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A descentralização do ensino fundamental em decorrência do FUNDEF

Nesta parte realiza-se uma análise sobre as mudanças no processo de financiamento do ensino fundamental a partir da introdução do FUNDEF, o qual estabelece um novo critério de distribuição dos recursos do fundo, baseado no número de matrículas no ensino fundamental regular em cada esfera de governo, visando reduzir as disparidades existentes entre as redes estaduais e municipais de ensino dentro de cada unidade da federação.

Esta redistribuição de recursos promovida pelo FUNDEF é o principal instrumento indutor do processo de descentralização deste nível de ensino, principalmente nos Estados onde predominava a rede estadual de ensino.

O debate sobre a descentralização de políticas sociais envolve temas como a reforma do Estado, a questão federalista envolvendo a definição de competências distribuídas entre as esferas do governo, a oferta de políticas públicas nas áreas sociais, a emergência do poder local, planejamento urbano e regional, administração pública municipal entre outros temas relacionados.

Tendo em vista a complexidade que envolve a descentralização das políticas sociais, o enfoque no ensino fundamental dado neste trabalho se limita a analisar as mudanças no financiamento deste nível de ensino ocorridas após a introdução do FUNDEF.

Porém, é necessário, em primeiro lugar, abordar sumariamente alguns aspectos teóricos sobre a descentralização da política educacional. Em segundo lugar, será apresentado o padrão de financiamento do ensino fundamental anterior ao FUNDEF, marcado por grandes disparidades entre as redes estaduais e municipais na oferta deste nível de ensino, e as mudanças introduzidas pelo FUNDEF com o intuito de eliminar as desigualdades intraestaduais no financiamento do ensino fundamental, através da redistribuição dos recursos vinculados ao fundo entre as esferas de governo, proporcionalmente à oferta de matrículas nas redes estaduais e municipais de ensino fundamental. Na terceira parte, serão apresentados os impactos fiscais da redistribuição dos recursos do FUNDEF e a trajetória das matrículas estaduais e municipais de ensino

3.1. O processo de descentralização do ensino fundamental: aspectos teóricos e conceituais

Nesta parte pretende-se apresentar um breve histórico e buscar parâmetros teóricos-conceituais sobre a questão da descentralização das políticas sociais e, especificamente, sobre a descentralização do ensino fundamental no Brasil abordados em alguns estudos específicos sobre este tema.

O processo decisório sobre a descentralização das políticas sociais não está limitado às orientações administrativas operacionais, mas envolve as questões estratégicas de ordem político-administrativa focadas na organização do aparelho estatal. O debate sobre a descentralização envolve um aspecto mais importante do que o sentido da orientação organizacional, esta questão remete à discussão da distribuição do poder político na sociedade, transferindo o poder de decisão do governo central para as esferas subnacionais de governo.

No caso do ensino fundamental, a atual política de descentralização significa a transferência da gestão do ensino do governo estadual para o governo municipal. Com esse sentido, a municipalização do ensino é, então, praticamente tomada como sinônimo da descentralização educacional.

Deve-se ressaltar que descentralização e municipalização são processos distintos, onde o primeiro não necessariamente implica no segundo; ou seja, a descentralização pode ser realizada sem que haja transferência de recursos patrimoniais e humanos do Estado para o município. Neste estudo, será tratada a questão da descentralização do ensino fundamental como um todo, independentemente da forma como foi realizada.

Bassi (2001) ressalta algumas das razões que orientam a política de descentralização das políticas sociais, principalmente no caso específico do ensino fundamental. Segundo o autor, as forças impulsionadoras e os consensos em torno da descentralização apontam para uma gestão mais democrática das políticas sociais, sendo comum relacionar descentralização à possibilidade de maior participação popular. Porém, esta relação entre descentralização e democracia não é a única variável no processo de tomada de decisão dos atores estratégicos que definem as diretrizes da política de descentralização do ensino fundamental.

Segundo Arelaro (1999), a descentralização da política educacional no Brasil é historicamente determinada por iniciativas do governo central, com os objetivos de reestruturação do Estado, ajuste das contas públicas e racionalização dos gastos sociais, “e não como resposta às reivindicações da sociedade civil interessada em participar de forma mais ativa nas escolas e nos projetos pedagógicos que ali se desenvolvem. Essa observação se faz necessária uma vez que é comum relacionar-se providências administrativas de descentralização e municipalização do ensino com democratização da sociedade e participação popular” (p.65).

O esgotamento da organização do Estado, segundo o modelo social do Welfare State e econômico do keynesianismo, cede lugar à globalização econômica e à ideologia liberal que reorienta a política econômica, reduz o papel interventor do Estado nas atividades econômicas e limita os gastos públicos.

Segundo Draibe(1993), a descentralização é um dos eixos da estratégia de reforma do sistema de proteção social frente ao ajustamento econômico dos Estados Nacionais14. A tese sustentada relaciona diretamente a descentralização e a questão da eficiência e eficácia do gasto social, uma vez que aproxima os problemas e a gestão das políticas sociais da população beneficiada, através da transferência de responsabilidades aos Estados e municípios.

A descentralização faz parte dessa estratégia de reorientação do papel das políticas sociais frente à crise de financiamento do Estado, com o objetivo de reduzir o Estado centralizador, buscando novas formas de organização das políticas sociais, com redução de gastos. A descentralização educacional enquadra-se nessa proposta de reorganização do financiamento das políticas sociais.

Dessa maneira, as tentativas de descentralizar a oferta do ensino fundamental, sempre tiveram a iniciativa do Governo Federal, pressionado internacionalmente pelos ajustes recomendados pelos organismos multilaterais e pela constante crise financeira do Estado nos anos 80 e 9015.

