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A Dádiva nos bastidores da relação pedagógica

PARTE I: PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

CAPÍTULO 2. A DÁDIVA NA EDUCAÇÃO

2.3. A Dádiva nos bastidores da relação pedagógica

E nós, os “reles mortais” seguimos o conselho, buscando o dom nos gestos simples do dia a dia, na gratuitidade neles sentida, na arte mágica que daí advém, através do sentir,

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facilitadora de uma aprendizagem melhor e mais saudável quer entre pares quer na relação aluno - professor e vice-versa.

Neste contexto, lembramos a objetividade e consistência dos “sete saberes para a educação do futuro” apresentados por Edgar Morin. Para qualquer educador, a sua pertinência é tal que seria fundamental que todos os conhecêssemos e seguíssemos. São eles:

1. “As cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão” – necessidade de a educação

transmitir o que é o conhecimento humano, havendo uma articulação entre a sociedade e o conhecimento. Isso conduzirá ao fortalecimento das pessoas, à sua lucidez. O ser humano necessita de conhecer o que é conhecer e só deste modo evoluirá pessoal e socialmente.

2. “Os princípios de um conhecimento pertinente” – é necessário fazer a

integração dos saberes, reforçando a estratégia da metodologia, o que levará mais facilmente à apreensão das relações mútuas e influências recíprocas entre os objetos ou situações.

3. “Ensinar a condição humana” – necessidade de que cada um tome consciência

da sua identidade complexa e da sua identidade comum com todos os outros seres humanos. Perceber a condição humana. Ser ensinada, estudá-la, para melhor nos percebermos como seres humanos individuais e sociais, entendendo assim a nossa unidade e diversidade.

4. “Ensinar a identidade terrena” – é indispensável ensinarmos que a natureza não é o palco humano, mas sim que temos de interagir com o ambiente. E sentimo-lo cada vez mais: é necessário aprender a identidade terrena, respeitando-a, porque somos seres planetários, coabitando um planeta que pretendemos saudável.

5. “Afrontar as incertezas” – temos de estar preparados para o inesperado, portanto há que ensinar os princípios de estratégia, para ser possível transpor os obstáculos, vencer os dissabores, dominar o risco. Por essa mesma razão, muitas vezes o conhecimento se produz ao mesmo tempo que a ação, à medida que o

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inesperado vai surgindo. Tal como refere Morin “é necessário aprender a navegar num oceano de incertezas através de arquipélagos de certezas” (2002:19).

6. “Ensinar a compreensão” – é necessário educar para a compreensão. Para tal, há que fazer uma reforma de mentalidades. É urgente a educação da compreensão mútua entre os seres humanos, mais ou menos próximos. A sociedade mergulhou numa onda de incompreensão muito generalizada, contra a qual temos de lutar. No ensino, tem de se englobar a compreensão. Tem de se mostrar o quão importante ela é no dia a dia de qualquer cidadão que faz parte de uma sociedade, que se pretende justa e compreensiva. Morin propõe até a necessidade de ser feito um estudo sobre a incompreensão, suas causas e efeitos. Investigar bem as causas para melhor se compreender a vantagem de uma educação para a paz.

7. “A ética do género humano” – a educação tem de englobar a ética, uma “antropo-ética”, conforme refere Morin, pelo caráter ternário da condição humana: o ser humano é ao mesmo tempo indivíduo, parte de uma sociedade e parte de uma espécie. A ética assim transmitida fará perceber o verdadeiro papel do ser humano, o desenvolvimento das suas autonomias, das participações comunitárias e a tomada de consciência de pertencer à espécie humana. A partir dessa aprendizagem, parte- se para “as duas grandes finalidades ético-políticas deste milénio: estabelecer uma relação de controlo mútuo entre a sociedade e os indivíduos por meio da democracia e conceber a Humanidade como comunidade planetária” (ibidem:21). E Morin conclui, apelando à importância de o ensino dever contribuir para a “tomada de consciência da nossa Terra-Pátria”, conduzindo a uma vontade de realização de uma “cidadania terrena” (ibidem:16-21).

Se cada um de nós, pais ou educadores, for capaz de pensar nestes sete saberes, de os interiorizar para os praticar, saberemos educar no presente, visando uma sociedade futura mais humanizada, íntegra e compreensiva.

