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Nos dias atuais, a tendência de mercantilização e centralização do controle, característica de um cenário globalizado, passa a ser sentida também no meio educacional. A escolha cirúrgica dos saberes que constituem os currículos e o uso de modelos avaliativos que garantam a manutenção dessa ideologia curricular, são ações de fundamental importância para a manutenção de um contexto ideológico fortemente influenciado pelo modelo neoliberal. As revoluções na educação e os interesses ocultos dos diferentes diagnósticos do que acontece dentro e fora das salas de aula são descritos por Santomé (2013). O autor destaca a grande influência que estruturas políticas globalizadas, tais como a OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico), G20 (Grupo dos 20), ONU (Organização das Nações Unidas), Banco Mundial, dentre outras organizações, têm na definição das diretrizes educacionais, tanto regionais quanto globais, sua orientação economicista na construção dos currículos, utilizando como principal ferramenta os modelos avaliativos propostos em caráter internacional.

O projeto PISA (Programa para a Avaliação Internacional dos Alunos)20, criado pela OCDE, pode ser visto como uma forma, um tanto quanto camuflada, de pressionar os Estados

20 O Programme for International Student Assessment (Pisa) - Programa Internacional de Avaliação de

Estudantes - é uma iniciativa de avaliação comparada, aplicada a estudantes na faixa dos 15 anos, idade em que se pressupõe o término da escolaridade básica obrigatória na maioria dos países. O programa é desenvolvido e coordenado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico

a reformularem suas políticas educativas. O programa estabelece indicadores internacionais de rendimento para avaliar os sistemas de educação, sendo que tais indicadores geram dados estatísticos relacionados ao desempenho discente. Mesmo que a adesão ao PISA não seja obrigatória e que não haja sanções aos países mal posicionados, a enorme difusão dos seus resultados, promovida pelos meios de comunicação de massa, fazem com que todos os governos queiram ficar entre os países de destaque em relação a esses “exemplos oficiais” de boas práticas.

Consequentemente, como resultado da enorme repercussão destes resultados na mídia, bem como da instrumentalização política que normalmente é desempenhada pelos partidos políticos de oposição, sindicatos e associações empresariais, um instrumento como o PISA se transforma em um recurso eficiente de controle oculto das agendas educativas. Esses tipos de estratégia de reorientação, baseados em dados empíricos e apresentados como objetivos neutros são aceitos de forma mais fácil por uma população que está muito acostumada a que lhes apresentem estatísticas como se fossem argumentos irrefutáveis (SANTOMÈ, 2013, p. 195).

Métodos avaliativos como o PISA tendem a condicionar a construção dos currículos nos diferentes países, uma vez que seus governantes desejam a boa repercussão midiática de uma eventual boa colocação de sua nação e, consequentemente, de seu governo em relação ao ranking educacional promovido pela OCDE. No entanto, a tomada de decisão pode ocasionar uma cadenciada perda de identidade, homogeneizando uma formação conforme interesses pautados em uma política de educação dirigida pelas teorias do capital humano e focada em priorizar a construção e difusão do conhecimento necessário para sustentar os atuais modelos produtivos e econômicos neoliberais.

Outra característica contemporânea amplamente citada em Apple (2005) é a exigência da produção constante de evidências em que se confirme a eficiência e a regularidade do que se está sendo desenvolvido. Essa característica também é aplicada à educação. Nesse sentido, está estabelecido também no meio educacional, seguindo uma tendência neoliberal e da teoria tradicional do currículo, a cultura de auditoria, que promove uma postura punitiva de tabela de aferições, com a intenção de demonstrar a eficiência relativa ou a ineficiência de instituições de educação, conforme o estabelecido pela classe dominante neoliberal.

