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2. REVISÃO TEÓRICA

2.3. A descrição sistêmico-funcional do português brasileiro

O português brasileiro tem sido abordado em diferentes pesquisas dentro do campo disciplinar dos estudos da tradução e passos iniciais já foram dados em direção à sua descrição sistêmico-funcional. Esta seção visa apresentar de forma sucinta algumas pesquisas em tradução que têm o português brasileiro como uma das línguas estudadas e apontam para a necessidade de descrição desta língua. Igualmente, nesta seção são apresentadas algumas descrições parciais e uma introdução ao perfil metafuncional do português brasileiro.

Em relação às pesquisas em tradução, é possível apontar aquelas realizadas no âmbito do projeto CORDIALL (NET/LETRA/UFMG – NUT/UFSC) e do grupo de pesquisa “Modelagem sistêmico-funcional da tradução e da produção textual multilíngue” (LETRA/FALE/UFMG).

O projeto CORDIALL foi desenvolvido no NET - Núcleo de Estudos da Tradução da Faculdade de Letras da UFMG em parceria com o NUT - Núcleo de Tradução da UFSC. As pesquisas desenvolvidas nesse projeto exploram corpora paralelos e comparáveis formados por textos literários originais e suas traduções (PAGANO; VASCONCELLOS, 2005). É possível destacar as pesquisas de Cruz (2003), Jesus (2004) e de Rodrigues (2005).

Cruz (2003) investiga um corpus formado pelo livro Harry Potter and the chamber of secrets, de J. K. Rowling, e sua tradução brasileira, analisando a realização de projeções paratáticas de Processos verbais por verbos de elocução. A autora identifica padrões de seleção nos sistemas de projeção do inglês e do português, demonstrando como as projeções contribuem para a construção de personagens nas duas línguas.

Jesus (2004), por sua vez, investiga corpora paralelo e comparável, formado pelo livro Point counter point, de Aldous Huxley, sua tradução para o português, Contraponto, por Érico Veríssimo, e um romance do próprio Érico Veríssimo, Caminhos Cruzados. Jesus (2004) também analisa verbos de locução, mas desta vez realizando Processos mentais. A autora identifica padrões diferenciados de seleção nos sistemas nos três romances, apontando diferenças na realização de Processos mentais em cada um. Além disso, nas palavras de Pagano

e Vasconcellos (2005), “trabalho de Jesus (2004) também contribui para um aprofundamento da categoria processos mentais na abordagem sistêmica”.

Por fim, Rodrigues (2005) investiga um corpus formado pelo romance A hora da estrela, de Clarice Lispector, e sua tradução para o inglês. Rodrigues (2005) analisa a organização temática dos textos, identificando diferentes padrões na construção da mensagem nos sistemas das duas línguas envolvendo Temas ideacionais e interpessoais, e aponta como motivações das escolhas do tradutor opções diferentes nos sistemas das línguas e questões relativas ao próprio tradutor, como o estilo.

O grupo de pesquisa “Modelagem sistêmico-funcional da tradução e da produção textual multilíngue” também apresenta importantes contribuições para o estudo da tradução. É possível citar como exemplo Pagano e Figueredo (2011), Ferreguetti (2014) e Pagano, Sá e Ferreguetti (2014).

Pagano e Figueredo (2011) investigam um corpus comparável formado por textos em português brasileiro e espanhol, buscando explicar como essas línguas realizam a experiência da dor. Os autores analisam linhas de concordância contendo as palavras “dor” e “dolor”, e demonstram que as duas línguas apresentam recursos semelhantes para a realização dessa experiência. Porém, apontam para o fato de o espanhol apresentar uma frequência maior de Processos mentais realizando a experiência da dor, enquanto o português brasileiro apresenta uma baixa frequência de Processos (e, quando presentes, são do tipo material).

Ferreguetti (2014) investiga a combinação paralela entre os subcorpora Inglês Original e Português Traduzido do Klapt! (Corpus de Língua Portuguesa em Tradução), um corpus combinado (paralelo e comparável), bilíngue (português brasileiro e inglês), composto por textos prototípicos de oito tipos de texto (Artigo Acadêmico, Discurso Político, Divulgação Científica, Ficção, Manual de Instrução, Propaganda Turística, Resenha e Website Educacional). A autora analisa a realização dos Processos existenciais nos textos em inglês e como esses Processos são traduzidos para o português. Ela aponta para uma configuração prototípica para os tipos de texto em inglês e em português, assim como as mudanças mais frequentes na tradução das orações existenciais.

