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A DEMOCRACIA LIBERAL

No documento Democracia no cotidiano escolar (páginas 75-81)

O Estado liberal, ou estado burguês, surge com a emergência da burguesia como uma força importante contrária à ordem e às práticas feudais. Portanto, foi novamente a luta entre as classes que impulsionou as transformações políticas na sociedade. Ainda que não seja possível determinar com alguma precisão a origem do capitalismo, como aponta Martin Carnoy, não é difícil estabelecer quais foram os elementos que conduziram ao seu estabelecimento. Segundo o autor, a ordem social fundada na lei divina sofreu profundas transformações durante os séculos XVI e XVII, fazendo declinar o domínio econômico aristocrático e, junto com ele, o poder político da Igreja (CARNOY, 2006, p. 21). Além disso, as mudanças nas formas de produção e a consequente acumulação de riquezas nas mãos da burguesia propiciaram o surgimento de novas formas de governo, que atendessem aos interesses da nova classe emergente.

Diante disso, a hierarquia social passou por reformulações sob uma nova concepção de homem e de sua relação com o Estado, como informa Carnoy:

É nesse contexto, portanto, que se desenvolveu a teoria do Estado liberal, baseada nos direitos individuais e na ação do Estado de acordo com o “bem comum” a fim de controlar as paixões dos homens, possibilitando que seus interesses se sobreponham a essas paixões (CARNOY, 2006, p. 23)

Nesse momento, em que o papel estatal defronta-se com as necessidades da nova classe expropriadora, entra em cena a defesa das garantias individuais, ou seja, surge a questão dos direitos humanos em oposição aos direitos de nascimento. O poder econômico representa o novo paradigma em torno do qual a sociedade passa a ser organizada e ele sustenta-se no domínio sob o princípio do “bem comum” (CARNOY, 2006, p. 23).

É fundamental, neste ponto, estabelecer os limites do que sejam os direitos humanos neste período. Eles estavam em consonância com as ideias liberais, significando, portanto, os direitos mais gerais dos indivíduos, as garantias contidas no pacto social: a liberdade, a vida e a propriedade privada.

Entre os teóricos que deram fundamentação a este novo Estado encontram- se os filósofos da tradição contratualista John Locke e Jean-Jacques Rousseau. Na sua obra Segundo tratado sobre o governo, Locke sistematiza as ideias segundo as

quais os homens se organizam e instituem o poder em comum acordo. Sua filosofia está claramente em oposição à ordem religiosa estabelecida no Antigo Regime. Segundo ele, quando o homem vive seguindo as mesmas regras dos animais, prevalece o mais forte, perpetuando a desordem e a discórdia. Esta era a condição imposta pelo absolutismo, que governava pelos critérios naturais legitimados pela lei divina (LOCKE, 2006, p. 21-22).

Em contrapartida, o governo baseado em critérios racionais seria aquele em que o homem abre mão da liberdade encontrada no estado de natureza e associa- se em benefício mútuo. Na passagem a seguir, Locke explica porque é necessário deixar o estado de natureza: “Quando os homens convivem segundo a razão, sem uma autoridade superior comum no mundo que possa julgar entre eles, verifica-se propriamente o estado de natureza” (LOCKE, 2006, p. 32). Esta autoridade superior é mais importante ainda quando o estado de natureza chega a ser ameaçado e é justamente essa permanente incerteza, esse sentimento de desamparo que força o homem a deixar este estado. Caso contrário, pode ser vítima de ameaças ou da força de outrem, sem ter qualquer instância comum para recorrer, deixando-se utilizar a força sem direito, configurando, assim o estado de guerra (LOCKE, 2006, p. 32-33). Para evitar o estado de guerra, portanto, é necessária a intermediação de uma autoridade terrena, como esclarece Locke:

Evitar o estado de guerra [...] é motivo decisivo e bastante para que homens se reúnam em sociedade abandonando o estado de natureza; onde há autoridade, poder terreno que pode dar amparo mediante apelo, está banida a continuidade do estado de guerra, sendo a controvérsia dirimida por aquele poder (LOCKE, 2006, p. 34).

