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Conclusão: Constitucionalismo Popular e Compreensões Compartilhadas

3 Imagens Retóricas da América Negra: reformulação do nós o povo durante

3.4 Conclusão: Constitucionalismo Popular e Compreensões Compartilhadas

Figura 3.2 — Theodor Kaufmann (1867), On to Liberty.

Enquanto as pinturas de Wood, de 1866, descreviam as mudanças na imagem negra ocorridas durante a Guerra Civil, da fuga ao recrutamento e, em sua visão, incorporação como cidadãos em decorrência de seu serviço militar, On to Liberty, de Theodor Kaufmann nos permite uma narrativa diferente. Em primeiro lugar, percebemos apenas mulheres e crianças entre os libertos. Duas leituras são possíveis sobre a ausência de homens adultos. Em primeiro lugar, eles estariam no

exército. Ou, como descreviam muitos conservadores ao negar o sufrágio negro, os libertos estavam na mesma situação de mulheres e crianças — incapazes de usufruir das liberdades oferecidas. Nos primeiros anos após o fim da Guerra, Andrew Johnson criou uma política de distribuição de perdões a antigos Confederados, para que eles se reunissem à comunidade política norte-americana. Os libertos, por outro lado, e como descrito na obra de Kaufmann, ainda teriam um caminho longo e tortuoso rumo ao pertencimento ao povo e à União, sob a bandeira americana no fundo da imagem. Ademais, seu ponto de partida, expresso por diversos discursos Republicanos apresentados acima, e mais precisamente na pintura, era um estado de selvageria, pré-civilizado. Os retratos de Wood, do contrabando tornado veterano, traziam uma narrativa otimista do futuro negro em sua nova condição. Em Kaufmann, há preocupação quanto ao sucesso que radicais, e seus aliados negros, atingiriam. Enquanto o primeiro assumia a re-promulgação de um terceiro povo, formado na experiência do campo de batalha, e seus efeitos sobre a (auto)percepção negra de humanidade, seguindo argumentos de Frederick Douglass e outros abolicionistas, o segundo via como os Estados Unidos brancos ainda representavam um distante sonho, não necessariamente atingível, para os recém libertos.

Frederick Douglass foi um dos mais vigorosos defensores do recrutamento negro durante a Guerra e da abolição, tanto como meio da vitória como fim a ser perseguido. Contudo, ele entendia a limitação enfrentada, como reconhecia em 1864, que "the people [in the North] hate and despise the only measure that can save the country". Seu objetivo, neste discurso apresentado à Women's Loyal League, era defender a ideia de unidade do povo americano, o que aqui estou chamando de terceiro povo. Uma nova unidade, entre leais — negros e brancos — seria a única solução para o dilema de usar a abolição para salvar uma União racista. Tal nova unidade, baseada não nos compromissos prévios de ancestralidade, mas na devoção aos princípios de justiça formulados na Declaração de Independência, "in which the obligations of patriotism shall not conflict with fidelity to justice and Liberty" (DOUGLASS, 1999, p. 557)123. Eu concordo com Frank (2010) que o ato do discurso, e a escolha do uso da primeira pessoa — nós — por Douglass representavam uma forma radical de autorização democrática de um novo