Essa nova cultura está fortemente relacionada a uma mudança no senso comum, conforme descrito em Apple (2007), impulsionado por uma série de reformas educacionais que estão sendo realizadas de forma globalizada: (1) a consolidação de tendências

(OCDE). Em cada país participante há uma coordenação nacional. No Brasil, o Pisa é coordenado pelo

individualistas, consumistas e não solidárias, enfraquecendo-se o conceito de “público” e fortalecendo-se o conceito de “cliente ou consumidor”; (2) o estabelecimento de um consenso quanto ao sucesso de práticas de ensino utilizadas por países historicamente dominantes; e (3) a crença de que somente o que pode ser mensurado é, de fato, importante. Ao invés de partir- se para uma adequação econômica em prol do social, modela-se a “alma” dos cidadãos em prol dos interesses econômicos.

Ainda segundo Apple (2007) a cultura de auditoria, também estabelecida no sistema educacional, caracteriza-se pelo uso de conceitos derivados do mundo dos negócios para mensurar e avaliar o desempenho de serviços de interesse público, tal como a educação. Práticas de auditagem, baseadas em planilhas, checklists, indicadores e dados estatísticos estão sendo utilizadas para averiguar a “eficácia” do sistema educacional, bem como, se o mesmo está alcançando suas “metas”, assemelhando-o a processos realizados no “chão de fábricas”. Os resultados obtidos nestes processos avaliativos são aceitos como verdades absolutas e inquestionáveis, ignorando, na maioria das vezes, as especificidades locais, uma vez que as ferramentas de auditagem utilizadas são uniformizadas e uniformizantes.

Às instituições de educação que não alcançam os índices de desempenho tidos como minimamente aceitáveis, atribui-se o rótulo de instituições “não eficazes” ou de baixa qualidade. Estas acabam posicionando-se ao final do ranking das “melhores” instituições e são condicionadas a mudarem seus processos de forma a tornarem-se minimamente “eficazes” em seu próximo ciclo avaliativo.

É interessante notar que, devido ao foco em resultados mensuráveis e ao controle central sobre decisões importantes, o poder do governo federal foi, de fato, nitidamente ampliado. (A legislação do governo Bush, no que diz respeito à “Nenhuma criança será deixada para trás21” – onde as escolas rotuladas de

“fracasso” nos testes estandardizados passam a ficar sujeitas à competição do mercado e às sanções centrais – é um bom exemplo dessa situação, no que diz respeito ao ensino fundamental e médio). Tal fato foi acompanhado por uma perda da democracia local. Ao mesmo tempo, o papel do Estado, ao lidar com a destrutibilidade voraz produzida pelas decisões “economicamente racionais”, foi categoricamente reduzido (APPLE, 2005, p. 35).

Segundo Leite (2012), o processo de globalização neoliberal da educação também pode ser fortemente sentido na América Latina e seu indutor se mascara na busca de uma

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Lei do Ensino Fundamental e Médio aplicada nos Estados Unidos, popularmente conhecida como “Nenhuma criança será deixada para trás” (No Children Left Behind – NCLB), aprovada no Congresso em 2001. Essa lei representa uma série de iniciativas no que se refere à regulação e controle de aspectos centrais da educação. Os componentes mais importantes da legislação convergem para testes e responsabilidades, mas também fornecem avanços com respeito a uma agenda mais ampla de privatização e mercantilização do ensino (APPLE, 2005).

maior qualidade de ensino, na qual estão inseridos os processos de avaliação, acreditação22 e internacionalização de instituições de educação superior. A implantação de uma política internacional de educação, fundamentada em um modelo europeu instituído pelo Tratado de Bolonha23, visa atingir o mundo em sua totalidade numa espécie de nova onda imperialista, com foco especial para a América Latina. A hegemonia nessa reedição imperialista se faz pela promoção do modo de vida europeu, sendo que a educação tem papel fundamental na socialização de normas e princípios compatíveis com o cenário desejado. A autora destaca as consequências dessa política sobre os caminhos futuros da educação superior latino- americana, uma vez que geram novos modelos de instituições e induzem à formação de valores que negam aspectos culturais locais.

