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A década de 1980 e o fortalecimento da crítica à psicologia na educação

O preço que os homens pagam pelo aumento de seu poder é a alienação daquilo sobre o que exercem o poder

PERCURSO DE CONSTITUIÇÃO DA PSICOLOGIA ESCOLAR NO BRASIL E FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA

2.3. A década de 1980 e o fortalecimento da crítica à psicologia na educação

Ao investigar a caracterização da profissão de psicólogo na década de 1970, Mello (1975) veio a constatar que a psicologia escolar estava praticamente ausente do mercado de trabalho para o psicólogo paulista. A autora questionava os porquês de os psicólogos estarem ausentes da maior rede de prestação de serviços públicos à comunidade. Quase uma década após a publicação dessa pesquisa, Patto (1984) passa a questionar a abertura às possibilidades para a psicologia escolar no contexto econômico, político e social do Brasil na segunda metade do século XX. A pergunta que a autora inclui na introdução de seu livro inverte a anterior: “por que os psicólogos começam a se fazer presentes na maior rede de prestação de serviços públicos à comunidade?” (p. 6) – pergunta que trouxe consigo outras perguntas e outras preocupações a respeito das finalidades, concepções epistemológicas e atividades instrumentais da psicologia escolar na sociedade cindida em classes. Patto (1984) apresenta, a princípio, a história das relações entre escola e sociedade a partir de diferentes perspectivas e reconhece a impossibilidade de discussão crítica acerca da psicologia escolar e do papel social do psicólogo fora de uma concepção também crítica das relações entre a educação escolar e a estrutura social na qual se insere a prática educativa. À medida que analisa a natureza do discurso psicológico na educação, a autora encontra a ideologia na psicologia escolar. A forma como a psicologia se apropriou, no decorrer do tempo, dos modelos teóricos das ciências naturais justificou a analogia entre meio natural e contexto social; daí a crítica ao darwinismo que se mostrou presente na ciência psicológica e favoreceu a ideologia da adaptação do indivíduo ao existente nas relações que se estabeleceram historicamente entre psicologia e educação no Brasil.

Conforme já mencionado no capítulo anterior deste trabalho e de acordo com Horkheimer (1937/1968), o objeto por excelência da crítica é a sociedade. Ao tomar a sociedade como objeto, Patto (1984) encontra os obstáculos à existência do indivíduo que a psicologia defendeu ao longo do tempo; assim, revela as possibilidades esclarecedoras da psicologia (Maia, 2007) “que se torna perceptível em sua alienação” (Horkheimer e Adorno, 1947/1985, p. 44) e reconhece seus limites. Outros autores também se dedicaram ao esforço de crítica à psicologia escolar. Urt (1989) destacou os estudos de Campos (1980), Goulart (1984), Libâneo (1985), Franco (1986) e Ferreira (1986). Também Vieira (2008) destaca o trabalho de Goulart (1985) como um dos estudos que se prontificam a pensar uma nova psicologia escolar a partir da realidade do estado de Minas Gerais.

A crítica direcionada à psicologia escolar incidiria sobre o caráter ideológico da ciência na educação. Mencionando o texto de Horkheimer e Adorno (1956) em seu livro, Patto (1984) traz a afirmação dos autores de que ideologia é justificação e, além disso, a crítica em relação à ideia de que a ideologia seria atribuída aos homens em geral (como produto do espírito) e não à dimensão histórica e social. Ora, a necessidade de justificação ideológica se faz em determinadas condições objetivas; condições nas quais o poder não se caracteriza por ser imediato. Entretanto, afirmam os autores que a sociedade tornou-se transparente e que a falsa consciência já não é espírito objetivo, mas algo ajustado à realidade por meio de uma administração planejada (conforme a discussão do segundo item do primeiro capítulo do presente trabalho) do que, anteriormente, teria constituído a ideologia. Portanto, a ideologia refere-se à manipulação intencional que passou a justificar-se por meio da ciência; nesse sentido, contrapor um discurso científico a um discurso ideológico tornou- se, obviamente, exercício cada vez mais difícil no interior da sociedade plenamente administrada. O aval da psicologia na transposição dos critérios de eficácia da produção industrial para a escola colaborou, segundo Patto (1984), com a perpetuação da ideologia na exata medida em que convenceu, por meio de procedimentos cientificamente validados, que os alunos não obtêm êxito em seus processos de escolarização por serem intelectualmente incapazes. Assim, não se chegava ao esclarecimento das condições objetivas que produzem crianças com dificuldades escolares. As investidas da psicologia na área da educação não se referem apenas a pesquisadores e psicólogos, mas, como foi dito, a uma sociedade que convocou a psicologia para atuar em prol daquilo que se constituiu como sua tendência. Não se trata de isentar os indivíduos de responsabilidade quanto à permanência da ideologia na ciência psicológica, mas de entender a maneira pela qual a ideologia opera por meio deles (Adorno, 1968) tendo em vista as tendências dos movimentos da sociedade.

