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Democracia participativa: alternativa ou complemento ao sistema representativo?

O debate sobre a democracia participativa começou a emergir entre as décadas de 1960 e 1970, caracterizado pela presença de novos atores sociais na cena pública, quando também a corrente hegemônica perde força. Impulsionada principalmente pelos estudos de Crawford Macpherson e Carole Pateman, a abordagem participacionista se ancora na participação social

e concebe a democracia para além do sistema político eleitoral. Se na concepção elitista a democracia se restringe a um grupo privilegiado, numa direção oposta, a participação promoveria a partilha de poder por todos os membros de uma comunidade.

Pateman (1992) defende que apenas as instituições representativas não são suficientes para a democracia. Ao fazer uma crítica à concepção hegemônica de democracia, sobretudo à obra de Schumpeter, em contraponto à ideia de apatia e ignorância popular, ela destaca que a participação contribui para o processo educativo dos sujeitos, tanto em seu aspecto psicológico, quanto na apreensão de habilidades e procedimentos democráticos. Para ela, então,

Em consequência, para que exista uma forma de governo democrático, é necessária a existência de uma sociedade participativa, isto é, uma sociedade onde todos os sistemas políticos tenham sido democratizados e onde a socialização por meio da participação pode ocorrer em todas as áreas (PATEMAN, 1992, p. 61).

Defende a autora que a participação não deve ser restrita apenas às questões macroestruturais, centrada no Estado, mas também a todos os níveis da vida cotidiana, principalmente no trabalho. Já Macpherson (1978) toca numa questão fundamental: de como se chegar a uma democracia participativa. E, para ele, um dos caminhos principais passariam pela redução das desigualdades sociais e econômicas, já que os sujeitos são afetados de formas diferentes por elas, determinando assim a oportunidade ou não de participação na vida política. Corroborando com Pateman, o autor também aposta na capacidade educativa da participação.

Além disso, o autor não descarta a democracia representativa, pelo contrário, ele formula um modelo de democracia que teria a participação na base, em espaços menores, como na fábrica, no bairro etc., e a representativa no topo, na qual os governantes e os partidos deveriam espelhar as decisões tomadas na base, o que, segundo ele, contribuiria para aprimorar a representação (MACPHERSON, 1978). Então, para ele, a participação social serviria para melhorar o processo representativo.

Segundo Santos e Avritzer (2003), a democracia participativa favoreceria a inclusão de segmentos socialmente vulneráveis, menos favorecidos e de minorias étnicas não contempladas na democracia representativa. Portanto, não se trata de anular a democracia representativa, mas de aprofundá-la. Segundo os autores, os dois tipos de democracia podem coexistir e se complementar: a democracia representativa em nível nacional pode se somar à democracia participativa em níveis locais, trazendo novos desenhos institucionais. Nesse sentido, argumentam os atores, seria uma forma de complementação.

A segunda forma de combinação, a que chamamos complementariedade, implica uma articulação mais profunda entre democracia representativa e democracia participativa. Pressupõe o reconhecimento pelo governo de que o

procedimentalismo participativo, as formas públicas de monitoramento dos governos e os processos de deliberação pública podem substituir parte do processo de representação e deliberação tais como concebidos no modelo hegemônico de democracia. Ao contrário do que pretende este modelo, o objetivo é associar, ao processo de fortalecimento de democracia local, formas de renovação cultural associadas a uma nova institucionalidade política que recoloca na pauta democrática as questões da pluralidade cultural e da necessidade da inclusão social (SANTOS; AVRITZER, 2003, p. 75-76).

Os autores tratam da democracia participativa como complemento em nível local, no entanto, ela também pode coexistir com a democracia representativa em âmbito nacional, através de mecanismos, institucionais ou não, para tal. Um bom exemplo disso, no Brasil, são os conselhos gestores de políticas públicas10, que existem não apenas nas esferas municipais e estaduais, mas também nacional. Mesmo com todas as limitações e adversidades com as quais eles convivem, são espaços participativos de cogestão dessas políticas, que, embora não as determinem da forma desejada, tensionam o debate, mobilizam atores sociais e contribuem para seu aprimoramento. Trata-se de um formato de participação negociada com o Estado (NEVES, 2016).

Apresentadas algumas das principais premissas da teoria participativa, convém agora pontuar alguns aspectos. Em relação à concepção hegemônica, que privilegia a representação por grupos minoritários, há de se reconhecer que o modelo de democracia participativa possui diferenças substanciais. Primeiro porque acredita no potencial dos sujeitos em participar da vida e das questões públicas, argumentando que o próprio processo participativo é um instrumento de aprendizagem que ratifica a máxima de que “se aprende fazer fazendo”, contrariando a crença na imutabilidade da ignorância e da apatia das massas. Segundo porque não resume a participação dos indivíduos apenas ao processo eleitoral, como meros eleitores, ou seja, não basta votar, é preciso participar das decisões que dizem respeito à coletividade.

