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3.5. Funcionamento da Justiça Juvenil no Brasil, no âmbito da delinquência juvenil

3.5.3 As tendências da Justiça Juvenil brasileira à luz do Sinase

3.5.3.1 Ato infracional e responsabilidade

A lei do Sinase define três objetivos para as medidas socioeducativas, conforme se observa pelo teor do seu parágrafo 2º e respectivos incisos, do artigo 1º:

[Art. 1º] § 2º Entendem-se por medidas socioeducativas as previstas no art. 112 da Lei 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), as quais têm por objetivos:

I - a responsabilização do adolescente quanto às consequências lesivas do ato infracional, sempre que possível incentivando a sua reparação;

II - a integração social do adolescente e a garantia de seus direitos individuais e sociais, por meio do cumprimento de seu plano individual de atendimento; e

III - a desaprovação da conduta infracional, efetivando as disposições da sentença como parâmetro máximo de privação de liberdade ou restrição de direitos, observados os limites previstos em lei. (BRASIL, 2012)

A partir da entrada em vigor da referida lei, em 2012, fica estabelecido o caráter oficial atual da reação estatal ao ato infracional. Coloca-se, segundo os objetivos transcritos, o adolescente em posição de responsabilidade, carência social e sujeito a castigo ou retribuição pela sua conduta.

Os três objetivos poderiam levar a discussões críticas, se fossem confrontados com a visão até então dominante a respeito dos adolescentes autores de atos infracionais. O que se pretendia, na visão pretérita, era nunca deixar a memória apagar a noção de impropriedade dos sistemas passados no âmbito dos direitos da criança e do adolescente. Tais sistemas sempre foram criticados por causa de dois pontos principais: a estigmatização e o castigo. Ocorre que o advento do princípio da proteção integral foi realmente confundido com uma imaginária proteção absoluta, em que a criança e o adolescente seriam considerados não apenas como sujeitos de todos os direitos possíveis independentemente de estar ou não estar em situação de risco (proteção integral), mas também como indivíduos intocáveis (proteção absoluta que, vale repetir, não existe em nosso ordenamento jurídico).

O sistema de justiça juvenil brasileiro, no aspecto específico de resposta ao ato infracional, ficou parado no tempo e utilizado mormente como instrumento de segurança pública ou, dizendo de uma maneira informal, como meio de “tirar de cena” os jovens pobres que perturbam o equilíbrio da sociedade. Ou seja, a estigmatização e o castigo continuaram mesmo depois de 1990, ano em que foi publicado o ECA.

O Sinase, de certa forma, consolida a estigmatização e o castigo quando coloca como objetivos das medidas socioeducativas a integração social do adolescente e a desaprovação da conduta infracional.

No primeiro caso, somente se pode pensar na integração social de alguém que não esteja integrado socialmente, de forma que a ressocialização é ligada diretamente à prática de ato infracional pelo fio da medida socioeducativa, fazendo crer que o Sinase acaba por marginalizar oficialmente o adolescente ofensor - o que, de fato, sempre levou à prática de se processar adolescentes pela prática de atos infracionais somente quando se observasse a sua desconexão social, observação essa que nunca foi feita formalmente antes do processo.

No segundo caso, o castigo vem sob a forma de desaprovação da conduta infracional. Essa desaprovação não é a noção abstrata de que praticar ato infracional é errado. Sendo colocada como objetivo de medidas socioeducativas, a discussão sobre desaprovação da

conduta deve tomar aspectos concretos e instrumentais, e isso só se consegue com a imposição de sanções, ou seja, a retribuição pelo mal praticado.

O que parece algo novo é o objetivo que é colocado antes dos dois que acabaram de ser comentados: a responsabilização do adolescente quanto às consequências lesivas do ato infracional e a reparação de danos, quando possível. Esse objetivo transformou totalmente a visão legal sobre a delinquência juvenil. Agora, mesmo um indivíduo considerado absolutamente incapaz no âmbito civil por idade (é a situação de quem tem até 16 anos de idade), pode ser responsabilizado por um ato equiparado a crime.