O novo imperialismo hegemônico está focado no conhecimento e na informação. Há uma disseminação de suas forças na América Latina. As instituições de ensino superior seriam o objeto visado, pois, nelas se desenvolvem o conhecimento, a investigação e a formação do “capital humano”. A incidência dessas forças não constitui uma relação de causa e efeito ou de opressão ou de determinações. São movimentos de sedução, de convencimento e proposições lógicas e racionais que se fazem por dentro das múltiplas relações estabelecidas entre instituições, organizações, atores globais e acadêmicos. As políticas buscam incidir no cotidiano das práticas de forma a serem naturalizadas e internalizadas como necessárias, como a melhor possibilidade, como ideário a ser buscado. A neolíngua que produz um discurso próprio tem uma palavra central – qualidade da universidade. Dentro deste vocábulo está inserida a avaliação, a acreditação, o ranking, o indicador de qualidade, a internacionalização das instituições, enfim seu desempenho no mundo global frente a suas congêneres locais e internacionais (LEITE, 2012, p. 778).

O Brasil também se encontra inserido nesse contexto, cujos critérios e indicadores de qualidade no âmbito da educação superior são definidos pelo Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior — SINAES, instituído pela Lei nº 10.861, de 14 de abril de 2004, e implementados por meio de Instrumentos de Avaliação elaborados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa Educacionais Anísio Teixeira — INEP. No entanto, Cardoso (2014a)

22 Certificação pública de “qualidade” de uma instituição, de um curso, de um programa. Em termos

legais e burocráticos, acreditar é produzir um documento oficial, isto é, de fé pública, que certifica a qualidade de determinadas instituições e reconhece a legitimidade de seus atos e, de modo especial, garante oficial e publicamente a validez das titulações acadêmicas e habilitações profissionais, em escala nacional e, tendencialmente, internacional (SOBRINHO, 2006, p.13)

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A Declaração de Bolonha (19 de junho de 1999) — que desencadeou o denominado Processo de Bolonha — é um documento conjunto assinado pelos Ministros da Educação de 29 países europeus, reunidos na cidade italiana de Bolonha. A declaração marca uma mudança em relação às políticas ligadas à educação superior dos países envolvidos e estabeleceu em comum um Espaço Europeu de Educação Superior a partir do comprometimento dos países signatários em promover reformas dos seus sistemas de ensino.

alerta para um comportamento similar ao relatado por Apple (2007) em relação à cultura de auditoria.

Vê-se que a concepção proposta pelo SINAES encontra-se ameaçada por operações cotidianas de fiscalização e controle utilizadas pelo Estado, distantes do que se propôs como avaliação e com o objetivo primordial de se estabelecerem rankings, configurando uma atitude voltada para a competitividade, e não para a solidariedade; uma ação voltada para o mercado, e não para a sociedade (CARDOSO, 2014a, p. 272).

Nesse caso, Cardoso (2014a) se refere especialmente ao uso dos indicadores CPC (Conceito Preliminar de Curso) e IGC (Índice Geral de Curso) como forma de classificação dos cursos oferecidos pelas IESs, descaracterizando, inclusive, a proposta do SINAES que, originalmente, prevê a construção de uma política e de uma ética na educação superior em que sejam respeitados o pluralismo, a alteridade, as diferenças institucionais, mas também o espírito de solidariedade e de cooperação (SINAES, 2004). O modelo de avaliação da educação superior brasileira caracteriza-se mais como um processo de auditagem, fundamentado em índices e planilhas, do que em um processo avaliativo propriamente dito. Esse modelo é descrito no capítulo 4 desta tese de doutorado.

Percebe-se que, apesar de retratarem cenários localizados em diferentes países e continentes, as realidades descritas pelos autores supracitados são similares e tratam sobre o uso de processos avaliativos como forma de regulação em favor da consolidação de um modelo educacional que segue uma ideologia neoliberal. De tal modo, é possível uma prévia interpretação de que, de fato, o uso de procedimentos avaliativos de âmbito internacional pode estar dificultando a concepção de modelos educacionais emancipatórios locais.