• Nenhum resultado encontrado

3. DESESCOLARIZAÇÃO: ROMPENDO COM A LÓGICA DA

3.1 A CRIANÇA LIVRE

Figura 1 Imagem produzida pela cooperativa produzindo sem patrão.

Iniciamos esse tópico afirmando que temos muito que aprender com as crianças, infelizmente estamos amarradas com as cordas do adultocentrismo nos impedindo de observar, sentir, viver sua extraordinária forma de ser, ou seja, de construir conhecimento, cultura. Abrimos com essa introdução para descrever um diálogo que tivemos com uma criança (nove anos) nesse projeto, que revelou a expressão do seu desejo.

Estávamos todas do lado de fora, o quintal, o lugar que elas mais gostam, sempre que se perguntava qual lugar que queriam ficar, era o lado de fora, nos mostrando/gritando que não aguentam mais estarem enclausuradas; Dessa vez, a nossa (educadora) intervenção foi diferente, não anunciamos a atividade que tínhamos programado; enquanto elas estavam livres, fazendo o que desejavam, pelos espaços (quintal e a sala de dentro), pegamos um papel metro e colamos na parede, na altura das crianças, espalhamos as tintas no chão perto do papel, durante essa ação, algumas crianças foram se aproximando e perguntando sobre o que iríamos fazer, e que adoravam pintar, estavam realmente instigadas, outra criança estava no espaço de dentro fazendo o que lhe interessava no momento, antes mesmo de falarmos sobre a proposta da atividade, uma terceira criança que estava empinando um pipa feito de sacolinha, falou bem convicta: “Oh Pró, Por que nós não fazemos da seguinte maneira: cada criança faz o que quer, cada uma fica no seu canto, fazendo o que qué, e quem quiser pintar, vai lá e pinta”. Foi uma fala na qual não pensamos duas vezes, e em nossa mente ficou martelando: “nossa que fantástico pudessem elas fazerem as atividades por auto-escolha”. Nos olhamos (eu e a criança) respondemos, "tudo bem, pode ser assim”, ela nos olhou e deu uma piscada com os olhos como se agradecesse a valorização/legitimação de sua

proposta. O painel foi construído com as crianças que sentiram vontade de pintar, essa que falou estava realmente ocupada, interessada com a sua atividade, de empinar pipa.

Esse diálogo nos tocou muito, no sentido de que realmente as relações escolarizadas matam muitas possibilidades de se desenvolver e de construção individual, coletiva e horizontal. Aceitar as propostas que as crianças nos lançam, não é tarefa fácil. Nessa situação o aceitar, poderia realmente encorajar outras crianças a fazerem outras coisas que mais lhe interessavam, o que aí seria um problema, por termos introjetado, a partir de nossa formação profissional, a visão convencional, a ideia de que temos que ensiná-las, temos que convencê-las de maneira divertida ou dura a entender que o que trouxemos é importante para o seu desenvolvimento. O que para nós (essa questão de convencê-las) foi cada dia mais, se tornando mais tenso, insuportável, aí nos indagamos: Por que que elas tem que parar tudo que estão fazendo para fazer o que nós, educadoras, trouxemos para elas? Essa é uma questão central que faz não mais querer ocupar espaços onde tenham projetos escolarizados. Essa situação nos fez lembrar da 'prova de fogo', que faz parte do ritual de adentrar esse mundo escolarizado:

O domínio de classe era a prova de fogo. Se ficássemos em silêncio e realizássemos as tarefas propostas na aula, o futuro professor teria domínio de classe; caso contrário, se houvesse barulho durante a aula e se não obedecêssemos às ordens, o estagiário não teria domínio de classe. Não ter domínio de classe significava não ter dom para o estagiário. (CORRÊA, 2000, p.59)

Podemos estender essa prova de fogo, não somente para a/o estagiária/o como também para a vida dessa/e profissional, onde o tempo todo tem que provar o seu domínio de classe, isto quer dizer, seu domínio sobre os corpos das crianças, seja um domínio sútil, através das artes, música, ou através de métodos mais duros, grito, pela força corporal para poder atingir seu propósito de escolarizar.

Mas como então construir uma relação igualitária com as crianças em espaços autoescolhidos, e por isso não escolarizados, por ambas partes (pessoas adultas e crianças)? Para romper a relação de poder entre um adulto para com uma criança, é importante reconhecer que elas não são seres passivos, que só recebem as informações; “[…] a criança não é apenas alocada em um sistema de relações que é anterior a ela e reproduzido eternamente, mas atua para o estabelecimento e a efetivação de algumas relações sociais dentre aquelas que o sistema lhe abre e

possibilita.” (COHN, Clarice, 2009, p.28)

Ponto crucial para entender essa dinâmica de invisibilizar as crianças, é perceber as existências ou ausências de aberturas e possibilidades de atuação das crianças nos espaços que elas ocupam, e nas relações que estabelecemos com elas. Nos preocupamos e nos interessamos em saber o que elas pensam sobre as coisas que elas vivem? Mas para isso seria interessante compreendê-las como um ser que produz cultura, que atribui sentidos às experiências que vivem, “[...] a diferença entre as crianças e os adultos não é quantitativa, mas qualitativa; a criança não sabe menos, sabe outra coisa.” (Idem, p.33) O saber outra coisa permite nos colocar nesse lugar de intercambiar conhecimentos com ela, abrindo possibilidades de uma relação sem hierarquia, ponto este, muito difícil, em razão de estarmos inseridas/os em uma cultura, na qual, a relação adulto e criança já é permeada de poder, pelo simples fato da criança depender de quem lhe fornece seu alimento, sua vestimenta, enfim questões de dependência básica, as outras dependências, podemos talvez afirmar, que são dependências que as pessoas adultas também têm uma com as outras, como por exemplo a dependência afetiva. Sendo assim essa desconstrução nos parece ser uma construção coletiva de romper o poder e a obediência a ele. O ouvir, o legitimar o que as crianças pensam e desejam, é abrir mão desse poder, desse privilégio, e passando sim, porque não, a fazer do jeito dela, até mesmo como um processo nosso, pessoas adultas, de destruição do adultocentrismo.

O compreender a criança a partir do seu ponto de vista contribui para essa relação de troca, de consentimentos, como também colabora para construção de relações livres de opressões, ampliando para a manifestação de crianças livres, com criações livres.

Documentos relacionados