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A Declaração de Independência e a liberdade Lockeana-republicana

2 Dois ideais de liberdade americana nos debates do antebellum

2.3 Reconciliando Locke e Republicanismo no Norte

2.3.1 A Declaração de Independência e a liberdade Lockeana-republicana

As "self-evident truths" expostas na Declaração de Independência, formuladas a partir da conceptualização de Locke sobre o governo limitado49, que definiram os direitos dos homens à "Life, Liberty, and the pursuit of Happiness" não são compatíveis com a descrição de governo republicano de Hammond, Bledsoe e Calhoun. Ao construir seus ideais de autogoverno comunitário, com noções corporativistas de desigualdades justificadas em nome de um bem comum, alguns desses pensadores sulistas explicitamente rejeitaram a Declaração de Jefferson (as

48

CW, Address before the Wisconsin State Agricultural Society, V3, 1859.

49 "The state of nature has a law of nature to govern it, which obliges every one: and reason, which is

that law, teaches all mankind, who will but consult it, that being all equal and independent, no one ought to harm another in his life, health, liberty, or possessions" (LOCKE, 2003, p. 102, grifos nossos).

Notes on the State of Virginia se mantiveram entre suas obras mais citadas50). O movimento antiescravista no norte se fundamentou em recuperar a Declaração, expandindo seu alcance para incluir negros, o oposto dos pressupostos por trás da decisão Dred Scott da Suprema Corte, em 1857, que consolidava constitucionalmente as visões sulistas sobre escravidão, sociedade orgânica e direitos de propriedade (RANA, 2010, p. 146). Nessa decisão, a narrativa da Revolução Americana exclui negros de qualquer participação na Revolução, ou na concepção dos documentos fundadores, portanto desautorizando seu usufruto de direitos individuais ali garantidos (Dred Scott 2008[1857], p. 400). Para trazer à tona uma defesa de valores ditos universais, o anti-escravismo nortista primeiro construiu uma descrição aristocrática das sociedades ao sul, e posicionou as sociedades dos estados do norte (e mais especificamente o Partido Republicano) como os defensores de governos livres em qualquer contexto. Lincoln apresentou essa tese de forma resumida nos debates na eleição senatorial de 1858:

"The real issue is the eternal struggle between these two principles [...] throughout the world. They are the two principles that have stood face to face from the beginning of time [...]. The one is the common right of humanity and the other the divine right of kings. [...] It is the same spirit that says, 'You work and toil and earn bread, and I'll eat it.' No matter in what shape it comes, whether from the mouth of a king [...] or from one race of men [...], it is the same tyrannical principle" (LINCOLN, 1953, p. 31551)

Enquadrando as disputas regionais como uma batalha entre uma tirania e um governo livre, Republicanos reivindicaram representar não apenas os negros escravizados, mas também "toda a família humana" (LINCOLN, 1953, p. 42652). Como o então futuro Secretário de Estado na administração Lincoln, William H. Seward, colocaria em 1855, "the cause of America had always been [...] the cause of human nature", e os princípios enumerados na Declaração faziam dos Estados Unidos necessariamente republicanos. "Other governments, founded on the ancient principle of the inequality of men, are [...] monarchies or aristocracies" (SEWARD, 1884, p. 226)53. Quando o território de Oregon se candidatou a tornar-se estado em 1858, com uma Constituição estadual que reduzia criticamente os direitos de negros livres, o Partido Republicano se dividiu entre aprovar ou não a entrada de mais um

50

Ver Sweet (2012).

51 CW, Seventh and Last Debate with Stephen A. Douglas at Alton, Illinois, V3, 1858. 52

CW, Special Session to Congress, V4, 1861.

estado não-escravista, mas com provisões contrárias aos valores universais que muitos membros do partido sinceramente acreditavam. O resultado dos debates ao redor da aceitação do Oregon foi a formação do que Foner chama o mainstream do partido, assegurando que "free Negroes were human beings and citizens," com direitos a "the natural rights of life, liberty, and property". Em seus debates com o democrata Stephen Douglas na corrida para o Senado de 1858, Lincoln insistia que o significado da expressão "'all men are created equal'" significava "just what it said — all men, without distinction of color" (FONER, 1995), querendo dizer que havia possibilidade de usufruto de direitos básicos indiferente à cor de pele. Para as defesas sulistas da desigualdade natural e o reconhecimento da escravidão em estatutos constitucionais, o movimento antiescravista respondia, com a Declaração de Independência em mente, apontando para uma lei superior, acima da legislação humana, que justificava liberdade universal. A ideia de uma lei acima da Constituição compartilha com Locke a noção de que todas as terras são "common heritage, bestowed upon [men] by the Creator of the universe" (SEWARD, 1884, p. 74)54. Tal afirmação, se radical aos ouvidos dos teóricos sulistas, não era excepcional no pensamento político norte-americano. O direito comum a tudo que é natural está explícito no Segundo Tratado de Locke:

"Though the earth, and all inferior creatures, be common to all men, yet every man has a property in his own person: this nobody has any right to but himself. The labour of his body, and the work of his hands, we may say, are properly his." (LOCKE, 2003, p. 112)

Aos olhos dos Republicanos, e mesmo alguns Democratas do norte, negar o direito aos frutos do próprio trabalho a um negro era o mesmo que negar sua humanidade e a capacidade de um indivíduo ter propriedade sobre si mesmo. A despeito da retórica de desconstrução da humanidade negra nos discursos dos senhores de escravos, havia algo que os fazia perceber que "the poor negro has some natural right to himself" (LINCOLN, 1953, p. 265)55, que, segundo Lincoln, seria uma aceitação implícita da narrativa Lockeana da propriedade de si. Apesar de Lincoln insistir no respeito ao direito de propriedade em escravos dos fazendeiros sulistas, os princípios da Declaração e sua percepção de que havia diferenças entre "hogs and negroes" (LINCOLN, 1953, p. 264)56 justificavam sua constante oposição

54 Works, Freedom in the New Territories, V1, 1850. 55

CW, Speech at Peoria, Illinois, V2, 1854.

