• Nenhum resultado encontrado

A crise da teoria das formas substanciais

A CIÊNCIA GALILEIANA NA PASSAGEM DA SUBSTÂNCIA À RELAÇÃO

1. A crise da teoria das formas substanciais

A idéia de substância do pensamento aristotélico, no qual se baseia a Escolástica medieval, não é entendida como essência universal e indiferenciada do mundo. Ao contrário, ela está identificada com os entes concretos tomados individualmente, por exemplo, “um determinado homem ou um determinado cavalo” (Aristóteles, 1982a, 2a, 13). O objeto individual, fechado na perfeição da sua unidade, não precisa de mais nada para que a sua existência seja dada e disso origina-se a sua substancialidade: ele não pode ser o predicado de uma outra coisa, de um seu substrato, como, ao invés, o predicado “homem se diz de um substrato, isto é, de um determinado homem”, (ibidem, 1a, 21). Tampouco ele está num substrato, como, ao invés, acontece aos atributos, por exemplo “um determinado branco está num substrato, isto é, no corpo (cada cor, com efeito, está num corpo)” (ibidem, 28-30). Ou seja, “um determinado homem” e um “determinado cavalo” não pode se referir nem ao sujeito de um discurso para contribuir à sua definição, nem a um outro objeto material como seu elemento constitutivo, por isso, eles existem exclusivamente por si, e, então, são substâncias.

Mas se isto é o fundamento do ser, como pode a alma, o intelecto, alcançar o conhecimento do mundo? O domínio do intelecto fica limitado ao pensamento e com certeza ele não pode reter em si mesmo o ser físico, “não tem a pedra na alma, mas a forma da pedra” (Aristóteles, 1983a, III, 432a, 1). Poder-se-ia, assim, abrir um diafragma entre as substâncias, que residem no mundo sensível, e a alma intelectiva. Para recompor esta

fratura, Aristóteles recorre à distinção entre substância como“sínolo”3, ou seja, como conjunto de matéria e forma, e substância apenas como forma (forma substancial). A substância como forma dos objetos é da mesma natureza dos conteúdos do intelecto, então pode ser conhecida por este. Através da forma, o intelecto adquire as representações das substâncias individuais, isto é, a forma torna-se o mediador entre o intelecto e os objetos materiais (Aristóteles, 1982b, VII).

Esta transferência da forma na alma está bem pormenorizada até o engendrar-se das sensações: através de um meio (como pela visão, pela audição e pelo olfato) ou por contato imediato (como no gosto ou no tato), o objeto sensível causa uma alteração do “sensório” que atende àquele particular tipo de sensação. Esta alteração é o veículo pela qual a sensação se constitui na alma (Aristóteles, 1983a, II). Mas as sensações ainda não constituem a forma do objeto e, em Aristóteles, esta passagem das sensações à forma do objeto nunca encontra uma clara explicação.

As premissas gnosiológicas de Aristóteles são sensualistas. Coerentemente com a idéia de que o fundamento do ser reside nos indivíduos empíricos, todo o conhecimento deve advir do mundo sensível. O intelecto aristotélico está concebido como uma “tábua rasa” na qual as sensações escrevem as percepções do mundo exterior. Todavia, resulta evidente que estas premissas nunca poderiam justificar o engendrar-se das representações do mundo; o intelecto, como tábua rasa, não possui nenhuma faculdade autônoma e, por isso, não pode transformar as sensações na imagem do objeto. A solução está na introdução de um elemento de dualidade na constituição da psique. Como na natureza, para cada coisa, existe a matéria e a causa eficiente que a plasma, assim na alma existe um intelecto análogo à matéria e um outro análogo à causa eficiente. O primeiro tem função receptiva, ou seja, torna-se o que recebe das sensações e, em potência, é a forma do objeto. O segundo, que é por essência ato, produz tais formas (ibidem, III, 430a).

Apesar desta ruptura em duas partes da alma, que causou as principais disputas filosóficas no alvorecer da Idade Moderna, a explicação do engendrar-se das representações do mundo permanece com lacunas. A introdução de um ente, como o intelecto ativo, que transcende os mecanismos dos sentidos, representa uma contradição insuperável no empirismo aristotélico. Cassirer (1976, p. 153-157) indica Francesco Pico della Mirandola

como o filósofo que melhor encerra esta contradição: em que nível do processo cognoscitivo idealizado por Aristóteles, questiona Pico della Mirandola, o intelecto ativo produziria as formas substanciais na alma? Se isto acontecesse ao nível das sensações, estas não poderiam mais se gerar através do processo apenas mecânico visto acima. Se, ao contrário, o intelecto operasse após a constituição das sensações, tornar-se-ia falsa a idéia de que todo o conhecimento advém dos sentidos.

Aparece evidente, agora, que o realismo das formas substanciais e o sensualismo não são conciliáveis. A atenção dada ao mundo físico e aos dados da experiência, acarretada pelo próprio sensualismo aristotélico, está em contradição com a teoria das formas substanciais e se rebela contra esta. Tomemos o exemplo do fogo, diz Francesco Patrizzi (1581, p. 387), uma das principais expressões da nova sensibilidade filosófica no renascimento. Os escolásticos dizem que as propriedades do fogo derivam de sua forma, que seria esta que engendra as propriedades de aquecer, ressecar, rarefazer, etc. Mas se é a qualidade sensível do calor a causar o aquecer, a qualidade sensível do seco a causar o ressecar, etc., qualidades sensíveis estas que se encontram todas no fogo, não se entende por que se deveria pesquisar a origem destas propriedades em algo que não se pode sentir, como a imaginária forma substancial dos escolásticos. A eliminação das formas substanciais aparece agora, de maneira clara, como a única via de saída para fundar o conhecimento filosófico nos dados da natureza e das sensações. Pode, assim, liberar-se o típico traço naturalista do Renascimento que constitui a dimensão cultural que permitiu o nascimento dos conceitos modernos de matéria, espaço e tempo.