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postagem 4 O personagem tem segundas intenções?

1.3 A cultura participativa na comunidade DarkUfo

As comunidades e fóruns de fãs online fazem parte de um fenômeno conhecido como “cultura participativa”, que pode ser definida pela presença de níveis baixos de dificuldade para criação e compartilhamento de conteúdo nas redes com o uso das tecnologias da web 2.0 para a resolução coletiva de problemas. (JENKINS, 2009a) No caso, a comunidade de fãs de Lost DarkUfo encaixou-se em várias características da cultura participativa, de acordo com a definição de Henry Jenkins. Dentre elas, está a “resolução coletiva de problemas, trabalhando em equipes formais ou informais na busca de completar tarefas e novos conhecimentos” (JENKINS, 2009a, p. XIII). Isso fica claro na resolução coletiva dos mistérios desenvolvidos durante a narrativa de Lost através dos comentários dos usuários, na comunidade. Havia, também, cognição distribuída e multitarefa, caracterizadas pela “capacidade de interagir significamente com ferramentas que expandem as capacidades mentais” de forma a perceber vários focos de significação em um ambiente e perceber igualmente os detalhes importantes (JENKINS, 2009a, p. XIV), presentes no consumo e na produção concomitante dos últimos episódios de Lost. Fãs assistiam ao vivo ao programa na televisão e comentavam sobre ele usando outras plataformas ao mesmo tempo. A comunidade

DarkUfo também englobou reapropriações da narrativa original através das postagens de

montagens e fanfictions, que deram a possibilidade aos fãs de exercerem uma habilidade transformativa para com uma obra (JENKINS, 2009a, p. 57).

As comunidades online também são marcadas pela capacidade coletiva da criação de um arquivo – aquilo que para Foucault (2004, p. 117) “que faz com que todas as coisas ditas não se acumulem indefinidamente em uma massa amorfa, não se inscrevam, tampouco, em uma linearidade sem ruptura e não desapareçam ao simples acaso de acidentes externos” – do universo sobre o qual tratam, por exemplo, Lost. São perceptíveis enunciados de linhas discursivas repetidas a esmo nos comentários que expressam ideologias conflitantes. A apropriação da narrativa passou por discursos sobre cultura e costumes dos usuários, o que a fez dela um artefato cultural. O uso frequente de palavras relacionadas à religião em postagens não só retratou um tema utilizado constantemente no seriado, mas também

exprimiu visões e inscrições em formações discursivas religiosas, bem como as subjetividades desses indivíduos. Nos “arquivos de Lost” do DarkUfo, discursos ateístas, teístas e de várias correntes religiosas foram perceptíveis e entraram em conflito através das respostas de outros usuários.

Somando-se os fatores da cultura participativa à capacidade de gerar conflitos entre discursos na rede, pode-se mostrar como a comunidade DarkUfo tinha as particularidades de um grupo de fãs, que se relacionavam com uma narrativa e uns com os outros, de diversos modos. Inicialmente, é preciso esclarecer que o fenômeno das comunidades online não é novo (estudado há mais de duas décadas) e exemplificar as características dinâmicas da comunidade, possibilitadas pelo estabelecimento do paradigma da cultura participativa.

Como ressaltou Chris Anderson em “A Cauda Longa”: “a idade de ouro da televisão marcou o pico do efeito bebedouro” (ANDERSON, 2006, p. 22). Nas décadas de 1950 e 1960, após um grande evento cultural, era comum que grupos de pessoas se reunissem em volta dos bebedouros dos escritórios para discutir o que havia acontecido. Anderson aponta que o “efeito bebedouro” está perdendo a força. Na época da escrita de seu livro (em 2004), a série de televisão com maior audiência nos Estados Unidos conseguia manter a fatia de “apenas” 15% dos domicílios. Houve uma modificação da predominância da cultura massiva para uma cultura de nichos, fragmentada para distintos gostos e públicos. Os meios de comunicação massivos estão em transição para “os meios dirigidos (addressable media), caracterizados por públicos mais homogêneos que podem servir como novo cenário para novas formas de identidades comunitárias” (LOPES, 2010, p. 136).

A discussão em torno do bebedouro também foi fragmentada e passou a utilizar as ferramentas e serviços da web 2.0. Narrativas complexas, como as do seriado Lost, geraram curiosidade, e os nichos de fãs passaram a utilizar espaços de comunicação mediada por computador (CMC) para tentar solucionar os mistérios e quebra-cabeças expostos no episódio da noite anterior. Os estudos de recepção de narrativas seriadas feitos por Henry Jenkins (1992) demonstraram que a utilização de redes de computadores, para reunião de fãs de seriados e buscas coletivas de respostas, vem acontecendo há mais de duas décadas.

Em 1990, o seriado de televisão Twin Peaks (ABC, EUA, 1990-1991), dirigido e produzido por David Lynch, marcou a popularização de narrativas complexificadas na televisão. Dois anos depois, Henry Jenkins descreveu em sua tese a transposição do fandom para grupos da Usenet (rede de computadores anterior à existência da web). Na época, os assinantes das listas de discussão por e-mail encontravam-se em grupos criados para séries

cult e interesses específicos, como The Simpsons44, The Prisoner45, Star Trek46, histórias em

quadrinhos e novelas (JENKINS, 1992). Um desses grupos “se tornou um dos mais ativos e prolíficos de todo o sistema da Usenet, produzindo mais de uma centena de postagens por dia” (JENKINS, 1992, p. 79.), uma semana após o início das transmissões de Twin Peaks. Os fãs encontravam-se no endereço eletrônico alt.tv.twin-peaks47 e lá, através da troca de mensagens, tentavam desvendar de modo coletivo a morte da personagem Laura Palmer, mistério central introduzido no primeiro episódio da série. Jenkins (1992), no mesmo texto, já salientou que “a recepção dos fãs nunca pode existir no isolamento”, visto que é sempre formada através do confrontamento com outros fãs e “motivada, pelo menos parcialmente, por um desejo de futuras interações com comunidades sociais e culturais maiores” (JENKINS, 1992, p. 77). Deste modo, há um consumo através de interações discursivas. É uma das origens das comunidades online voltadas para interesses específicos (no caso, fãs de

Lost). As comunidades online são:

agregações sociais que surgem na Internet quando um número suficiente de pessoas continua discussões por um período de tempo suficiente, com suficiente sentimento humano, de modo a formar teias de relações interpessoais no ciberespaço. (RHEINGOLD, 1993, n.p., tradução nossa)48 Doze anos depois do fim de Twin Peaks, houve o lançamento de Lost. Assim como aqueles que assistiam a Twin Peaks e publicavam suas hipóteses nas listas de correio eletrônico, os fãs de Lost passaram a desenvolver, agrupados em sites, redes sociais digitais e fóruns de discussão online. A internet tornou-se portadora de locais de refúgio e encontros de fãs que compartilhavam as mesmas dúvidas e produziam hipóteses, teorias e proposições para o enredo da trama.

Nas comunidades online dos fãs, havia a presença de “confrontações entre fãs” e de seus discursos, citados por Jenkins em 1992 acerca das manifestações da cultura participativa; apropriações da narrativa e supostas explicações para os mistérios. Através da observação dos comentários, foi possível perceber a existência de regras nas comunidades e fóruns, explicitadas por moderadores ou implícitas nos discursos dos posts direcionados a outros