Assim, abstraindo as noções de processo de apuração e de execução relativos a delitos, o que se tem hoje, na prática, é a idade mínima de responsabilidade criminal começando aos 12 anos, no Brasil – embora se chame o ato delituoso de “ato infracional”. Faço essa afirmação porque não entendo ser possível que um ato equiparado a crime (e que somente não é considerado crime em razão da idade do ofensor) possa gerar responsabilidade e desaprovação concreta sem que isso signifique, intrinsecamente, falar-se em “responsabilidade criminal”. O que se tem é um sistema processual específico, quando se trata da criminalidade juvenil.

O tema da responsabilidade reaparece com toda força no capítulo sobre regimes disciplinares, da lei do Sinase. O regime disciplinar é uma previsão legalmente obrigatória nos estabelecimentos de atendimento socioeducativo, com tipificação de infrações e sua graduação em leve, média ou grave, bem como a aplicação de sanções em processo disciplinar.

Não seria necessário fazer essas observações se a lei do Sinase não tivesse incluído a responsabilização como um dos objetivos das medidas socioeducativas. Mas esse foi o caso, o que nos leva a concluir que o Sinase representa uma nova fase do Direito da Criança e do Adolescente: a fase da responsabilidade.

Conforme a lei do Sinase (artigo 8º, “caput”), os planos de atendimento socioeducativo deverão prever ações articuladas entre diversas áreas: educação, saúde, assistência social, cultura, capacitação para o trabalho e esporte. No que tange aos princípios que regem a execução de medidas socioeducativas, encontram-se nos nove incisos do artigo 35 da referida lei.

Listam-se a seguir esses princípios e acrescentam-se comentários a cada um deles: a) Princípio da legalidade: junto a tal princípio, a lei do Sinase complementa com a ideia de que o adolescente não pode receber tratamento mais gravoso do que o conferido ao adulto. Aqui se encontra mais um indício implícito de que estamos entrando na fase da

responsabilidade criminal do adolescente, pois não se poderia comparar o tratamento dado a ele face ao tratamento dado ao adulto sem que se tomasse como base algum denominador comum, e este só pode ser o tipo penal que, dependendo da idade de quem o realiza, pode ter uma categorização legal diferente (ato infracional versus crime) e um processo diferente (processo infracional/medida socioeducativa versus processo criminal/pena);

b) Princípio da excepcionalidade da intervenção judicial e da imposição de medidas: neste princípio, valorizam-se os meios de autocomposição dos conflitos. Deste princípio decorre a ideia de que a prática de ato infracional em regra não deveria gerar uma resposta judicial do estado. Frise-se que a não judicialização do adolescente ofensor foi erigida em princípio legal, pois a intervenção judicial toma agora o caráter de excepcionalidade. No Direito, o que é excepcional somente toma lugar se houver fundamento bastante para tanto. Com isso, o processo infracional deixa de ser uma relação de causa e efeito face ao ato infracional. Daí decorre que a ocorrência policial não deve mais ser considerada situação suficiente para abertura de um processo infracional;

c) Princípio da prioridade das práticas e medidas restaurativas: estas devem, quando possível, atender às necessidades das vítimas. Este princípio exprime de forma contundente a opção da lei do Sinase pelo aspecto da responsabilização do adolescente, colocando como prioridade o prisma restaurativo. Ou seja, por este princípio, no âmbito dos atos infracionais, o mais importante é resguardar o status quo da vítima, ficando o ofensor em segundo plano;

d) Princípio da proporcionalidade em relação à ofensa cometida: aqui se observa a referência indireta à gravidade da conduta e se reforça o argumento de que a lei do Sinase reafirma a postura do castigo ou retribuição, pois a medida aplicada será mais grave quanto mais grave for a ofensa cometida. Assim, pode-se verificar que existe um sistema implícito de graduação de medidas em termos de severidade. Nesse aspecto, só se pode continuar usando o termo “medida socioeducativa” se pensarmos na “ressocialização” enquanto adequação a padrões sociais e “educação” num aspecto coercitivo e sancionatório;