à expansão da escravatura por novos territórios Essa concepção de direito natural, que opõe escravos e homens livres sob o eixo da sujeição ao domínio de outro se opõe, como nos mostra Skinner (2003), à ideia, presente em Fitzhugh, de que o escravo está em uma condição análoga à do senhor. No entanto, as teorias de liberdade que influenciaram Locke e outros teóricos de língua inglesa insistiam que a escravidão se definia pela condição de dependência, apenas quando contrária à natureza (SKINNER, 2003, p. 13)57. A inovação da ideologia free labor está em colocar a capacidade universal ao trabalho como um traço básico da liberdade, anulando a dicotomia entre esses termos conforme formulada no sul. Isso é, mesmo que o negro seja naturalmente inferior (algo aceito pelos Republicanos, como veremos a seguir), sua capacidade de trabalho lhe garantia uma condição natural de liberdade.

Lincoln apresenta esse argumento em seu discurso na Wisconsin Agricultural Society de 1859, em resposta à teoria mud-sill de Hammond. Enquanto sociedades escravocratas presumem que "nobody labors, unless somebody else [...] induces him to do it" (LINCOLN, 1953, p. 477)58, colocando portanto o capital como uma condição necessária para qualquer forma de produção, sociedades livres entenderiam o capital como "the fruit of labor", e que os homens trabalham "for themselves" mesmo na ausência de capital. A teoria social free labor contém duas consequências explícitas na fala de Lincoln. A primeira é uma sociedade marcada pela mobilidade social. Contrariamente à teoria do trabalho em sociedades escravistas, os grupos (ou classes) de contratados e contratantes não seriam estáticos, um homem poderia começar sua carreira como contratado, tornar-se um trabalhador independente e afinal chegar ao estágio de contratante, a depender de seu próprio esforço e capacidade de economia, acumulação, e de viver uma vida relativamente ascética. A segunda consequência é a ausência de uma barreira entre educação e trabalho, comum em sociedades aristocráticas. Ao invés de uma aristocracia educada e uma massa de trabalhadores necessariamente ignorantes, um princípio de igualdade universal dos homens ("the Author of man makes every

57 Skinner (2003) demonstra a retomada pelos parlamentaristas nas guerras civis inglesas, do direito

romano e sua distinção entre o homem livre (sui iuris) e o escravo (sub potestate). O primeiro age em seu próprio direito, enquanto o segundo sob o arbítrio de outro. Essa teoria tem influência sobre os agricultores sulistas, que se consideravam independentes de poder arbitrário apenas quando possuidores de propriedade fundiária.

individual with one head and one pair of hands", [LINCOLN, 1953, p. 479-80]59) justificava que a educação poderia aprimorar o trabalho. Mas, além disso, o trabalho (especificamente na agricultura) também aprimoraria a educação, quando confirmada a máxima de distribuição do "smallest quantity of ground to each man": cada um tentaria "produce two, where there was but one" (LINCOLN, 1953, p. 480)60. Enquanto a lei superior para Seward significava direitos individuais fora do escopo do governo, para Lincoln, ela é free labor, uma vez que o trabalho livre é uma fonte da liberdade e prosperidade americanas. Sociedades de trabalho livre foram responsáveis pela prosperidade da "cause that every man can make himself" (LINCOLN, 1953, p. 36461). Ao trabalhar a terra, pequenos agricultores no norte produziam a liberdade e o cidadão livre americano. Como em Locke, a interação entre o homem e a terra gerava não apenas propriedade, mas também a posse de si mesmo que permitia uma formação livre e independente62. O trabalho na terra geraria autossuficiência, acumulação e racionalidade, todas as qualidades do cidadão republicano independente, conforme Hammond o definia. Free labor como ideologia e teoria social combina Locke e Jefferson, criando uma cidadania liberal- republicana. Popular o oeste com senhores e seus escravos ameaçaria a relação com a terra que gera, de acordo com Lincoln, o bom cidadão nos moldes dos desejos dos founding fathers. Se interrompêssemos aqui, concordaríamos com Gourevitch que o pensamento Republicano resolveu o paradoxo da liberdade e escravidão, ao fazer da capacidade ao trabalho, e não da propriedade, a fonte da independência e liberdade. No entanto, o pensamento no norte (isso não se reduz ao Partido Republicano) trazia consigo limitações à ideologia free labor que o aproxima da interpretação de Rana sobre a sociedade colonial.

59

CW, Address before the Wisconsin State Agricultural Society, V3, 1859.

60 CW, Address before the Wisconsin State Agricultural Society, V3, 1859. 61 CW, Speech at Kalamazoo, Michigan, V2, 1856

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Aqui, porém, é preciso observar que, para Locke, o homem livre e proprietário de si produz propriedade como uma extensão dele mesmo; por ser livre produz a propriedade, não o contrário (por produzir propriedade se torna livre). Essa distinção se exemplifica pela figura do "serviçal", que não seria livre, mas sujeito ao empregador, e mesmo assim exerceria um trabalho sobre a terra. Essa distinção, em Locke, pode ser interessante para pensar a capacidade de ser livre, que discutiremos na próxima seção. Mesmo livre (da escravidão), o negro no Norte é como o serviçal em Locke. Capaz de trabalhar, e mesmo de tornar-se proprietário, mas não de atingir a condição de liberdade plena associada a estes dois fatores.

2.4 Capacidade de trabalho e a nação natural: racismo e a dualidade do