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2. FORMAÇÃO E IMPORTÂNCIA DOS MUNICÍPIOS NO CONTEXTO

2.5. DESCENTRALIZAÇÃO ADMINISTRATIVA E DO PODER POLÍTICO

2.5.2. A descentralização entre o Estado e a sociedade

A sociedade passou a ganhar importante papel jurídico no cenário da descentralização, mas esta era acima de tudo uma aspiração das grandes corporações internacionais e de agentes internos integrantes dos governos, empresas e instituições financeiras nacionais. Ao longo da história brasileira, parece que os movimentos sociais pouco influenciaram nas tomadas de decisões sobre o rumo das ações políticas aqui praticadas. Nem a independência, nem a proclamação da República, nem a pretensa revolução de 1930, e muito menos o golpe militar de 1964 tiveram influência direta da população.

Não é, predominantemente ou exclusivamente, na força dos movimentos sociais que está o centro dinâmico das mudanças políticas no Brasil (afinal, as massas, nas ruas, em 1984, não conseguiram eleições diretas para a presidência da República), mas nas contradições e debilidades que a modernização introduziu na dominação oligárquica. Aí, sim, na ação sobre essas fragilidades é que os movimentos sociais têm conseguido propor e, até, introduzir suas demandas na agenda política do Estado brasileiro (MARTINS, 1999, p. 21)

Neste sentido, observa-se que o movimento de descentralização ocorreu simultaneamente em várias partes do mundo. O Brasil não estava isolado nesse processo, embora apresentasse uma situação específica ao tratar o município como um ente federado autônomo. A descentralização e a consequente maior autonomia municipal eram mais uma alternativa para o avanço das atividades econômicas, tanto é que na atualidade muitos municípios mantêm relações comerciais sem intermédio das demais esferas de governo; é o que chamamos de paradiplomacia. Mais uma vez evidencia-se a modernização conservadora do Estado brasileiro. Há então, uma opção pela burocracia para o controle das atividades políticas e econômicas.

Outra discussão se refere à democracia representativa ou democracia direta. No Brasil a democracia representativa tem sido pontual, sendo necessário haver mecanismos de acompanhamento da sociedade nas ações governamentais. Observa-se que há uma concepção hegemônica de democracia, relacionada à representatividade em oposição à democracia direta, sendo essa substituída pelo igual direito de concorrer aos cargos políticos; e dessas representações

expressarem as opiniões da sociedade. Mas vivemos numa crise da ―democracia‖ representativa, na medida em que não nos sentimos representados. A idéia de um estado pluralista, muito disseminada nos Estados Unidos nos leva a acreditar que o Estado é neutro e faz a mediação entre as classes e indivíduos sociais; mas, por não estar separado da sociedade, podemos dizer que ele reflete e ajuda a promover as desigualdades e contradições sociais. Mas essa relação não se dá sem conflito, havendo constantes relações de poder.

Na atualidade a accountability traz à tona a questão do controle social, em que ―[...] os cidadãos se tornam controladores dos governantes não apenas nas eleições, mas ao longo do mandato de seus representantes‖ (PINHO; SACRAMENTO, 2009, p.1.353). Ao analisar se o termo em inglês accountability já poderia ser traduzido para o português8, no sentido de fazer parte também de uma prática de responsabilidade dos agentes públicos com a coisa pública, Pinho e Sacramento (2009) conclui que, embora tenham sido alcançados alguns avanços nos últimos 20 anos: a vigência da Constituição Federal de 1988, possibilitando maior descentralização entre as esferas de governo, e também entre o Estado e a sociedade; a institucionalização da participação popular com mecanismos de participação, a exemplo dos conselhos gestores e orçamentos participativos, além de plebiscitos; reformas no aparelho do Estado, buscando implementar a administração gerencial em substituição à administração burocrática; a organização autônoma da sociedade civil em determinados momentos, como no processo para a transição democrática, as eleições diretas e o impedimento do presidente Fernando Collor, além de órgãos como o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE) e a criação da Controladoria Geral da União (CGU); mesmo com tudo isso, ainda se constata que a promessa de uma administração pública mais eficiente e transparente ainda está em processo de construção, e que sua efetivação se dará de forma lenta.

Na sociedade brasileira, a modernização se dá no marco da tradição, o progresso ocorre no marco da ordem. Portanto, as transformações sociais e políticas são lentas, não se baseiam em acentuadas e súbitas rupturas sociais, culturais, econômicas e institucionais. O novo surge sempre como um desdobramento do velho (MARTINS, 1999, p. 30).

8 Pinho buscou responder após duas décadas a indagação de ―quando este termo [accountability]

Pinho e Sacramento (2009, p. 1.364), destacam que ―[...] o autoritarismo tem mostrado uma enorme capacidade de se redesenhar, se redefinir diante das mudanças institucionais e culturais a favor do aumento de accountability”, e acrescenta ainda que, por enquanto, não há palavra que possa expressar em português o termo accountability, mas que este ―[...] encerra a responsabilidade, a obrigação e a responsabilização de quem ocupa um cargo em prestar contas segundo os parâmetros da lei, estando envolvida a possibilidade de ônus, o que seria a pena para o não cumprimento dessa diretiva‖ (PINHO; SACRAMENTO, 2009, p. 1.348).