e) Princípio da brevidade da medida em resposta ao ato cometido: por este princípio, prefere-se uma intervenção breve, seja no sentido de celeridade na apresentação de uma resposta, seja no sentido de curta duração de uma medida aplicada;

f) Princípio da individualização: deve-se considerar a idade, as capacidades e as circunstâncias pessoais do adolescente. Aqui, a lei do Sinase apresenta um desenvolvimento da noção etária de “adolescente”. Ao apresentar a individualização e determinar que se considerem a idade, as capacidades e as circunstâncias pessoas do adolescente, admite consequentemente a existência de variações individuais entre os adolescentes;

g) Princípio da mínima intervenção: a intervenção deve estar restrita ao necessário para a realização dos objetivos da medida. Este é um princípio limitativo do Sinase como um todo, reafirmando a delimitação do seu objeto à execução de medidas socioeducativas e, portanto, afastando considerações mais abrangentes sobre a delinquência juvenil, tais como prevenção e intervenções continuadas. Por este princípio, o atendimento socioeducativo acaba se restringindo à velha relação infração-medida, desestimulando um olhar mais abrangente do adolescente em sua integralidade;

h) Princípio da não discriminação do adolescente: a lei destaca especialmente a discriminação em razão de etnia, gênero, nacionalidade, classe social, orientação religiosa, política ou sexual, ou associação ou pertencimento a qualquer minoria ou status;

i) Princípio do fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários no processo socioeducativo: o estabelecimento de tal princípio pode significar o reconhecimento da importância da família e da comunidade nas intervenções relativas ao comportamento ofensor do adolescente.

Esses nove princípios regentes da execução das medidas socioeducativas demonstram, em seu conjunto, uma tendência de proteção da sociedade contra o adolescente ofensor, muito mais do que um caráter de maior acolhimento e compreensão desse adolescente ofensor. O que se coloca a favor do adolescente é a consideração dele enquanto tal e o reconhecimento de que cada adolescente pode ser um adolescente diferente dos demais, sem que, contudo, suas características e orientações individuais possam se usadas em sentido discriminatório. Porém, ao se observarem os princípios em conjunto, nota-se que a proteção do adolescente se dá apenas num nível processual, circunscrito ao caso concreto, ou seja, no contexto restrito da prática de um ato infracional e suas consequências.

Ademais, a proteção da sociedade contra o adolescente ofensor se torna clara quando se percebe certo “esquecimento” dos ofensores menos graves, os quais, por não chegarem a ser sujeitos a medidas socioeducativas, acabam por não estar abrangidos pelo Sinase. Assim, temas como carreira criminosa ou escalação na gravidade das ofensas ficaram de fora do Sinase. Na prática, isso significa que os atos infracionais menos relevantes provavelmente continuarão sendo resolvidos por meio da remissão, sem haver, necessariamente, um sistema obrigatório de intervenção preventiva nesses casos.

Não poderíamos deixar de considerar o Sinase como um sistema de controle social repressivo, nem mesmo dentro do objetivo de integração social e garantia dos direitos individuais e sociais que, como vimos anteriormente, está entre os objetivos das medidas

socioeducativas. Penso assim, porque está claramente escrito na lei do Sinase que esta integração social e esta garantia de direitos se dará pelo cumprimento do plano individual de atendimento socioeducativo ao adolescente. Lembrando que o gatilho do plano individual é o ato infracional que gera a resposta estatal respectiva, pode-se perceber que o adolescente será ressocializado tantas vezes quantas puder reincidir. Desta forma, coloca-se integralmente sob sua responsabilidade o fracasso das ressocializações anteriores que, pelo sistema vigente, nunca poderão ser declaradas falhas. Algo que torna a situação ainda mais complicada é o fato de que as intervenções devem ser breves, de onde se conclui que elas são medidas por tempo, e não por eficácia.