que cindida em dois: o aspecto teórico (que designa justamente ‘aquilo que se vê’, de

théorein) emancipa-se do aspecto prático (‘aquilo que se faz’)” (Rosset, 2008, p.17). O

iludido neste caso, não negaria sua percepção, apenas efetuaria um deslocamento, não haveria nenhum tipo de conseqüência entre aquilo que é percebido e as ações conseguintes a essa percepção. O iludido segue “como se” não tivesse visto nada. Conforme ainda observa Rosset:

No recalcamento, na forclusão, o real pode eventualmente reaparecer, se acreditarmos na psicanálise, graças a um ‘retorno do recalcado’, nos sonhos e nos atos falhos. Mas, na ilusão, esta esperança é vã: o real não voltará jamais, porque já está aí (Rosset, 2008, p.18).

Rosset pretende esclarecer o vínculo existente entre a ilusão e o duplo. Como se em toda ilusão estivesse em questão uma duplicação da realidade: a realidade que se vê e aquela que se vive a despeito do que foi visto e percebido. Ou em termos psicanalíticos: há a realidade traumática e a realidade encoberta pela fantasia e pelo sintoma. Neste sentido, é possível supor que crença e ilusão estejam inevitavelmente conectados. Para Chorne, a crença teria um caráter estrutural no sujeito, uma vez que não seria possível

seguir sem esse véu (ver – não ver) lançado via Verleugnung sobre o horror à castração (Chorne, 2006). A partir dessas considerações devemos salientar o entrecruzamento entre ilusão e sintoma. Diante de uma realidade insuportável que será recusada pelo sujeito ocorre a divisão (Spaltung) no eu. A crença em “outra cena” é correlata da instalação do sintoma.

A partir do que dissemos sobre a questão da crença devemos ter em mente que um sintoma é a expressão de um conflito psíquico que surge em função exatamente de duas correntes opostas. O embate entre princípio de prazer e princípio de realidade deve ser tomado como um elemento chave em nossa investigação sobre as causas que poderiam justificar a insistência da ilusão religiosa. Como vimos, há uma vertente da crença que se submete ao processo primário e outra vertente – que reconhece a realidade – que se sujeita ao processo secundário.Freud denominou o processo primário como um modo de funcionamento do inconsciente. Os processos inconscientes procuram a satisfação pelo caminho mais curto e mais direto e são orientados pelo princípio de prazer. Toda a atividade psíquica teria por objetivo evitar o desprazer e proporcionar prazer. Nos sonhos e nos sintomas podemos reconhecer a atuação constante desse modo de funcionamento. O princípio de realidade surge secundariamente como uma modificação do princípio de prazer. A sua instauração corresponde a uma série de adaptações que o aparelho psíquico deve passar: desenvolvimento das funções conscientes, atenção, juízo, memória. É a identidade de pensamento que permite a transformação da energia livre em energia vinculada a representações inibindo a atuação do processo primário. Ocorre que o princípio de prazer continua atuando em um amplo campo de atividades psíquicas reguladas pelas leis do processo primário no inconsciente. A prevalência da fantasia na vida psíquica dos neuróticos é em parte explicada por Freud em Formulações sobre os

dois princípios do funcionamento mental (1911). A substituição do princípio de prazer

pelo principio de realidade ocorre de maneira gradual. Uma parte da atividade do pensamento fica separada e liberada do teste de realidade, submetendo-se inteiramente ao princípio do prazer: o fantasiar, que estará presente nas brincadeiras infantis e posteriormente nos devaneios dos adultos. Na atividade da fantasia a dependência de objetos reais é abandonada ela está diretamente vinculada às pulsões sexuais que permanecem por um período maior sob a égide do princípio de prazer. Conforme assevera Lacan é preciso compreender que as satisfações ilusórias são de ordem distinta das satisfações que demandam um objeto no real. Um sintoma jamais será capaz de aplacar a

fome ou a sede de forma eficaz e duradoura. O objeto da fantasia se inscreve no registro imaginário e neste sentido sua satisfação só poderá ser encontrada no registro sexual (Lacan, 1953, [2005] p.17).

Na formação de um sintoma neurótico o eu a serviço do princípio de realidade vai rechaçar a pressão das pulsões que visam uma satisfação imediata. As pulsões, por sua vez, irão buscar retroativamente um caminho e um objeto capaz de proporcionar satisfação sem a repressão do eu. A explicação para o êxito das pulsões em encontrar um objeto de satisfação sem a anuência do eu deve ser articulada à fantasia. É na fantasia que podemos dar livre expressão às pulsões sem que nenhum tipo de censura esteja atuando. Freud se valerá da metáfora da reserva natural para exemplificar o que acabamos de dizer. O reino mental da fantasia é uma reserva natural, apartada do princípio de realidade (Freud, 1916-1917). A fantasia fornecerá um roteiro imaginário onde o sujeito estará presente realizando em última instância um desejo inconsciente, interditado pela consciência. As fantasias fundamentais seriam aquelas que organizariam um romance sobre o nascimento, os pais, a diferença entre os sexos e a própria sexualidade. Com efeito, é na fantasia que o sujeito institui uma forma de lidar com a realidade do sexo.

Diante do que foi exposto, o paradoxo freudiano em sustentar uma atitude racionalista frente à religião e a constatação inevitável do primado da vida pulsional só se acentua. A crítica freudiana endereçada ao fato religioso é certeira ao demonstrar que a religião termina por se valer de elementos puramente imaginários em sua constituição e daí deriva sua força. Mas o questionamento que trazemos é se podemos supor a existência de algum outro elemento para além do imaginário capaz de transformá-la em um objeto privilegiado de aderência pulsional. Nas próximas seções apresentaremos três estudos de casos que nos servirão de contraponto para ilustrarmos as considerações que fizemos ao longo deste capítulo. Veremos a partir de um contexto clínico, como a crença religiosa surge emaranhada com a questão do sintoma, da fantasia e da ilusão.