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Lugares institucionais e inquietações acerca da definição do objeto

O preço que os homens pagam pelo aumento de seu poder é a alienação daquilo sobre o que exercem o poder

PERCURSO DE CONSTITUIÇÃO DA PSICOLOGIA ESCOLAR NO BRASIL E FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA

2.2. Lugares institucionais e inquietações acerca da definição do objeto

O primeiro momento da relação entre psicologia e educação no Brasil ainda não permitiria que se falasse em psicologia educacional e/ou escolar. Para Barbosa e Souza (2012), só é possível argumentar em defesa da existência de algo mais concreto em relação ao encontro entre as áreas a partir da autonomização da psicologia, do reconhecimento da profissão de psicólogo (que ocorreu apenas em 1962) e da intensificação de demandas sociais postas à escola, por sua vez justificadas pelo entusiasmo de que a educação viria a contribuir ao desenvolvimento da nação (Nagle, 1974).

Para Barbosa e Souza (2012), a caracterização inicial das especificidades de um objeto da psicologia educacional e escolar se deu de maneira gradativa, a partir dos questionamentos acerca das finalidades, dos meios de investigação e dos conceitos primordiais. Falava-se em puericultura quando o interesse centrava-se nas questões acerca do desenvolvimento das crianças; falava-se de ortofrenia quando o objetivo dirigia-se às “anormalidades” e em pedagogia terapêutica ou higiene mental escolar quando as intervenções eram orientadas por uma racionalidade clínico-terapêutica dirigida ao ajustamento do aluno à escola que, supostamente, lhe permitiria o desenvolvimento do intelecto para o pleno exercício da cidadania, tal como rezou a ideologia liberal (Crochík, 2007a). Muito embora as escolas normais, os gabinetes e laboratórios possam ser reconhecidos na qualidade de instituições onde se deram os primeiros encontros entre a psicologia e a educação no Brasil, é somente a partir da constituição de clínicas de orientação infantil e dos departamentos de assistência ao escolar, no final da década de 1930, que se pode supor preocupação com a garantia de respaldo institucional para as demandas escolares colocadas para a psicologia (Patto, 1984). A ênfase de tais serviços, segundo a autora, é a modalidade de atendimento clínico-terapêutico que, por sua vez, explicitaria uma noção de indivíduo cuja existência os desdobramentos da sociedade industrial não permitiu (Maia, 2007). A tendência de avaliações psicométricas dos laboratórios de pedagogia experimental não seria mais suficiente diante das ideias interacionistas e/ou inspiradas pela psicanálise. Não se explicaria mais o que ocorria às crianças com dificuldades para aprender apenas em termos orgânicos ou cognitivos; não bastavam procedimentos da avaliação de funções psíquicas elementares, mas era preciso considerar os vínculos que a criança estabelecia no âmbito familiar (Barbosa e Souza, 2012), pois se partia do pressuposto de que os desarranjos nas relações familiares produziriam os problemas afetivos que gerariam certos obstáculos à adaptação escolar.

De acordo com Patto (1984), as clínicas de orientação infantil detinham-se basicamente na investigação de problemas de caráter neurológico, psicológico, fonoaudiológico e psiquiátrico. Se eram esses os temas centrais, argumenta a autora, preocupações relativas à dinâmica institucional das escolas, aos métodos e conteúdos do ensino, às relações de poder e aos problemas sociais não se faziam presentes. E, nesse sentido, diz a autora que a escola e os seus modos de funcionamento não eram objetos de questionamento; nem mesmo eram vistos como variáveis que poderiam gerar problemas de aprendizagem e/ou de ajustamento. Ora, os propósitos de tais serviços terapêuticos, segundo Barbosa e Souza (2012), estavam muito direcionados ao ajustamento de alunos à escola: “... como a educação e a escola brasileira estavam passando naquele momento por reformulações, a psicologia veio para contribuir com a organização destas” (p. 168). Se a psicologia foi chamada a contribuir com os rumos da sociedade, há que se analisar a sociedade (Horkheimer, 1937/1968).