Reitera-se aqui a importância de pensar o movimento histórico da sociedade (Horkheimer, 1937/1968) para que se possa entender o progresso técnico-científico (Habermas, 1968; Marcuse, 1969) na perspectiva de dominação da natureza e do homem. O psiquismo capturado pela técnica em nome da adaptação do indivíduo ao existente revela o espírito de uma sociedade marcada pela frieza (Adorno, 1967/2006d). O controle técnico da psicologia nas instituições escolares, segundo Patto (1984), passa a ser exercido a partir do momento em que os psicólogos assumem funções de diagnóstico, orientação e treinamento nos moldes em que a psicologia viria a definir seu papel na educação ao longo dos anos. O profissional, membro de uma estrutura hierárquica, é reconhecido

como elemento legitimado a orientar as pessoas a como ser, pensar e agir. Perpetua, dessa forma, o trabalho alienado por meio de uma atuação fiscalizadora dos temas pedagógicos e disciplinares. Ainda acerca da relação da psicologia com o domínio técnico dos indivíduos na educação, Patto (1984) diz que os lugares de consultor, especialista, ergonomista, modificador da conduta e pesquisador passaram a ser garantidos aos psicólogos do Brasil a partir da expansão tentacular da psicologia na escola. Como consultor, o psicólogo deveria atuar com orientação e treinamento de professores, visando solucionar problemas de comportamento e aprendizagem das crianças; como especialista, atuaria com demandas propriamente vinculadas ao processo de ensino-aprendizagem numa perspectiva não apenas remediativa, mas principalmente preventiva; enquanto ergonomista, planejaria o ambiente físico da escola a fim de promover a produtividade dos professores, alunos, técnicos e funcionários (essa linha de atuação assemelha-se, segundo a autora, às intervenções da psicologia industrial convocada a aprimorar níveis da produtividade de trabalhadores e, com isso, avalizar a exploração); e, por fim, como modificador do comportamento, o psicólogo voltaria sua atenção à descrição, previsão e controle da conduta, sem maiores questionamentos sobre o caráter de adaptação das intervenções. A partir dos exemplos, verifica-se com clareza a presença de uma imagem do psicólogo como técnico de correção dos desajustes pessoais nas instituições escolares. Já na segunda metade do século XX, a tecnologia do exame psicológico seria influenciada por um discurso teórico que ficou conhecido como teoria da “carência” ou da “privação” cultural. De acordo com Patto (1984), tratar-se-ia de um corpus teórico originalmente norte-americano das décadas de 1960 e 1970, motivado por reivindicações de “minorias raciais marginalizadas” fartas do discurso ideológico liberal15 da igualdade de oportunidades. As contradições sociais são vistas como disfunções do organismo social e sugeriam, por sua vez, ações do Estado para resolvê-las e para que fosse restabelecido o equilíbrio da sociedade. A teoria da carência cultural se incumbiria de afirmar, já nas primeiras formulações, que a pobreza ambiental das classes populares produzia problemas ao desenvolvimento global da criança e que tais problemas eram as causas explicativas de fracasso na escola - manifestação mais sutil (e por isso mesmo, mais poderosa) do preconceito racial e social (Patto, 1990/2008). Entre os elementos teóricos das teses da carência e/ou privação

15 O liberalismo, doutrina econômica de defensores do livre desenvolvimento de interesses individuais sem limitação

estatal, tem como corolário o individualismo, uma das características distintivas do estilo de vida que se desenvolveu no capitalismo e que passa a ser designado como gênero de vida burguês. As crenças nas quais se apoia o liberalismo consistem em sustentar a ideia de uma sociedade de classes na qual os indivíduos possam escolher voluntariamente o caminho que os conduziria a um determinado status na vida. As capacidades individuais poderiam desenvolver-se ao máximo das suas potencialidades e as pessoas seriam livres para atingir as posições sociais de prestígio (Patto, 1984).

cultural, encontram-se as seguintes ideias: minorias raciais estão situadas à margem da sociedade por não conseguirem obter estabilidade no tocante à inserção no mercado de trabalho que, por sua vez, depende de escolaridade mínima; no entanto, os levantamentos estatísticos revelam ser baixo o nível de escolaridade dos membros desses grupos; é preciso, portanto, gerar condições para que os indivíduos se escolarizem e possam competir em condições de igualdade com os outros16. Mas é preciso lembrar que, apesar das críticas, a teoria da carência cultural rompe com o organicismo.