Por fim, Pagano, Sá e Ferreguetti (2014) investigam um corpus paralelo composto por histórias em quadrinhos da Turma da Mônica e suas traduções para o inglês. Os autores analisam a realização de Partículas Modais nos textos em português e como essas partículas são traduzidas para o inglês e apontam para uma configuração semelhante à apresentada por

Figueredo (2011), assim como padrões nas realizações das Partículas em inglês, sugerindo a existência de um sistema que realize lexicogramaticalmente a validação nessa língua.

Observa-se nos trabalhos listados acima uma preocupação em explicar fenômenos da tradução tanto em relação ao texto quanto em relação aos sistemas que os instanciam. Esses trabalhos buscam entender como os padrões de um sistema influenciam nas seleções de padrões dentre os potenciais de outros sistemas linguístico. Assim, estas pesquisas já apontam para traços de sistemas do português brasileiro, e, portanto, contribuem com sua descrição.

Além disso, essas pesquisas também apontam para a necessidade de descrição do português brasileiro para o estudo da tradução. Pois ao investigarem no ambiente multilíngue não só as instâncias, mas também os sistemas, apontam para a necessidade de uma descrição mais abrangente do sistema linguístico do português brasileiro. Nesse sentido, Araújo (2007) e Figueredo (2007, 2011) apresentam passos iniciais importantes na direção de uma descrição sistêmico-funcional abrangente do português brasileiro.

Araújo (2007) apresenta uma descrição do sistema semântico de PROJEÇÃO do português

brasileiro, observando a dispersão desse sistema no estrato lexicogramatical. O autor identifica três contrastes semânticos que contribuem para sua realização: nível de projeção (ideia e locução), modo de projeção (relato ou citação) e função discursiva (proposição e proposta). Os níveis de projeção referem-se ao tipo de figura realizada lexicogramaticalmente pelos Processos mental (para a ideia) e verbal (para a locução). Sobre o modo de projeção, trata-se da relação de taxe entre as orações, sendo realizada lexicalmente na forma de complexos oracionais em relação de hipotaxe (relato) ou parataxe (citação). E em relação à função discursiva, essa função é observada em relação ao conteúdo projetado, sendo realizada lexicogramaticalmente pelo sistema de MODO. O autor então aprofunda sua descrição ao apresentar níveis maiores de

delicadeza na realização lexicogramatical da projeção e ao tratar da confluência dos sistemas, demonstrando a correlação entre os três contrastes semânticos.

Figueredo (2007), por sua vez, apresenta uma descrição da estrutura do grupo nominal do português brasileiro. Pautando-se pela perspectiva trinocular, o autor apresenta o grupo verbal (i) “de baixo”, identificando as classes de palavra que compõem o grupo nominal, (ii) “ao redor”, descrevendo a organização das classes de palavra no grupo nominal, demonstrando sua organização experiencial, realizada por elementos com função de Qualidade ou Ente, e lógica, realizada por elementos com função de Núcleo e Pré- e Pós-modificadores, e (iii) “de cima”, observando como os elementos do grupo nominal e o próprio grupo contribuem para a

realização lexicogramatical de significado. A complementaridade entre as perspectivas “de baixo” e “de cima” possibilitou a descrição da escala de ordens do português brasileiro, pois permitiu verificar como os elementos da ordem da palavra e do grupo se agrupam, formando classes que operam nas ordens do grupo e da oração, respectivamente.

Por fim, Figueredo (2011) apresenta uma descrição mais abrangente. Por ser uma descrição pautada pelas três metafunções e, em certa media, restrita à ordem da oração, esta descrição é apresentada como uma introdução ao perfil metafuncional do português brasileiro. O autor apresenta os sistemas de TEMA, MODO e TRANSITIVIDADE (restringindo-se às orações

mentais), realizados na ordem da oração. Figueredo (2011), portanto, figura como uma importante contribuição para o estudo do português brasileiro, tanto no estudo de traduções quanto no desenvolvimento de descrições de unidades e classes do português brasileiro que não foram ainda abordadas.

É importante destacar que as descrições de Figueredo (2007, 2011) já apresentam algumas considerações sobre o verbo e o grupo verbal. A próxima seção trata dessas considerações, apresentando um panorama geral do grupo verbal com base nessas descrições e nas bases teóricas definidas neste capítulo.