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A democracia deliberativa e a ênfase nos processos discursivos

Assim como a vertente participacionista, para os deliberacionistas, a legitimidade democrática não se resume ao voto, mas à deliberação pública. Então, a democracia deliberativa se refere mais a um formato de participação que propriamente a um modelo ou tipo de democracia. Tal corrente foi influenciada, principalmente, pelos conceitos de esfera pública e de ação comunicativa de Jürgen Habermas. Ao fazer uma análise sobre a esfera pública burguesa, Habermas afirma que

A esfera pública burguesa pode ser entendida inicialmente como a esfera das pessoas privadas reunidas em um público regulamentada pela autoridade, mas diretamente contra a própria autoridade, a fim de discutir com ela as leis gerais da troca na esfera fundamentalmente privada, mas publicamente relevante [...] (HABERMAS, 1984, p. 42).

Isto é, de forma sintética, ele a define como o espaço no qual os sujeitos privados discutem as questões de interesse público. Já a ação comunicativa reside na capacidade dos sujeitos, no âmbito da esfera pública, de interagirem de forma racional na construção de consenso sobre o que se discute. Partindo de concepções subjetivas, os atores, através da discussão, chegariam a entendimentos coletivos.

Chamo ação comunicativa àquela forma de interação social em que os planos de ação dos diversos atores ficam coordenados pelo intercâmbio de atos

comunicativos, fazendo, para isso, uma utilização da linguagem (ou das correspondentes manifestações extraverbais) orientada ao entendimento. À medida em que a comunicação serve ao entendimento (e não só ao exercício das influências recíprocas) pode adotar para as interações o papel de um mecanismo de coordenação da ação e com isso fazer possível a ação comunicativa (HABERMAS, 1997, p. 418).

Para o autor, nas esferas públicas, os sujeitos fariam intervenções baseadas em argumentos para analisar criticamente as propostas debatidas; nesses espaços não deve haver exclusão, ou seja, todos os interessados devem ter o direito igual de participação; devem também estar livres de qualquer tipo de coerção interna ou externa, sujeitos apenas às interferências inerentes ao processo comunicativo, com oportunidades iguais de argumentação. A discussão deve incluir todos os assuntos de interesse geral a fim de se chegar a consensos racionais e, mesmo que haja dissidência, que prevaleça a deliberação da maioria (HABERMAS, 1997).

Todavia, segundo ele, apenas os espaços públicos discursivos não seriam suficientes. Esses ambientes não-institucionais teriam o papel de sistematizar e compor a opinião pública através das práticas discursivas, obedecidos os princípios descritos anteriormente. E, em um segundo momento, os consensos elaborados necessitariam de um sistema político- administrativo no qual eles deveriam ser considerados, como o parlamento, partidos etc., Desse modo, para o autor, a legitimidade democrática de um governo se daria pela interlocução desses dois níveis, ou seja, as decisões tomadas na esfera político-institucional precisam refletir aquilo que foi deliberado nos espaços públicos comunicativos da sociedade civil (HABERMAS, 1997). Para os deliberacionistas, a legitimidade democrática não se daria penas pelo voto, mas pelo processo de discussão e construção da opinião e da vontade coletiva. Com base no entendimento de Bohman (1998), outro teórico da democracia deliberativa, Almeida (2015, p. 122) afirma que

[...] a democracia deliberativa se constrói como uma alternativa teórica à análise da participação, em contra-ponto à teoria democrática centrada no voto. Desse modo, a democracia não é mais percebida como a arena na qual as preferências e interesses competem por meio de mecanismos justos de agregação, principalmente as eleições. Os deliberacionistas sugerem valorizar o processo comunicativo de opinião e formação da vontade que precede o voto, entendendo que o voto em si não resolve os problemas de preferências diversas e não concede a todos direitos iguais de fala em sociedades complexas.

Ainda assim, observa-se que também não se trata de um modelo de democracia que poderia substituir a democracia representativa, mas uma forma de aprimorá-la. A deliberação, para os teóricos dessa corrente, seria exatamente a capacidade que os sujeitos teriam de elaborar

consensos a respeito de questões públicas. Nessa mesma linha, Coeh (2009) também dá ênfase aos mecanismos discursivos. Segundo o autor, é através do argumento e do raciocínio público que os sujeitos devem tomar decisões sobre questões que lhes dizem respeito. Para ele, além do procedimento eleitoral, a democracia deve ser uma atividade coletiva de poder político (SANTOS; AVRITZER, 2003).

