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A delinquência juvenil como tema interdisciplinar e as vantagens e desvantagens de

A delinquência juvenil interessa a um leque de disciplinas. Para citar algumas que possam vir mais imediatamente à lembrança, pode-se recordar do próprio Direito e da Saúde Mental, bem como da Sociologia, Psicologia, Serviço Social, Medicina, Criminologia, dentre outras.

Já não se pode considerar satisfatório abordar a delinquência juvenil sem uma linha de pesquisa que aborde o adolescente ofensor e o seu comportamento de forma interdisciplinar e integral. Embora não se descarte a relevância de pontos de vista mais específicos e especializados, todos esses se tornam acessórios quando se admite a realidade patente: que a delinquência juvenil é um fenômeno múltiplo, um composto de circunstâncias, condições socioambientais e características biopsicossociais que funcionam como um ecossistema. Não basta, não obstante seja importante, listar fatores de risco e fatores de proteção. Aliás, a descoberta e o registro desses dois tipos de fatores é uma prática de pesquisa que guarda, em si mesma, a vontade de prosseguir em direção a novos patamares, mormente os de caráter interventivo.

Esta tese inaugura um trabalho estritamente necessário no campo da delinquência juvenil, qual seja o de abrir o Direito à perspectiva do adolescente ofensor como ser integral. E a Saúde Mental é, de longe, a área mais completa e instrumental para que se possa, de fato, ver o jovem.

Em decorrência da experiência acadêmica anterior, constatei que a Enfermagem Psiquiátrica seria o ponto mais estratégico possível para tratar da delinquência juvenil de maneira integral. A Enfermagem baseada na abordagem das necessidades humanas tornou-se o nosso referencial teórico fundamental, de onde irradiam todas as demais linhas de pensamento constantes desta tese. Enquanto o Direito estuda e regula normas jurídicas, que tradicionalmente se dividem entre princípios que externam valores e regras que definem condutas e sanções, a Saúde nos dá a perspectiva da homeostase. De modo mais específico, o Direito da Criança e do Adolescente baseado no princípio da proteção integral provê as normas nesta área e a Enfermagem Psiquiátrica baseada nas necessidades humanas explicita a homeostase no campo da saúde mental.

Referimo-nos mais especificamente às necessidades psicossociais, que abrangem identidade, boa saúde mental e valores e crenças (ELLIS; NOWLIS, 1985).

O atendimento a necessidades humanas compartilhadas deve independer da condição legal do indivíduo sujeito a esse provimento. Não importa a gravidade, nem mesmo a hediondez, de sua conduta, ao menos o ordenamento jurídico brasileiro não aceita nenhuma hipótese de reação estatal consubstanciada na privação em certas necessidades, desdobradas em satisfações como a nutrição e a higiene, o ambiente de respeito e dignidade e até mesmo as relações amorosas íntimas. Sem embargo, seria insuficiente prover ao adolescente ofensor uma atenção em saúde mental desprovida da apreciação das necessidades que ele entende suprir por meio de seus compromissos grupais. Igualmente, sugere-se mudar o olhar primário sobre a conduta juvenil delinquente, saindo da visão infracional (que vê a conduta

ofensora como objeto de interesse do poder opressor estatal, resumido na reação policial/judicial limitadora de direitos), para considerar a visão da saúde mental baseada no reequilíbrio homeostático, a qual poderia servir para, ao menos, dois propósitos de compreensão: oferecer uma autocompreensão ao ofensor, para que entenda o quanto a sua conduta pode ser violenta e danosa para si mesmo e para sua família e comunidade, provendo-lhe a consciência de que o Estado reconhece a sua existência e liberdade, de modo que possa perceber que tem escolhas a fazer em prol de sua saúde; e, também, construir uma compreensão oficial profunda sobre a composição da sociedade em seus diversos aspectos – atividade esta que deveria envolver conhecimentos (e habilidades) de inteligência e ser realizada com autonomia política, requisitos que demonstram o quanto pode ser difícil, e provavelmente frustrante, a abordagem do assunto (D’ANDREA; VENTURA; LOBO JÚNIOR, 2014, p.139).

O que liga as duas áreas? Qual seria, portanto, o elo entre o Direito da Criança e do Adolescente e a Enfermagem Psiquiátrica? Observando a realidade, enxergo passos que precisam ser dados. A composição de normas avançadas e a perspectiva mais humana da saúde não foram capazes de resolver problemas automaticamente. Se assim o fosse, não teríamos este assunto como objeto relevante de pesquisa. A pista que nos permite entender a ligação entre as duas áreas é a de que, frente à disparidade entre teoria e prática, e considerando os princípios da bioética, a interligação entre as buscas de interesse específico de cada uma das áreas se concretiza sobre um alicerce irrevogável: a dignidade da pessoa humana. Este é o maior princípio vigente no mundo hoje e é provável que nenhum outro princípio de direitos humanos possa ser encontrado que o supere. Ou seja, estamos diante de um meio surpreendentemente rico de abordar a delinquência juvenil de maneira a dar um cunho mais humano a qualquer consideração sobre ela.

Não se pode afirmar que o Direito e a Saúde Mental, cada qual isoladamente, deixem de considerar a dignidade da pessoa humana nos seus preceitos. Aliás, se assim fosse, estar- se-ia violando a Constituição Federal. Mas, cada uma dessas áreas em específico apresenta lacunas que tornam ineficaz a aplicação prática da função humanista da abordagem da delinquência juvenil. E esse problema se torna ainda mais grave devido ao costume de se praticar uma injustificável anulação mútua entre as áreas - é a prática da “alçada”.

Vantagens de se estudar a delinquência juvenil pelo prisma interdisciplinar: a questão da dignidade humana; a abordagem de novos sistemas de informação, principalmente olhando para o caráter de interação, integralidade, multiprofissionalidadade, intersetorialidade etc.; criar melhores estratégias de prevenção; buscar maior efetividade nas questões relativas à teleologia jurídica.

Pontos negativos: o risco de medicalização; o tempo de maturação de ideias e intervenções, frente ao imediatismo típico brasileiro; os preconceitos nas áreas de atuação, umas em relação às outras; a diluição do princípio da dignidade da pessoa humana quando confrontado com as possibilidades de recursos humanos, técnicos, físicos e financeiros na esfera pública. Na verdade, não se tratam propriamente de pontos negativos, mas de verdadeiras “desculpas” resultantes do temor em relação à inovação, que provém provavelmente da falta de cultivo da colaboração. A zona de conforto é um obstáculo enorme, muitas vezes chamado, por pesquisadores, de “falta de vontade política”. Essa falta de vontade política é, muitas vezes, “justificada” frente à suposta falta de comprovação prévia dos resultados de possíveis novas medidas ou perspectivas. É uma justificativa falsa, pois muito se deixa de fazer em áreas em que a técnica já alcançou patamares de objetividade muito precisos, tais como a engenharia de tráfego, a produção energética sustentável e as tecnologias de baixa poluição. Para dar conta de discutir esses problemas, não apenas nos esforcei por ser o mais profundo e objetivo possível, como também trago mais uma perspectiva inovadora que está começando a se fortalecer ao redor do mundo: a integração direta entre pesquisa científica e políticas públicas, assunto que perceberemos com maior clareza no tópico seguinte, sobre as perspectivas obtidas no estágio doutoral em Portugal.