Saberemos como nos comportar, ética e humanamente, procurando sempre, como afirma Isabel Baptista “manter o equilíbrio entre a intencionalidade pedagógica e a necessidade de respeitar o espaço necessário à afirmação do outro enquanto outro” (2005:79-80).

25 E o que é isto, senão o espírito de dádiva?

Não será esta a base da relação pedagógica, assente numa relação de dádiva?

Se considerarmos e respeitarmos o outro com todas as suas fraquezas ou potencialidades, reveses ou conquistas, azares ou sortes, oriundo de uma família desestruturada ou de um ambiente equilibrado, franzino ou fortalecido, não será que o fazemos porque uma atitude de dádiva se encontra bem nos bastidores da nossa relação pedagógica?

E procuremos que esses outros, com quem lidamos diariamente, tenham “o acesso a todas as dádivas do universo”, citando Walt Whitman (2002:471)4

, se essas dádivas vão gerar alegria.

Para tal, é necessário que todos estejamos preparados não só para receber as dádivas mas acima de tudo para as dar.

Citando Isabel Baptista “o misterioso laço apertado como presença solidária em resultado do acolhimento da eleição vinda de um rosto contém, a nosso ver, a essência de todo o ato pedagógico” (2009:18).

Esse “misterioso laço apertado” faz parte de qualquer relação de dádiva, portanto tem de fazer parte do ato pedagógico. Assim o processo de aprendizagem será facilitado e a aprendizagem para a vida será conseguida.

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Parece-nos importante transcrever o poema completo, pela sua beleza: “AOS RICOS QUE DÃO

O que me dais aceito com alegria,

Um pouco de comida, uma cabana e um jardim, um pouco de dinheiro logo que esteja na companhia dos meus poemas, Um quarto de viajante e o pequeno-almoço quando ando pelos Estados - por que havia eu de ficar envergonhado por declarar

tais dádivas? Por que havia eu de ficar envergonhado por dá-las a conhecer? Porque eu próprio não sou como aquele que nada concede ao homem e à mulher,

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Como refere Adalberto Dias de Carvalho, Kant coloca a educabilidade no centro das atenções, “fá-lo, contudo, não tanto para acentuar as carências do ser humano (…), mas para valorizar o potencial sentido antropológico do futuro que cumpre à educação realizar através do aprofundamento da liberdade de que o homem desfruta no espaço da sua não-determinação natural. Significa isto (…) que a humanidade deve progressivamente reconhecer-se como autor do seu próprio destino” (2000:150).

É importante que sejamos autores e “donos do nosso destino”, lembrando um poema de William Ernest Henley, retirado do filme “Invictus” de Clint Eastwood 5.

Temos de contribuir para que quem nos rodeia e quem educamos ou ensinamos sejam “capitães da sua alma”, numa dinâmica de arte educativa e pedagógica baseada na dádiva de pequenos gestos, carinhos, palavras. Sentir-se-á como que uma magia nas pessoas envolvidas.

Referindo Isabel Baptista, “é através da atitude moral, através da linguagem da responsabilidade e do compromisso, que se honra o privilégio de ter sido eleito por alguém” (2009:19). Se temos o privilégio de termos sido eleitos, também o teremos para eleger, porque é uma honra “o outro” deixar que nos aproximemos. Será um “dar, receber, retribuir” na relação humana, baseado na gratuitidade e, como tal, reconhecido. Isabel Baptista afirma “do lado de quem elege, declarar algo como: ‘eu reconheço-te’, ‘eu sei quem tu és’, deverá ser o mesmo que dizer: ‘obrigada pela tua presença’, ‘aceito e confio na tua atitude, admiro o teu trabalho’, ‘aprecio e estimo a forma como trouxeste diferença à minha vida’” (ibidem: 19-20).

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"Da noite que me cobre,

negra como o poço, de poste a poste,

agradeço a quaisquer deuses que possam existir, a minha alma inconquistável.

Aprisionado pelas circunstâncias, não vacilei nem gritei alto. Sob o peso do destino,

a minha cabeça está ferida mas erguida. Para lá deste lugar de ódio e lágrimas espreita o horror das trevas.

E, contudo, a ameaça dos anos

encontra-me e há de sempre encontrar-me sem medo.

Não importa se a porta é estreita, se é duro o sofrimento

pois eu sou o dono do meu destino. Sou o capitão da minha alma."

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Esta postura espiritualmente humana e solidária proporcionará uma relação de