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A DEFINIÇÃO DE AÇÕES AFIRMATIVAS

2. ARGUMENTOS DE INCOMPATIBILIDADE

2.1 A DEFINIÇÃO DE AÇÕES AFIRMATIVAS

Há múltiplas definições de ações afirmativas (AFs). Como lembra Piscitelli (2007, p. 50), a maioria delas contém os termos “igualdade material”, “políticas públicas”, “intervenção estatal”, o que já dá uma boa dimensão do alcance da expressão. Dentre as definições compiladas por Piscitelli, consideramos uma das mais completas aquela produzida pelo ex- ministro do Supremo Tribunal Federal Joaquim Barbosa (apud PISCITELLI, 2007, p. 51):

Conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego (…). Em síntese, trata-se de políticas e mecanismos de inclusão concebidas por entidades públicas, privadas e por órgãos dotados de competência jurisdicional, com vistas à concretização de um objetivo constitucional universalmente reconhecido - o da efetiva igualdade de oportunidades a que todos os seres humanos têm direito. A definição de Barbosa, contudo, peca ao indicar apenas duas das finalidades das ações afirmativas, deixando de fora uma das finalidades mais importantes para tais políticas públicas.

Não se objetiva aqui amplo estudo sobre as finalidades das AFs. Mas pode-se afirmar, com segurança, que as três principais finalidades são: (i) promoção da igualdade de oportunidades, já indicada no conceito acima; (ii) compensação por efeitos ainda vigentes de injustiças históricas, também indicada por Barbosa; (iii) e promoção da diversidade.

Com efeito, o argumento da diversidade, não indicado por Barbosa, deve ser mencionado porque ele é amplamente presente nas discussões sobre AFs no país que foi um dos berços dessas políticas públicas. Como noticia Fullinwider (2014), no afamado caso Bakke, julgado pela Suprema Corte norte-americana em 1978, foi reconhecida a constitucionalidade do sistema de cotas raciais para aumentar a presença de afrodescendentes no ambiente acadêmico, ao argumento de que a diversidade era um valor útil a ser promovido pela universidade, dada sua missão institucional49.

Michael Sandel (2014), da mesma forma, destaca amplamente que um dos principais argumentos envolvidos no debate sobre cotas é o argumento da diversidade. Esse argumento

49

Há, ainda, outros casos noticiados por Ronald Dworkin. Para informações mais detalhadas sobre ações afirmativas, sobretudo nos Estados Unidos, veja-se, além do capítulo 9 de Levando os Direitos a sério (DWORKIN, 2016), também o verbete bastante completo da Enciclopédia on-line de Stanford (FULLINWIDER, 2014).

baseia-se, de forma geral, em duas premissas. A primeira afirma que a heterogeneidade de raças, etnias e classes sociais em um determinado grupo, cujos integrantes interagem com frequência (fator da diversidade), enriquece a cultura e amplia a perspectiva individual, e assim faz dos integrantes indivíduos mais preparados para um mundo de multiculturalismo. A segunda premissa defende que esse incremento cultural e de perspectiva nos integrantes desses grupos é benéfico para toda sociedade. Logo, dado que a qualidade do serviço educacional de uma instituição de ensino decorre inclusive da diversidade (racial, cultural

inter alia) de seu corpo discente, é legítimo que elas usem essa diversidade como critério

seletivo.

Na verdade, cumpre-nos fazer esse esclarecimento sobre a multiplicidade de finalidades (ou fundamentos) das ações afirmativas, pois cremos que não há como comparar adequadamente as ações afirmativas com a teoria de Rawls se não levarmos em conta as múltiplas razões que embasam as primeiras.

Para sustentar essa nossa afirmação, suponha-se que se possa dividir a análise da compatibilidade entre a teoria de Rawls e as AFs em dois tipos de argumento: os argumentos baseados na compatibilidade de finalidades (aquilo que as AFs querem produzir); e os argumentos baseados na compatibilidade de meios (aquilo empregado para se atingir as finalidades das AFs).

Isolados os argumentos, pode-se dizer que promover oportunidades equitativas é uma

finalidade presente em várias AFs, e é uma finalidade é absolutamente compatível com a

teoria de Rawls. Nesse caso, portanto, há compatibilidade sob o prisma da finalidade.

Por outro lado, com certeza, não se poderia dizer que uma AF que promovesse oportunidades equitativas seria compatível com a teoria rawlsiana se ela o fizesse por meio de

violação das liberdades básicas. Por exemplo, pensemos em uma ação afirmativa que fixasse

a pena de morte para quem não contratasse afrodescendentes em um determinado percentual em sua empresa. Esse exemplo pode parecer teratológico, mas ilustra que o meio usado nessa AF não é compatível com a teoria da justiça como equidade (que dá prioridade absoluta às liberdades fundamentais).

Portanto, para a melhor compreensão das questões em jogo, é importante tentar verificar se há compatibilidade de finalidades e compatibilidades de meios.

Assim, as três finalidades acima indicadas (promoção da igualdade; reparação de injustiças; e promoção da diversidade) serão consideradas ao analisar-se se há

compatibilidade das ações afirmativas com a TJE. Sempre que possível, destacaremos se a análise de compatibilidade é feita em razão das finalidades ou dos meios das AFs.

A propósito, em relação aos meios usados na promoção das AFs, serão considerados neste estudo apenas aqueles indicados na classificação de R. Taylor (2009) e que definem justamente a posição de cada uma das espécies na taxonomia. Quanto ao conceito, não usaremos o de Taylor (pois ele é restritivo demais).

Para o fim desse trabalho, adaptando o conceito dado pelo verbete da enciclopédia de Stanford50, definiremos ações afirmativas como sendo ações públicas ou privadas tendentes a

aumentar a representação de certos grupos em áreas de interesse público onde estejam sub- representados, como educação, emprego e cultura.

Como se vê, esse conceito é amplo o suficiente para abarcar qualquer das finalidades expostas acima. Assim, as AFs podem ter como objetivo aumentar a representação de certos grupos tanto para promover a igualdade material, como para compensar injustiças históricas ou a para promover o valor da diversidade.

Passemos agora à taxonomia de Taylor.

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