Além dos gestores públicos municipais, há também uma transferência de responsabilidade para a sociedade civil. O desenvolvimento regional ―de baixo pra cima‖, ou seja, a gestão local feita a partir das próprias comunidades, adequando seus projetos e ações às particularidades locais, na verdade, pode levar à manutenção do status quo, à medida que transfere o ônus do desenvolvimento para as comunidades locais, sendo considerada por Becker (1986) uma concepção de democracia falha, por ser particularistas, fragmentários, localizados e pragmáticos. É falha ainda, por ser difícil detectar identidades territoriais e critérios internos que tenham legitimidade, sendo necessário que haja ―métodos legítimos de definição de vontade coletiva‖ (BECKER, 1986, p. 52); mas sendo ainda uma estratégia seletiva, que transfere a responsabilidade para a população.

Nessa perspectiva, a construção ideológica do desenvolvimento local insere um novo ingrediente que produz a ilusão de horizontalização das relações entre os diferentes sujeitos sociais e de participação da população na tomada de decisões. O slogan ―pense globalmente, aja localmente‖ traduz a retórica falaciosa da associação entre democracia e desenvolvimento, difundindo a idéia de que a participação é fundamental para a governabilidade. A promessa de estabilidade e de melhor gestão encanta governos e parcelas de segmentos sociais que se vêem ―ouvidos‖, próximos dos gestores e protagonistas das políticas públicas (SANTOS, A. 2010, p. 133).

O povo brasileiro se mostrou durante muito tempo ordeiro; a própria frase da bandeira nacional: ―ordem‖ e depois ―progresso‖, como se fosse possível haver progresso com a ordem estabelecida, nos remete à reflexão de um povo pacífico, mesmo em meio à corrupção e improbidade administrativa dos governantes. Só um povo ordeiro admite que seus recursos sejam degradados de maneira a privilegiar poucos, nunca os mais pobres. Chauí (2001) usa a expressão verdeamarelismo para

se referir à ausência de lutas sociais no Brasil e a cooperação e colaboração entre o capital e o trabalho, sob a vigilância do Estado. ―As características de uma determinada estrutura não podem ser completamente deduzidas das características de sua ―sociedade civil‖ (ou, em outros termos, sua estrutura de classe)‖ (SCHWARTZMAN, 2007, p. 92). A população brasileira foi às ruas em alguns contextos históricos, mas desde junho do ano de 2013 tem ocorrido uma série de manifestações no Brasil, que se iniciou pela luta contra o aumento abusivo da tarifa do transporte coletivo, e foi abarcando diversas outras reivindicações, principalmente, com relação à saúde e à educação, o que tem mostrado uma mudança de comportamento dos brasileiros frente à corrupção em nosso país.

A sociedade brasileira, tal como retratada em seu próprio depoimento, encontrar-se-ia entre as mais pacíficas do planeta. Isto porque o indivíduo isolado, não-poliárquico, pobre em laços de congraçamento social, prefere negar o conflito a admitir que seja vítima dele. Por isso a poliarquia9 brasileira restringe-se à pequena mancha institucional circunscrita por gigantesca cultura da dissimulação, da violência difusa e do enclausuramento individual e familiar (SANTOS, W. 1993, p. 80).

Desde a Constituição Federal de 1988, além do poder público municipal, os setores populares organizados também são considerados agentes legítimos do processo de descentralização. Segundo Andrade (2001) e Lubambo (2002), a participação popular, regulamentada pela Constituição Federal de 1988 permite às mais diversas representações de segmentos sociais acesso ao governo e participação na tomada de decisões acerca de determinados problemas públicos, exercendo influência significativa na postura política dos governantes e na formulação e implementação de políticas públicas na localidade. Além disso, Lubambo (2002) acredita serem os conselhos gestores originários de lutas e demandas populares.

Nessa perspectiva, ao analisar o relatório do orçamento participativo das prefeituras de Belo Horizonte e de Porto Alegre, Souza, C. (2001, p. 85), argumenta que ―[...] a experiência tem permitido que os seguimentos de menor renda, que moram em áreas periféricas das cidades, possam decidir sobre as prioridades de investimentos em suas comunidades‖.

Porém, a descentralização intergovernamental, e entre o Estado e a

9

O autor define poliarquia por elevado grau de institucionalização da competição pelo poder associado à extensa participação política, só limitada por razoável requisito de idade.

sociedade, acompanhada do discurso e da formalização da participação da sociedade organizada como solução para a democratização das tomadas de decisões nas políticas públicas parece estar distante da participação efetiva da população na gestão pública governamental, pois enfrenta diversos problemas conjunturais e estruturais.

A idéia de efetivação de uma gestão autônoma e o resgate do poder local, para não parecer uma análise ingênua, devem extrapolar a noção de autonomia administrativa e estar atrelados à capacidade de interferência dos grupos sociais, seja por instâncias de representação (conselhos, sindicatos, organizações), seja pela conscientização do indivíduo de seu papel no interior da coletividade (cidadania). É importante a definição de formas de controle e de cooperação, pois corre-se o risco de institucionalizar práticas espontâneas para a solução de problemas imediatos, sem criar espaços participativos reais (GONZÁLES, 2005, p. 04).

Assim, Carvalho (2005) alerta para a mera formalização institucional da participação da sociedade civil organizada como exigência para o sucesso do processo de descentralização, uma vez que a realidade se distancia do discurso ideológico que atribui a esse processo o sinônimo de democracia. É preciso, dessa forma, atentar para a maneira como foi estabelecida a participação popular na tomada de decisões e na fiscalização das ações públicas governamentais, e como vem sendo vivenciada na prática, depois de 24 anos da promulgação da última Constituição Federal.