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A PRIORIDADE DAS LIBERDADES FUNDAMENTAIS E SEU ASPECTO MATERIAL

Como visto acima, o primeiro princípio de justiça é aquele que garante um sistema amplo de proteção das liberdades fundamentais. O segundo princípio trata de acesso a posições sociais e da garantia de benefícios à parte inferior do estrato social.

Na articulação desses dois princípios, Rawls coloca o primeiro em posição de

prioridade sobre segundo, da seguinte forma: as liberdades fundamentais do primeiro

princípio só podem ser restringidas por força de conflito entre elas (entre as liberdades fundamentais), mas nunca podem ser restringidas para aplicar o segundo princípio, muito menos “por razões de bem-estar geral ou de valores perfeccionistas” (RAWLS, 2000, p. 349).

Ainda, conforme Rawls (2008, p. 668), as partes na posição original escolheriam a prioridade do primeiro princípio porque não trocariam uma liberdade fundamental menor por

benefícios econômicos - embora ressalve que, em uma sociedade não bem-ordenada41, em que não há implementação plena das liberdades básicas, se admitiria a supressão temporária de algumas dessas liberdades. Ou seja, apenas quando as condições sociais não permitem a implementação das liberdades básicas, é que elas podem sofrer restrição – e, mesmo assim, desde que seja para “aprimorar a qualidade da civilização de forma que, com o tempo, todos possam desfrutar dessa liberdade” (RAWLS, 2008, p. 668). Como todas as questões relativas a uma sociedade não bem-ordenada, em condições sociais desfavoráveis, esse caso também deve ser apreciado pela teoria não-ideal42 (trataremos da teoria não-ideal no segundo capítulo).

Os fundamentos dessa escolha hipotética da primazia das liberdades são expostos na

Teoria da Justiça (§ 82) e retomados em O Liberalismo Político (Conferência VIII). Embora

tais fundamentos sejam complexos e múltiplos, a linha central de argumentação é a seguinte: Rawls considera a distribuição igualitária de liberdades fundamentais uma das bases sociais do autorrespeito, ou seja, é pela igualdade de direitos básicos (e não pelo poder econômico) que os indivíduos gozam de autoconfiança e podem executar exitosamente seus projetos e interesses pessoais (RAWLS, 2008, p. 672).

Em suma, como as partes sabem que a renda e a riqueza sempre serão oscilantes em uma sociedade (mesmo com um ponto de partida justo), elas não escolheriam renda e riqueza como critérios de status social; elas escolheriam, isso sim, a igualdade de liberdades fundamentais, algo que é factível e sempre garantirá que todos possuirão o mesmo grau de respeito e consideração social – independentemente de seu patrimônio ou renda. Por isso, na escolha dos princípios básicos, essas partes exigirão que as liberdades fundamentais nunca sejam sacrificadas em prol de uma maior ou menor renda e riqueza. Daí porque estabeleceriam a primazia do primeiro princípio.

Assim, respondendo à pergunta feita no encerramento do item anterior, a ordem de prioridade entre os dois princípios de justiça impede, no âmbito da teoria ideal43, que se adote

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Como se verá no segundo capítulo, a sociedade não-bem ordenada é definida por oposição à sociedade bem- ordenada. Esta última é uma “sociedade na qual todos aceitam e sabem que os outros aceitam os mesmos princípios de justiça, e as instituições sociais básicas atendem e se sabe que atendem a esses princípios” (RAWLS, 2008, p. 560) e na qual estão satisfeitas necessidades materiais básicas (RAWLS, 2008, p. 670).

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Como se retomará no segundo capítulo, a teoria ideal elabora os princípios que caracterizam uma sociedade bem-ordenada; e a teoria não-ideal elabora os princípios para uma sociedade em condições mais “desafortunadas” (RAWLS, 2008, p. 304).

43 No âmbito da teoria não-ideal, como se verá no segundo capítulo, não vige a prioridade entre os princípios de

medida que melhore a situação da camada inferior da sociedade ao custo do sacrifício de liberdades fundamentais (seja de que camada for) protegidas pelo primeiro princípio.

Note-se, porém, que a prioridade mencionada não impede, de modo algum, que seja regulamentado o exercício das liberdades fundamentais. A regulamentação das liberdades fundamentais é permitida – e isso ocorre sempre que seu exercício é disciplinado por normas que não suprimem sua esfera central de aplicação, ou seu núcleo essencial. Por exemplo: estabelecer regras para organizar o direito à livre manifestação do pensamento é permitido (fixar horários, locais etc.), desde que essas regras não restrinjam o conteúdo da expressão. Isto é, nem todos podem falar ao mesmo tempo e em qualquer local - como é intuitivo. Logo, é necessário organizar o uso da palavra. Todavia, não podem ser admitidas quaisquer regras que proíbam manifestação sobre algum tipo de conteúdo (censura prévia), pois poder falar sobre qualquer assunto é o núcleo essencial ou “esfera central de aplicação” do direito à livre manifestação de pensamento (RAWLS, 2000, p. 349-350).

Por fim, há de se destacar um aspecto relevante da teoria da justiça, exposto na Conferência VIII do Liberalismo Político. Trata-se da distinção entre as liberdades fundamentais (formalmente concebidas) e o valor dessas liberdades fundamentais (seu aspecto material, equivalente à efetiva possibilidade de fruição). Para Rawls, uma coisa são os direitos e deveres decorrentes das liberdades fundamentais; outra coisa é a possibilidade material de os indivíduos exercerem tais direitos. Por exemplo, mesmo na miséria absoluta poderia se dizer que existe o direito (formal) à vida, à liberdade, à livre manifestação do pensamento. Todavia, o valor desses direitos é praticamente nulo em tal condição, pois são mínimas as condições de exercê-los na miséria absoluta.

Essa diferenciação permite compreender que as liberdades fundamentais garantidas pelo primeiro princípio (liberdade de expressão, de religião etc.) são iguais e formais44, mas o

valor delas deve ser efetivado pelo princípio da diferença, o qual se encarrega de permitir que

os menos favorecidos tenham bens primários (que aumentam o valor das liberdades) em quantia maior que teriam em qualquer outro arranjo distributivo.

Esse, com efeito, é um dos objetivos primordiais da teoria da justiça: equilibrando liberdade e igualdade, criar uma estrutura social justa, cujas desigualdades inevitáveis e

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Duas observações. Lembramos que estamos falando de uma sociedade bem-ordenada. Portanto, mesmo sendo meramente formais as liberdades, estão supridas as necessidades básicas e interesses vitais de todos (VITA, 2007, p. 206). Em segundo lugar, exceção deve ser feita aos direitos políticos protegidos pelo primeiro princípio, pois, como já mencionamos, Rawls incluiu o “valor equitativo dos direitos políticos” na redação do primeiro princípio. Logo, só esses direitos políticos devem ser garantidos materialmente pelo primeiro princípio.

previsíveis de renda, riqueza e poder maximizem os bens primários disponíveis ao menos favorecidos, de modo a permitir que as liberdades fundamentais garantidas pelo primeiro princípio sejam adequadamente fruídas por todos (RAWLS, 2000, p. 382).

Apesar desse objetivo nobre da TJE, e dos motivos igualmente nobres das ações afirmativas, é no capítulo que segue que avaliaremos se estas podem derivar daquela, e se há incompatibilidade entre as duas.

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