Porém, Coeh (2009) complementa o raciocínio habermasiano ao demonstrar preocupação com a efetividade e a operacionalização com a democracia deliberativa. Como já anunciado, para Habermas, a democracia deliberativa ocorreria nos espaço públicos não- institucionais e os consensos formulados pelo debate público subsidiariam as decisões tomadas no âmbito institucional. O ponto levantado pelo autor é de que modo isso ocorreria. Segundo ele, para que de fato as decisões tomadas pelos sujeito fossem materializadas, seria necessária a existência de espaços institucionais no quais elas pudessem ser efetivadas e não apenas ouvidas.

Assim, estabelece que, para que de fato a democracia se efetive, é preciso que exista um modelo de Poliarquia Diretamente Deliberativa (COEH; SABEL, 1997), baseada em três elementos essenciais: o primeiro seria a inclusão na agenda pública de temas que geralmente não são considerados; segundo: as propostas devem ser avaliadas com base em valores essenciais da esfera política; e, por fim, tais propostas precisam de espaços institucionalizados para participação e deliberação pública dos sujeitos. A ideia é que isso ocorra nos espaços tradicionais do sistema político, como o Legislativo, por exemplo, para que decisões de interesse público sejam tomadas conjuntamente com os cidadãos, prescindidas de discussões argumentativas nesses espaços.

Então, de modo geral, a ideia central dos deliberacionistas é a de que decisões políticas de interesse público devam ser debatidas coletivamente, para que sejam consensuadas e deliberadas a partir de argumentos racionais de uma diversidade de sujeitos na esfera pública. Ao argumentar a necessidade de incluir as pessoas no debate sobre questões de interesse público, portanto, de seu interesse, a corrente deliberacionista se distancia das concepções elitistas da democracia, uma vez que pontua a importância da participação dos sujeitos para além do voto. E por essa ideia, diverge da crença na apatia das massas, defendida pela corrente elitista.

Mesmo ampliando algumas perspectivas, a democracia deliberativa, assim como a participacionista possui limitações. Ao analisar seus pressupostos, observa-se que a deliberação pública trata-se mais de um princípio orientador da democracia que de uma sistema propriamente em substituição à democracia liberal-representativa. E aqui entra o problema da

escala dos Estados. Portanto, seria também complementar aos regimes já existentes. Seria uma espécie de modo abstrato de organização, um formato, dentro do modelo participativo e não de um instrumento ou tipo em si.

Ademais, a impressão que se tem quando se analisa as teorias deliberacionistas é a de que elas formulam um modelo ideal de construção do debate público: que seria perfeito, se não fosse um único empecilho: a realidade. Como já apontado nos limites apresentados da democracia participativa, os espaços coletivos de debate e discussão tendem a reproduzir as assimetrias sociais. Existem capacidades argumentativas que são plenamente desenvolvidas para alguns e para outros não. E isso não depende do grau de instrução ou da força de vontade das pessoas, mas de oportunidades de participação e vivência política que cada um tem. Como argumentou Pateman (1992), a participação por si só tem um caráter educativo. Então quem já tem essa possibilidade garantida adquire, pela experiência, cada vez mais poder de voz e argumentação.

Desse modo, tais espaços podem ser dominados por aqueles com um maior acesso a eles, levando a uma cooptação desses ambientes. Grupos subalternos, ao longo de sua vida, são privados desses espaço, por suas condições materiais de existência e sobrevivência – possuem menos tempo e recurso (MIGUEL, 2005). Porém, isso não significa que eles não consigam acessar. Mas terão sempre um caminho mais difícil para alcançar esses espaços. E, mesmo chegando, certamente o debate não envolveria todos os sujeitos interessados, como pregam os deliberacionistas.

O outro elemento frágil da teoria deliberativa é a ênfase no processo comunicativo. Como já dito anteriormente, espaços de fala e debate também refletem as desigualdades da sociedade. A linguagem em si pode ser um mecanismo de inclusão mas também de exclusão, uma vez que existem discursos que são validados socialmente e outros desqualificados, considerados menos relevantes. Então, é necessário um esforço maior – não aqui considerado de forma meritocrática, enquanto vontade própria, mas de criação de condições favoráveis – para fazer com que estes últimos ganhem legitimidade e sejam inseridos no debate e na agenda pública. O resultado disso é que “as diferentes posições sociais dos interlocutores contaminam a situação de fala que, portanto, é marcada por assimetrias” (MIGUEL, 2005, p. 15). Essas diferentes posições no espaço público levariam, nos termos de Oliveira (2000), à “anulação da fala” de sujeitos políticos e a construção de um “consenso imposto”, neutralizando os diferentes conflitos de interesses e os projetos políticos em disputa na arena decisória.

Além da concepção deliberativa, participativa e liberal-pluralista13, existe também uma outra abordagem do entendimento da democracia, que se distingue bastantes de todas as mostradas anteriormente. Não é uma noção baseada em procedimento eleitoral ou regime, mas enquanto prática política.

1.5 Para além do regime e das tipologias: democracia enquanto substância e prática