Guzzo et al. (2010) falam sobre o expressivo aumento na possibilidade de acesso à escola básica durante as décadas da ditadura militar brasileira. Destacam, porém, que essa determinação não foi acompanhada pela qualificação das condições de trabalho do professor e da infraestrutura de instituições escolares. Consequentemente, inicia-se o processo de desmantelamento do sistema de ensino público e o país obedece a uma agenda neoliberal por sua vez submetida a empréstimos e ditames do Fundo Monetário Internacional. Os altos índices de repetência e evasão falavam das agruras da vida profissional de educadores e da negação de direitos de usuários da escola pública:

Mesmo a partir da determinação de universalização do ensino fundamental como fruto de processos constituintes posteriores à ditadura e no interior do neoliberalismo implementado no país, a escolaridade das crianças não se mantinha enquanto prioridade política e os desafios tornavam a realidade escolar um quadro desalentador no sentido da violação dos direitos fundamentais ao desenvolvimento e aprendizagem de todas as crianças. (p. 133)

Com a aprovação da lei que regulamentaria a psicologia como profissão no Brasil (Lei Nº 4.119, de 27 de Agosto de 1962), cresce o número de expressões da aplicação dos conhecimentos psicológicos, bem como a tendência de uma psicologia escolar (Barbosa e Souza, 2012). Segundo Patto (1995a), a disciplina Psicologia escolar e problemas de aprendizagem aparecia no currículo de formação em psicologia desde a década de 1960; na Universidade de São Paulo, a disciplina se firmava numa abordagem direcionada ao indivíduo e era ministrada pelos docentes da Cadeira de Psicologia Educacional que trabalhavam com dificuldades de aprendizagem escolar com base nas suas especialidades: psicologia do desenvolvimento infantil, psicologia diferencial, psicologia do

excepcional, psicologia da aprendizagem, testes e medidas. O tema das dificuldades com a língua escrita já se fazia presente à época e tais dificuldades, de acordo com a autora, eram vistas a partir do ângulo das deficiências intelectuais, sensoriais ou de distúrbios neurológicos que, por sua vez, causariam problemas de lateralidade e dislexia. À Cadeira de Psicologia Clínica restaria a função de analisar as dificuldades de escolarização das crianças de um ponto de vista afetivo-emocional.

Ainda com Patto (1995a), a proposta em torno da criação do serviço de psicologia escolar na USP viria dos professores que apostavam nas possibilidades de uma sociedade de classes justa se cada indivíduo pudesse ocupar um lugar dado em função de suas capacidades pessoais - crença liberal que apontava para a identificação de indivíduos aptos e inaptos para a escola. A criação do curso de psicologia trouxe, por sua vez, a necessidade do cumprimento de horas de estágio para a obtenção do diploma de psicólogo e, sendo assim, estudantes de psicologia passavam a utilizar os instrumentos de avaliação psicológica – que já não eram, segundo a autora, aparelhos de medidas psicofísicas, mas instrumentos de avaliação da inteligência ou de outras habilidades específicas14.

Patto (1995a) afirma que a década de 1970 foi decisiva para a redefinição dos objetivos da psicologia escolar. De um lado, os docentes de formação comportamental passariam a propagar a instrução programada e a modificação dos comportamentos de crianças desviantes da norma; por outro lado, teorias crítico-reprodutivistas (Althusser e Bordieu) enfatizariam o caráter ideológico, excludente e domesticador da escola na sociedade de classes; com isso, alertavam para a possível contribuição da psicologia à afirmação do existente e também viriam a impulsionar mudanças nas leituras interpretativas das dificuldades escolares. Tais mudanças, por sua vez, anunciam o desejo da criação de um novo espaço de teoria e prática da psicologia no campo da educação. A partir do reconhecimento dos limites impostos pelas condições históricas aos projetos de transformação da escola e da consciência de que a psicologia não pode fazer da escola um lugar de igualdade numa sociedade desigual, buscava-se, ainda assim, a possibilidade de outras falas na psicologia escolar.

Na década de 1970, os profissionais de psicologia alocados nas clínicas de atendimento ao escolar (ligadas às secretarias estadual e municipal de educação) passariam a questionar e discutir o caráter estritamente clínico das intervenções em função do expressivo crescimento da demanda e da crítica (que já começava a circular) ao reducionismo individual nos atendimentos (Barbosa e Souza, 2012). Haveria que se discutir, porém, se tal ampliação de perspectiva teria sido suficiente para superar entraves postos por limites históricos objetivos à atuação da psicologia institucional.