povo. O simples ato de fala de um escravo fugido já desempenhava, por si só, um papel político importante na definição de quem é o povo criado nos documentos fundadores. Douglass, nesta fala em 1864, reconhecia que uma "nation is not born in one day", ou que seus esforços, assim como de seus aliados radicais Republicanos, para alterar a forma como os brancos perceberiam os libertos teria apenas retornos parciais (primeiro o reconhecimento da humanidade negra, depois emancipação, recrutamento militar e, no momento da fala, debate sobre uma instituição de auxílio à cidadania, o Freedmen's Bureau). Ainda assim, apesar dos elementos inclusivos dos discursos dos abolicionistas negros, tanto conservadores como radicais brancos tinham dificuldade em apoiar seu esforço de auto-promulgação como um único povo americano. Ao passo que o argumento conservador centrava-se em seu direito à propriedade (antes da abolição definitiva) e em noções de hierarquia racial, abolicionistas brancos diziam a Douglass para apenas "give us the facts, we sill take care of the philosophy" (citado em FRANK, 2010, p. 230). Ou, ao reportar sobre uma reunião abolicionista no início da Guerra, o Tribune publicaria longos discursos de Garrison ou Wendell Philips, mas apenas mencionar a presença de um escravo fugido, sem o conteúdo de sua fala (NYTrib, 07/05/1862). Tais atos de fala, ou de silenciamento, denunciavam as noções do "lugar próprio" para negros, nunca além de coadjuvantes em sua própria luta por liberdade, e pertencimento.

Mais uma vez, Douglass parece entender a importância da imagem sociológica do negro para a possibilidade de realização de seus objetivos igualitários:

"While a respectable colored man or woman can be kicked out of the commonest street car in New York where any white ruffian may ride unquestioned — we are in danger of a compromise with Slavery. While the North is full of such papers as the New York World, Express, and Herald, firing the nation's heart with hatred to Negroes and Abolitionists, we are in danger of a slaveholding peace. While the major part of anti-slavery profession is based upon devotion to the Union rather than hostility to Slavery, there is danger of a slaveholding peace". (DOUGLASS, 1999, p. 565)124

Essa descrição da impossibilidade da liberdade efetiva, do ponto de vista de um negro — o que inclui pertencer ao nós o povo, e não simples abolição — enquanto mesmo no Norte mantém posições racistas apresenta um problema para descrições de constitucionalismo popular conforme formuladas por Ackerman

(1998), Kramer (2004) e mesmo Frank (2010, apesar de que Frank está menos preocupado com história constitucional que com a disputa democrática sobre um povo constantemente se auto-promulgando) e sua relação com direitos humanos. Se há um apelo ao o povo no momento de legislação constitucional125, ou em argumentações da Suprema Corte, ou mesmo se a realização do povo depende de sua capacidade de auto-realização, então a possibilidade de inclusão será sempre dependente do "lugar apropriado", sociologicamente construído, dos excluídos. Rogers Smith (1997) nota essa limitação, nomeando-a como uma tradição, ascriptiva. Meu objetivo era separar os discursos ascriptivos das leis e estatutos de cidadania, diminuindo a circularidade no argumento de Smith. Entretanto, além de encontrar os aspectos ascriptivos nos discursos oficiais durante o período analisado, nós podemos identificar uma limitação também no aspecto liberal das falas dos radicais, que é a sub-consideração da realidade sociológica onde este discurso está inserido — e pretende alterar. Presumindo a igualdade natural dos homens, abolicionistas e radicais subestimaram a força das desigualdades construídas, tanto materiais, devido a séculos de trabalho servil, como ideológicas, devido a difusão da supremacia branca em todas as regiões do país.

Mesmo que inserida em debates de outro contexto político, uma passagem do teórico John H. Schaar, com uma leitura positiva da teologia de Winthrop nos ajuda a entender a limitação no pensamento liberal, "Magistrates have no license to set their views above the common understanding of the community. Authority is public, communal, the product of shared agreements and convictions" (SCHAAR, 1991, p. 498). Independentemente de como a linguagem usada para se referir aos negros (livres ou escravos) se desenvolveu durante os anos de conflito, e das mudanças institucionais trazidas pela emancipação, pelo Bureau, ou pelo sufrágio, radicais ainda lidavam com um público com um entendimento persistente de autoridade sem espaço para a igualdade racial. A despeito dos avanços trazidos pela Guerra e reforçados na Reconstrução, o negro em nenhum momento deixou a posição de eles no discurso branco oficial. Seu lugar de outro não permitiu um ideal cívico baseado no consenso, mas sim na subjugação. Sem romper a barreira de nós o povo, a inclusão negra persistiria restrita a um lugar radical no debate público.