Além disso, a democracia participativa não concebe a democracia apenas enquanto procedimento, mas enquanto espaço de construção coletiva. Outrossim, contradiz a crença imutável na impossibilidade de participação em democracias de larga escala, mas também não descarta a complexidade e tamanho dos Estados modernos. Porém, apresenta possibilidades de coexistência de ambos os processos: representativo e participativo, como uma forma de aprofundar o regime democrático.

Em que pese os ganhos da democracia participativa em relação à concepção liberal- pluralista, é preciso fazer um parêntese nessa questão, para que não se conceba a democracia

participativa como algo perfeito, que resolveria todos os déficits da democracia representativa. Primeiro porque, como defendem os próprios participacionistas, não se trata de abolir a democracia representativa. Por mais que ela tenha muitas limitações, a questão da escala é um fato com o qual os Estados têm que lidar, não à toa o modelo representativo se expandiu e se consolidou na maior parte dos países nos séculos XIX e XX. Por outro lado, é incontestável que a democracia participativa permite uma ampliação dos espaços de fala dos atores sociais. Todavia, possibilitar a participação social não implica necessariamente que todas as demandas apresentadas sejam projetos coletivos que objetivam melhorar as condições materiais dos grupos subalternos. E isso tem ver com a natureza de quem participa, ou seja, com a heterogeneidade da sociedade civil.

Da mesma forma que o Estado, a sociedade também não é homogênea e, do mesmo modo que democracia, sociedade civil também é um termo que pode ter diferentes conotações. A principal característica dela é ser heterogênea, espaço das contradições e do conflito, assim como o Estado. Por isso, acredita-se que o conceito gramsciano dá conta dessa heterogeneidade e complexidade. Gramsci (1982) pontua importantes elementos das concepções de sociedade civil e de Estado. Para ele, ambos não devem ser vistos como entes isolados, interdependentes e antagônicos. Destaca-se que os próprios teóricos participacionistas também faziam essa crítica da separação total entre Estado e sociedade civil, uma vez que estes estão entrelaçados a tal ponto que é impossível traçar uma linha rigorosamente divisória.

Para o autor, a sociedade civil é o conjunto das organizações responsáveis pela elaboração e difusão das ideologias, tais como, o sistema escolar, as igrejas, os partidos políticos, os sindicatos, as organizações profissionais, os meios de comunicação de massa, dentre outros, que são, tais instituições, os aparelhos privados de hegemonia (GRAMSCI, 1982). Ao teorizar sobre a complexidade dos Estados, o autor localiza a sociedade civil no campo da superestrutura, produzida e reproduzida pela infraestrutura e se relacionando com esta de forma dialética. “Ou seja, a sociedade civil expressa a articulação dos interesses das classes pela inserção econômica, mas também pelas complexas mediações ideopolíticas e sócio institucionais” (DURIGUETTO, 2007, p. 54-55). Nesse sentido,

A trama da sociedade civil é formada por múltiplas organizações sociais de caráter cultural, educativo e religioso, mas também político e, inclusive, econômico. Por seu intermédio, difundem-se a ideologia, os interesses e os valores da classe que domina o Estado, e se articulam o consenso e a direção moral e intelectual do conjunto social. Nela se forma a vontade coletiva, se articula a estrutura material da cultura e se organiza o consentimento e a adesão das classes dominadas (ACANDA, 2006, p. 175).

Desse modo, sociedade civil é entendida como o lugar da luta política, da “guerra de posições”. Portanto, como também esfera de produção da cultura. Então, vê-se que a sociedade civil é o terreno da heterogeneidade. Diferentemente de algumas análises correntes, a sociedade civil não é homogênea, tampouco é o campo das virtudes. Essa visão distorcida da sociedade civil dá-se pela dicotomia que se faz entre sociedade civil e Estado, considerando aquela benévola, que busca pelo bem comum e o Estado nefasto, pernicioso.

Tal noção, baseada na oposição bem versus mal, opera como um instrumento ideológico de despolitização de tais conceitos. A sociedade civil engloba uma gama de atores e práticas políticas heterogêneas, antagônicas, na disputa ideológica pela hegemonia. Da mesma forma que nela se encontram os movimentos sociais que lutam por direitos de cidadania, há também grupos corporativos que defendem interesses e privilégios de uma minoria. Desse modo, entende-se a sociedade civil como:

[...] composta por uma grande heterogeneidade de atores civis (incluindo atores conservadores), com formatos institucionais diversos (sindicatos, associações, redes, coalizões, mesas, fóruns), e uma grande pluralidade de práticas e projetos políticos, alguns dos quais podem ser, inclusive não-civis ou pouco democratizantes. Com efeito, “...a sociedade civil não é um ator coletivo e homogêneo (...) é um conjunto heterogêneo de múltiplos atores sociais, com frequência opostos entre si, que atuam em diferentes espaços públicos e que, via de regra, têm seus próprios canais de articulação com os sistemas político e econômico. [...] (DAGNINO; OLVERA; PANFICHI, 2006, p. 22-23).

