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É preciso ainda destacar um paradoxo: Freud se ocupa da análise das fontes psicológicas das idéias religiosas como quem tem na mão um problema essencialmente clínico, referido à idéia forjada por ele de aparelho psíquico. Do ponto de vista subjetivo, quais os fatores que promoveriam a adesão religiosa? Tratava-se, pois, de investigar a origem psíquica desse fenômeno, seu significado e sua dinâmica. Ao dispor o problema nestes termos não há lugar em sua análise para qualquer tipo de exame teológico ou filosófico da questão religiosa. Em contrapartida, em duas das principais obras que tratam especificamente do tema da religião – Totem e Tabu e Moisés e Monoteísmo – Freud não hesitará em abandonar o registro científico e lançar mão de elementos míticos na própria elaboração de seu discurso. Parece-nos que tal paradoxo talvez seja inerente à psicanálise na medida em que a mesma – ainda que inscrita no campo científico – não seja passível de uma formalização totalizante, em virtude das características de seu objeto.

Em uma carta à Fliess, de 1897, Freud comenta:

Você consegue imaginar o que sejam ‘mitos endopsíquicos’? São o último produto de meu esforço mental. A tênue percepção interna do [nosso] próprio aparelho psíquico estimula ilusões do pensamento, que, naturalmente, são projetadas para o exterior e, tipicamente, para o futuro e o além. A imortalidade, a recompensa e todo o além, tudo são reflexos de nosso mundo psíquico interno. Meschugge? [Maluquice?] Psicomitologia (Freud, 1897, [1986] p.287).

A idéia de uma psicomitologia revela que Freud concebia a religião como um reflexo do modo de funcionamento da mente projetado no mundo externo i.e., a forma como nossos próprios processos psíquicos são apreendidos engendra a construção de narrativas míticas e religiosas. Essa mesma lógica estará presente no artigo Romance

familiar (1909). O que está em questão neste texto é que a emancipação da criança em

relação à autoridade dos pais estará submetida a uma atividade imaginativa e fantasiosa por parte do infans. Histórias são criadas à medida que dificuldades vão se colocando no caminho: a comprovação de que o amor da mãe não é exclusivo, a dúvida quanto à magnitude dos pais, o enigma quanto ao sexo e à origem. Imaginar-se como filho adotado, supor que seu verdadeiro pai é um aristocrata ou alguém de elevada posição social, inventar que a mãe é uma mulher infiel... Todas essas teorias imaginativas respondem a uma falha – aquela nascida da constatação da incompletude dos pais. Conforme observa Freud:

Na verdade, todo esse esforço para substituir o pai verdadeiro por um que lhe é superior nada mais é do que a expressão da saudade que a criança tem dos dias felizes do passado, quando o pai lhe parecia o mais nobre e o mais forte dos homens, e a mãe a mais linda e amável das mulheres. Ela dá as costas ao pai, tal como o conhece no presente, para voltar-se para aquele pai em quem confiava nos primeiros anos de sua infância, e sua fantasia é a expressão de um lamento pelos dias felizes que se foram (Freud, 1996/1909, p.222).

Veremos mais adiante como Freud aplica essas mesmas considerações na análise do fato religioso. A partir da leitura de Romance familiar Cristina Marcos (1998) levanta dois questionamentos importantes: O primeiro deles indaga sobre as razões que levariam uma criança a contar sua história modificando e alternando seus elementos de maneira completamente diferente da realidade. Lançar mão da ficção como instrumento que visa desvendar os enigmas nos quais a criança se vê envolvida se afigura aqui como um recurso necessário. O segundo ponto: poderíamos dizer que o uso da ficção para

elaboração da teoria do pai é análogo ao uso da ficção no romance familiar? (Marcos, 1988, p.16-17). Do mesmo modo que as crianças arquitetam seus romances para saber sobre pontos obscuros de sua existência, Freud teve necessidade de construir seus mitos para compreender aspectos obscuros de sua teoria? De acordo com Mircea Eliade:

(...) o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do ‘princípio’. Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma ‘criação’: ele relata de que modo algo foi produzido e passou a ser (Eliade, 1963, p.11).

Como apresentamos, Totem e Tabu era o “mito científico” freudiano que forja uma origem capaz de explicar como a moral, a lei e a religião passaram a existir em nosso mundo. Lançar mão do mito era uma forma de expor os limites de alcance do saber teórico. Era preciso fazer uso da ficção ali onde o recurso à racionalidade cientifica mostrava-se insuficiente. Para Betty Bernardo Fuks:

(...) Freud rompeu com a consciência negativa da razão sobre o mito ao designá-lo como uma narrativa, de alto valor social e individual, cuja função é expressar uma verdade sobre as origens e a arquitetura do

espírito humano.Nesse sentido, a entrada das construções míticas no

campo psicanalítico está para além de uma simples busca de referências e é também uma expressão do pensamento científico (Fuks, 2000, p.59).