Os parcos recursos econômicos da família da “criança carente” e a negação da experiência formativa não são pensados, pelos cientistas da teoria da carência cultural, como efeitos do modo de produção e da ordem social; sendo assim, a teoria serve à ideologia na justificação do existente que se dá por meio de certa indiferenciação entre a sociedade e a cultura. O objetivo de promover a integração de marginalizados à cultura da classe média como via de acesso de “desfavorecidos” à ascensão social comparece, segundo Patto (1984), no discurso psicológico e se efetiva por meio dos programas de educação compensatória. Os programas seriam algo como a última chance para que o indivíduo provasse sua capacidade de escolarizar-se e, caso não obtivesse êxito, restaria tão somente a internalização resignada do sentimento de incapacidade e uma falsa explicação para as dificuldades; falsa porque negadora do modo pelo qual o sistema age na produção do problema17.

No capítulo anterior, o conceito de pseudoformação foi apresentado como uma espécie de contraparte subjetiva dos efeitos da indústria cultural (Adorno, 1962/1971; Horkheimer e Adorno, 1947/1985; Horkheimer e Adorno, 1956) que, por sua vez, fala de certas relações entre economia e cultura atravessadas por uma “racionalidade estratégica da produção econômica, que se inocula nos bens culturais” (Maar, 1995, p. 21). Essa racionalidade volta-se ao proletário e ao burguês e é pensada por Marcuse (1969) em termos de uma integração entre as classes. Daí se depreende que o indivíduo resignado a uma posição de incapaz é precisamente aquele que, nas palavras de Maia (1998), negou o que a ele se negou: “a possibilidade de uma experiência autêntica no contato com o objeto” (p. 29). Portanto, poder-se-ia ponderar aspectos em relação à teoria da carência cultural e aos programas de educação compensatória a partir dos elementos supracitados, já que oferecem uma leitura do tema a partir de análises acerca das condições objetivas (Horkheimer, 1937/1968).

16 O texto de Varella (2014) é um bom exemplo do quanto as concepções subjacentes à teoria da carência cultural são

ainda marcantes não apenas no imaginário social, mas também na produção científica em psicologia e em economia. --- ---

17 Segundo Patto (1990/2008), a teoria da carência cultural veio a exercer forte influência na produção acadêmica dos

O trabalho de Patto (1984) foi publicado no momento em que começavam a se estabelecer alguns elementos para o exercício da crítica à psicologia escolar no Brasil. O livro se inclinaria ao desvelamento de mecanismos por meio dos quais se sustenta o discurso de uma psicologia que se pretende politicamente neutra no contexto de uma sociedade historicamente determinada18. Ora, a identificação de contradições de uma sociedade cindida permitiu à autora interpelar os psicólogos quanto às suas posições diante dos problemas colocados por um objeto que passaria a ser definido em outros termos e que será melhor discutido no próximo item deste capítulo. Os desafios postos à psicologia escolar a partir da crítica iniciada nos anos 1980 já indicariam uma nova etapa para a área diante do reconhecimento da presença da ideologia em seu interior (Barbosa e Souza, 2012).

Patto (1984) fala da construção de uma psicologia inclinada à compreensão da sociedade e que vislumbra sua transformação. Trata-se de um delicado debate acerca da relação teoria-práxis, que pede atenção a limitações. O exercício da psicologia como ato político exige muita discussão:

... este trabalho pretende colaborar na elaboração permanente da psicologia crítica (...) à psicologia como técnica, comprometida com uma classe social específica (...) seria necessário opor uma psicologia que, muito embora focalizando especializadamente os processos psíquicos, não perca de vista uma totalidade concreta que lhes dá sentido. Nesta perspectiva, fazer psicologia continua sendo um ato político como sempre foi, mas agora um ato político comprometido com os agentes da transformação da estrutura social e não mais com os interessados pela sua conservação. (p. 3)

De acordo com Barbosa e Souza (2012), os questionamentos que foram postos a partir dos trabalhos orientados pela crítica tirariam o foco da “criança que não aprende” a fim de analisar as histórias singulares de alunos com dificuldades de escolarização e as condições de aprendizagem. Angelucci, Kalmus, Paparelli e Patto (2004) dedicaram-se à análise da produção científica acerca do fracasso escolar e puderam constatar a existência de redundâncias e avanços nos trabalhos que ora reduzem o objeto à dimensão psicológica, ora o entendem como problema meramente técnico ou somente institucional e político. As autoras verificaram, no entanto, que até mesmo os estudos ditos orientados por uma perspectiva crítica aproximam concepções inconciliáveis sobre o objeto.

18 Há de se considerar o período histórico da passagem da década de 1970 para a década de 1980, já que movimentos

sociais de resistência ao autoritarismo político abriram caminho ao processo de democratização do país. Embora seja possível problematizar tal questão, tendo em vista o enraizamento das tendências autoritárias numa sociedade apenas formalmente democrática, não se pode negar que o contexto histórico daquele período favorecia uma abertura para o que se poderia chamar de um fecundo movimento de questionamento sócio-político, que impulsionaria os avanços da crítica: “não se vive, sem marcas, anos e anos de uma conjuntura política marcada pela repressão” (Patto, 1984, p. 2).