14 Os outros eixos são a focalização, com o objetivo de concentrar os gastos sociais nos setores mais pobres, e a privatização, a qual é argumentada segundo a necessidade de alívio da crise fiscal e da irracionalidade no uso dos recursos pelo Estado.

Do lado dos municípios, a descentralização do ensino fundamental não era exigida politicamente pelos atores locais, pois não havia reivindicação da sociedade civil, ao mesmo tempo em que não existia provisão legal que determinava a responsabilidade pela oferta do ensino fundamental aos municípios.

Arretche (2000) destaca a importância dos fatores determinantes nos processos de descentralização de políticas sociais e classifica-os em três tipos. O primeiro tipo refere- se aos fatores de caráter estrutural, tais como a capacidade de gasto e capacitação político-administrativa. O segundo tipo são os fatores institucionais, por exemplo, o legado das políticas prévias, as regras constitucionais e a engenharia operacional. O terceiro tipo está relacionado à ação política, envolvendo questões ligadas à natureza das relações entre Estado e sociedade e às relações entre os diversos níveis de governo.

A autora ressalta que no contexto político institucional dos anos 90, o Programa de Proteção Social brasileiro passou por um redesenho institucional, passando de um padrão centralizado para um modelo descentralizado de oferta das políticas sociais. O ambiente das relações intergovernamentais deixou de ser também centralizado a partir da União e assumiu a forma de relações federativas. A Constituição de 88 passa a considerar os municípios como entes federados autônomos e, além disso, transfere uma grande quantidade de recursos para as mãos dos municípios.

Neste contexto, pode-se afirmar que o processo de descentralização das políticas sociais devem ser objetos de negociação e articulação entre as três esferas de governo. Segundo Arretche (2000), o sucesso de uma proposta de descentralização das políticas sociais consiste em superar eventuais resistências de ordem estrutural ou política, através de estratégias de indução eficientemente desenhadas e implementadas por parte dos níveis de governo envolvidos.

Neste sentido, a autora destaca a importância das variáveis institucionais, tais como os desenhos dos programas, os mecanismos operacionais, o legado das políticas anteriores, as disposições constitucionais, as regras do programa de descentralização, o modo efetivo de implementação e a ação dos atores envolvidos.

Tendo em vista estes fatores determinantes de caráter institucional, o processo de descentralização do ensino fundamental ganhou um grande impulso a partir da legislação de 1996, que envolve a Emenda Constitucional nº 14, a elaboração do FUNDEF (lei

9.424) e a aprovação da nova Lei de Diretrizes e Bases para a Educação (lei 9.394). Segundo Bassi (2001), o panorama educacional viria a mudar radicalmente, a partir de 1996, com um conjunto de alterações legais e constitucionais implementado, que deu novo e forte estímulo à descentralização do ensino fundamental. As mudanças legais posicionaram as regras constitucionais como o principal fator nas estratégias de indução da municipalização do ensino fundamental (pp. 41).

O novo padrão de financiamento do ensino fundamental introduzido com o FUNDEF reorganiza o processo orçamentário e financeiro deste nível de ensino, dando maior visibilidade à gestão das verbas destinadas a partir da subvinculação de recursos que compõem o fundo, disponibilizado em uma conta única para o financiamento do ensino fundamental em cada esfera de governo.

Além disso, o FUNDEF promove a redistribuição dos recursos vinculados ao fundo de acordo com a oferta de matrículas no ensino fundamental nas redes municipais e estaduais, dentro de cada unidade federativa. Dessa maneira, o volume de recursos disponíveis em cada esfera de governo passa a ser proporcional às matrículas oferecidas nas respectivas redes de ensino fundamental.

Através desta redistribuição de recursos promovida pelo FUNDEF, os municípios que perdem receitas com o fundo são estimulados a assumir matrículas do ensino fundamental a fim de retirar recursos originários do FUNDEF, uma vez que os municípios só recebem recursos do fundo proporcionalmente às matrículas na rede pública municipal de ensino fundamental. Dessa forma, o FUNDEF é capaz de estimular a descentralização do ensino fundamental apesar deste processo não está previsto como obrigatório na legislação que institui o fundo.

Com a introdução do FUNDEF, pretende-se reduzir as distorções existentes no financiamento do ensino fundamental entre as redes estaduais e municipais dentro de cada Estado (desigualdades intraestaduais). Por outro lado, o FUNDEF estimula o processo de descentralização do ensino fundamental em decorrência do critério de redistribuição dos recursos do fundo. Estes dois aspectos desencadeados a partir do FUNDEF serão abordados detalhadamente nos tópicos 3.2 e 3.3, respectivamente.

3.2. Desigualdades intraestaduais: o padrão de financiamento anterior ao fundo e a equalização pós-FUNDEF no âmbito dos Estados.

A situação anterior à Emenda Constitucional n.º 14 era marcada pela desigualdade na oferta do ensino fundamental entre as redes estaduais e municipais de ensino, este tipo de disparidade que ocorre dentro de cada Estado será tratada neste estudo como desigualdades intraestaduais.

Conforme foi colocado anteriormente, a Constituição de 1988 não definiu, através de um aparato legal, as responsabilidades e competências pela oferta dos diferentes níveis de ensino entre as esferas de governo. Dessa forma, a oferta do ensino fundamental se desenvolveu de maneira distinta em cada Estado brasileiro.

Tabela 6 - Participação das redes estaduais e municipais do ensino fundamental em 1996

UF/REGIÕES ESTADUAL MUNICIPAL TOTAL