Devemos ter em mente que Freud visava solucionar um problema teórico com a criação do mito do assassinato do pai primevo. Através da construção de Totem e Tabu o estatuto do pai se modifica no interior da teoria freudiana. O mito edipiano situa-se agora em referência direta a esse acontecimento original. O pai não é mais um perverso sedutor e sim uma função simbólica. A análise do fato religioso beneficia-se dessas elaborações. Novamente, podemos perceber aqui que a crítica freudiana à religião é uma peça importante do edifício teórico da psicanálise, cujo interesse ultrapassa a esfera comumente nomeada de sociológica, e recai novamente sobre o campo clínico. O tema da religião parece não se esgotar para Freud. Essa inquietação revelada pelas constantes alusões e ensaios dedicados ao assunto deve ser tomada como um indício de que algo

nessa discussão restou irresoluto na análise freudiana. Mijolla-Mellor sustenta a

hipótese de que essa recorrência da preocupação sobre o fato religioso em Freud “se devia claramente ao fato de que a análise teórica, endossada pela antropologia e pela história, não lhe parecia suficiente, obrigando-o a continuar sempre buscando, o que ele

só deixará de fazer com o texto sobre Moisés e sua morte” (Mijolla-Mellor, 2004, p.270). Mas a razão pela qual Freud permanece interessado na questão – a ponto de morrer pensando nisso7 – não pode ser totalmente creditada a um embasamento histórico e antropológico pouco consistente. Parece-nos que o interesse freudiano em relação à religião deve ser pensando sempre em proporção direta à sua inquietação com a questão paterna, pois para Freud, a religião implicava a existência do pai. Com a escrita de Totem

e Tabu (1912-1913) e a idéia do assassinato primevo gerando culpa e ambivalência

afetiva em relação ao pai teríamos uma solução razoável no que tange a origem da religião? Por que ainda assim Freud permanece empenhado nessa questão a ponto de retomá-la um quarto de século depois em Moisés e o Monoteísmo?

Todas essas questões confirmam nossa percepção de que talvez exista algum ponto opaco na análise freudiana da religião que Freud continuamente buscava cernir. O que realmente escapa à Freud na análise do fato religioso? Este é o questionamento que norteará nossa investigação. Em O mal estar na civilização Freud afirma que “origem da atitude religiosa pode ser remontada, em linhas muito claras, até o sentimento de desamparo infantil. Pode haver algo mais por trás disso, mas presentemente, ainda está envolto em obscuridade” (Freud, 1996/1930, p.81). Esse “algo a mais (...) envolto em obscuridade” é o ponto que procuraremos determinar através do exame detalhado do sentimento de desamparo.

Antes, porém, voltaremos nossa atenção para a análise da crítica freudiana à ilusão religiosa. A razão para nos determos neste ponto é que há aí uma contradição que merece ser explicitada: ao mesmo tempo em que Freud critica o caráter ilusório das idéias religiosas, ele acaba por demonstrar a potência dessa ilusão. Parece haver na ilusão algum elemento que a torna irredutível e nesse sentido, a crítica que Freud endereça à religião como ilusão não é suficiente para lidar com esse aspecto que resulta impossível de dominar. Examinar essas questões torna-se um passo necessário para tentarmos demarcar o que ficou irresoluto na análise freudiana da religião.

7 Moisés e o Monoteísmo (1938) é praticamente um dos últimos textos escritos por Freud antes de sua

“... esse episódio da imaginação a que chamamos realidade.”

N

o presente capítulo iremos nos deter na análise da ilusão como um modo particular de afastamento da realidade e conseqüentemente como um modo de satisfação imaginária similar ao sonho. De onde vem a força da ilusão? Por que mesmo sendo declarado o caráter ilusório das idéias religiosas, elas não perdem seu poder de conquista sobre os homens? Esta é a pergunta chave deste capítulo: pode haver além dos elementos puramente imaginários presentes na ilusão religiosa e acertadamente discutidos por Freud, algum outro ponto que torna a religião um objeto privilegiado de aderência pulsional? Para tentar respondê-la lançaremos mão na parte final do capítulo do relato e discussão de três textos freudianos que tratam da questão religiosa atrelada a um contexto essencialmente clínico.