Diante desse imperativo, o homem consente em viver sob o governo estabelecido num acordo comum, sem com isso perder sua liberdade. Isso porque a liberdade não é ilimitada, mas aparece definida dentro da vida em comunidade, “ela não deve estar subordinada a qualquer poder legislativo que não aquele estabelecido pelo consentimento da comunidade, nem sob o domínio de qualquer vontade ou restrição da lei, a não ser aquele promulgado por tal legislativo”, de acordo com os poderes nele investidos (LOCKE, 2006, p. 35).

Assim, a sociedade política é estabelecida consensualmente, não impedindo o homem de exercer sua liberdade dentro dos parâmetros de sua legalidade, ou, nos termos de Locke:

O único modo legítimo pelo qual alguém abre mão de sua liberdade natural e assume os laços da sociedade civil consiste no acordo com outras pessoas para se juntar e unir-se em comunidade, pra viverem com segurança, conforto e paz umas com as outras, com a garantia de gozar de suas posses, e de maior proteção contra quem não faça parte dela (LOCKE, 2006, p. 76).

Dessa forma, os indivíduos transferem à comunidade seu direito de executar a lei de natureza, formando uma sociedade civil ou política (LOCKE, 2006, p. 70). Ao concluir sua obra, Locke reafirma a impossibilidade de se desfazer o pacto entre os indivíduos, permanecendo o poder outorgado individualmente à sociedade enquanto ela existir. Entretanto, chegando ao fim o período combinado de determinado governo, o poder retorna a sociedade, “ficando o povo com o direito de agir como supremo, conservar o legislativo em si mesmo, criar nova forma ou, na forma anterior, colocá-lo em novas mãos, conforme achar mais conveniente” (LOCKE, 2006, p. 163).

Para Carnoy, a sociedade civil construída por Locke representa uma realidade desestratificada, na medida em que seus integrantes são aqueles que possuem propriedade. De acordo com essa visão, “os indivíduos que têm direitos políticos são todos proprietários, um grupo relativamente homogêneo” (CARNOY, 2006, p. 30). Essa característica evidencia a nova forma de dominação de classes, agora nas mãos da burguesia (proprietários), que exerce seu poder não mais pela força mas pela submissão ideológica, como afirma Engels: “o moderno Estado representativo é o instrumento de que se serve o capital pra explorar o trabalho assalariado” (ENGELS, 1987, p. 194).

Por sua vez, as ideias de Rousseau divergiam das de Locke, a começar pelo processo que deu origem à sociedade civil. Na sua obra Discurso sobre a origem e

os fundamentos da desigualdade entre os homens, publicada em 1755, Rousseau

expõe como a evolução humana conduziu o homem a viver em grupos, buscando auxílio mútuo nas tarefas cada vez mais elaboradas da vida comum. Entretanto, a propriedade privada, para o autor, aparece como instrumento de desigualdade que, por sua vez condenou o homem a perder sua liberdade natural. Na passagem a seguir fica evidente que a formação da sociedade civil se deveu à voracidade do homem, como aponta Carnoy (2006, p. 31):

Enquanto os homens se contentaram com as suas cabanas rústicas, enquanto se limitaram a coser suas roupas de peles com espinhos ou arestas de pau, a se enfeitarem com plumas e conchas, a pintar o

corpo de diversas cores, a aperfeiçoar ou embelezar os seus arcos e flechas, a talhar com pedras cortantes algumas canoas de pesca ou grosseiros instrumentos de música; em uma palavra, enquanto se aplicavam exclusivamente a obras que um só podia fazer, e a artes que não necessitavam o consumo de muitas mãos, viveram livres, são, bons e felizes, tanto quanto podiam ser pela sua natureza, e continuaram a gozar entre si das doçuras de uma convivência independente. Mas, desde o instante que um homem teve necessidade do socorro de outro; desde que perceberam que era útil a um só ter provisões para dois, a igualdade desapareceu, a propriedade se introduziu, o trabalho tornou-se necessário e as vastas florestas se transformaram em campos risonhos que foi preciso regar com o suor dos homens, e nos quais, em breve, se viram germinar a escravidão e a miséria, a crescer com as colheitas (ROUSSEAU, 2007, p. 67-68).