É essa heterogeneidade e esse antagonismo que permeiam a sociedade civil. Por essa razão, não se pode achar que ela será apenas o terreno da luta por justiça social. Será também espaço para defesa de privilégios e manutenção do status quo. Por isso, é preciso ter cautela ao se analisar a democracia participativa, para não cometer o equívoco de conceber os espaços coletivos isentos de práticas políticas antidemocráticas. Neves (2008) chama atenção para esse aspecto ao afirmar que o incentivo à participação pode alargar as fronteiras da construção coletiva na busca por cidadania. Porém, pode também atrair práticas com motivações liberais de interesse privado de captura do espaço público. Para a autora,

Reconhecer tal fato é extremamente importante para compreender como dois projetos políticos absolutamente antagônicos disputam e direcionam essa “participação da sociedade civil”. Neste sentido, como já foi dito, devemos ter sempre o cuidado analítico ao estudar a política e a participação popular na gestão pública, no processo de co-gestão com o Estado, para não cairmos nas armadilhas do neoliberalismo no que se refere ao incentivo à essa participação (NEVES, 2008, p. 16-17).

O neoliberalismo, segundo a autora, se aproveita do espaço propiciado pela democracia participativa para imprimir sua lógica de mercado, ou seja, abocanhar para si responsabilidades

estatais, que passam a ser desenhadas não mais pelo fundamento do direito, mas pela lógica do consumo ou da filantropia11. Nesse sentido, Neves (2007) também afirma que o projeto neoliberal é nefasto para a ampliação do espaço público, já que, além de instrumentalizar as ações coletivas, desmobiliza a sociedade. Isto posto, para Dagnino, Olvera e Panfichi (2006), essa compreensão dicotômica de sociedade civil (virtuosa) e Estado (nefasto) não acontece à toa, é fruto de uma ressignificação do neoliberalismo, uma vez que se o Estado é um “mal necessário” deve-se reduzi-lo ao mínimo possível:

A sociedade civil aparecia, como já observamos, como um pólo de virtude diante da maldade intrínseca do Estado. Essa imagem dicotômica implicava uma compreensão homogeneizante tanto da sociedade civil como do Estado. Reproduzia-se, de uma forma acrítica, a velha oposição liberal entre sociedade e Estado (DAGNINO; OLVERA; PANFICHI, 2006, p. 22).

Então, se a sociedade civil não é o “pólo das virtudes”, por que a participação social seria um modelo complementar que contribuiria com a democracia representativa? A resposta é simples e já foi apresentada anteriormente. Embora existam atores que defendam determinados privilégios coorporativos, existe também uma gama de movimentos sociais, atores sociais e políticos que ocupam o espaço público propiciado pela participação para reivindicar direitos e justiça social. E é nesse terreno que se faz a disputa pelo reconhecimento político de necessidades sociais. Embora reconheça-se que nessa disputa há segmentos privilegiados que conseguem dominar a agenda, há momentos em que os grupos subalternos também conseguem apresentar suas demandas e legitimá-las como questões de interesse público, ou seja, mesmo que os espaços de construção coletiva favorecidos pela democracia participativa não estejam imunes a práticas antidemocráticas, personalistas e clientelistas, eles concorrem com práticas políticas contrárias a essa lógica12. Portanto, não se pode cair na armadilha de considerar a democracia participativa como um modelo perfeito de democracia que poderia substituir o sistema representativo.

É fato que os espaços de participação sempre enfrentarão a heterogeneidade da sociedade civil e a dominação classista do Estado, assim como qualquer outra forma de democracia. “No entanto, esse mecanismo não impede o processo de construção democrática” (NEVES, 2008, p. 199). Assim, o modelo participativo avança muito em relação às premissas da democracia liberal-pluralista. Por mais que os ambientes coletivos tendam a reproduzir as desigualdades e assimetrias sociais, eles são fundamentais, segundo Miguel (2017), por quatro

11 No próximo capítulo esses aspecto será melhor explanado na análise do contexto pós-Constituição no Brasil, de ampliação da participação do Terceiro Setor.

razões: a primeira é que abrem possibilidade de escuta das demandas dos grupos subalternos, uma vez que, presentes ou não, os grupos dominantes já terão seus interesses considerados pelo Estado; segundo: a participação favorece o desenvolvimento de habilidades necessárias à prática da vida política, pois normalmente os menos favorecidos são privados desses espaços; terceiro: é um ambiente no qual os indivíduos em situação de desvantagem terão a possibilidade de legitimar suas demandas, já que o sistema de dominação as silencia e as naturaliza; e, por último, pode aproximar os grupos subalternos dos espaços de poder, já que eles se encontram mais distantes ainda da política.

Por isso a relevância dos espaços de participação como mecanismos de aprimoramento da democracia representativa, que, assim como esta última, também possui suas imperfeições, razão pela qual defende-se o caráter complementar de ambas e não a exclusão de uma forma de democracia em detrimento de outra. Uma vertente da teoria democrática semelhante à corrente participacionista, que pontua elementos para além dos mecanismos formais da democracia liberal-representativa, reivindicando também a participação social, é a democracia deliberativa, analisada a seguir.