Em outra obra, Do contrato social, publicada em 1757, Rousseau trata dos fundamentos do poder do Estado, ressaltando um aspecto importante do pacto social: apesar das diferenças naturais, os homens “tornam-se todos iguais por convenção e por direito.” (ROUSSEAU, 2002, p. 37). Assim, a igualdade não se refere à graus semelhantes de riqueza, mas sim ao respeito e cumprimento das leis, assegurando aos cidadãos tratamento igual. Todavia, ressalta que sejam observados e combatidos os excessos:

[...] quanto à riqueza, entendo que nenhum cidadão seja assaz opulento que possa comprar outro, e nenhum tão pobre que seja constrangido a vender-se: isso supõe da parte dos grandes moderação nos bens e no crédito, e da parte dos pequenos, moderação na avareza e cobiça (ROUSSEAU, 2002, p. 59).

Tratando-se da liberdade, é importante compreendê-la nos termos estritos do pacto, ou seja, o homem perde a liberdade natural, ilimitada e regulada pelo próprio indivíduo, passando a gozar da liberdade civil e da propriedade daquilo que possui. A esse estado civil, de acordo com o autor, agrega-se também a liberdade moral, por meio da qual o homem pode mensurar mais adequadamente suas escolhas, descobrindo que “a obediência à lei prescrita é liberdade”. (ROUSSEAU, 2002, p. 35).

Destarte, o pacto social não pode ser fundado em nenhuma perda de liberdade, como em Locke, mas ao contrário, na sua afirmação máxima. Essa é a preocupação em torno da questão, conforme expressa Rousseau: “Achar uma forma de sociedade que defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada sócio, e pela qual, unindo-se cada um a todos, não obedeça todavia senão a si mesmo e fique tão livre como antes” (ROUSSEAU, 2002, p. 31). Perseguindo esse

ideal, o autor indica a forma pela qual o contrato não se torne oneroso aos sócios: unindo-se todos sem quaisquer reservas. Assim, afirma que o contrato deve garantir “a alienação total de cada sócio, com todos os seus direitos, a toda a comunidade; pois, dando-se cada um por inteiro, para todos é igual a condição, e, sendo ela para todos igual, ninguém se interessa em torná-la aos outros onerosa” (ROUSSEAU, 2002, p. 31).

Quanto ao exercício do poder supremo, Rousseau adverte que ele não pode “transpor os limites das convenções gerais” estabelecidas nos princípios do pacto e nas leis que regem a sociedade, devendo o soberano zelar pela igualdade de todos, caso contrário, “particularizando o negócio, não é mais competente o seu poder” (ROUSSEAU, p. 45). O autor deposita grande importância ao papel do soberano e suas qualidades para governar a partir das leis estabelecidas pelo legislador, que em última medida é o povo.

Diante disso, a possibilidade do pacto assumir a forma de uma democracia direta é nula, visto que a representação é um aspecto central às ideias de Rousseau. Segundo ele, “não se pode imaginar que o povo reúna-se continuamente para cuidar dos negócios públicos, e é fácil ver que não poderia estabelecer comissões para isso sem mudar a forma de administração” (ROUSSEAU, 2002, p. 71). Com isso, ele suscita a impossibilidade da democracia direta, inspirada por assim dizer, na Assembleia do Povo ateniense. Dessa forma, não há qualquer contradição em excluir do contratualismo a democracia direta, uma vez que o pacto não seria necessário caso todos governassem sem mediação do Estado. Contudo, Rousseau extrapola os limites do pacto e nega a existência histórica da democracia, numa atitude visivelmente ideológica: “Rigorosamente nunca existiu verdadeira democracia, e nunca existirá. É contra a ordem natural que o grande número governe e seja o pequeno governado” (ROUSSEAU, 2002, p. 71).

As repercussões dessa ideia surgem no Estado contemporâneo, que além de amainar as contradições, assume a autoridade e a iniciativa política para agir em nome do corpo de cidadãos. Faz isso obedecendo ao princípio da representação, que é estranho aos fundamentos da democracia greco-ocidental (CASTORIADIS, 1987, p. 296), mas estabelece uma configuração normativa que delimita o poder político dos cidadãos na medida em que circunscreve a política à lógica da luta de classes. O Estado, portanto, é o poder instituído, separado do corpo de cidadãos,

situação que seria incompreensível a um ateniense que tivesse conhecido a democracia.

No documento Democracia no cotidiano escolar (páginas 75-81)