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A desterritorialização da experiência

No documento [Download Integral] (páginas 37-61)

DESTERRITORIALIZAÇÃO DA EXPERIÊNCIA

«A Terra está definitivamente cercada pelo espírito. E sob o progresso constantemente acelerado dos meios de comunicação aéreos e eté- reos, diminui a olhos vistos, até converter-se num âmbito irrisoria- mente pequeno. Paralelamente a esta redução geográfica (a mais impressionante e rápida), o mundo sofre claramente outros géneros de esgotamento sob as nossas contínuas investigações.»

Pierre Teilhard de Chardin, 1970: 42

1. A ficcionalização do real

Se é verdade que algumas das teses de McLuhan acabaram por ser rebatidas ao longo das últimas décadas do século XX, também o é que a da transformação do mundo numa aldeia global é talvez ainda hoje uma metáfora válida para falar do contexto actual. Inspirado em Teilhard de Chardin, McLuhan previu com clareza a globalização do espaço, susten- tando um retorno à condição humana de unidade tribal. «Hoje», explica McLuhan em Understanding Media, «depois de mais de um século de tec- nologia eléctrica, projectamos o nosso próprio sistema nervoso central num abraço global, abolindo tempo e espaço» (1964:21). É, pois, na con- solidação da electricidade que se consubstanciam as profecias acerca da emergência de um mundo globalizado. A aspiração pelo conhecimento total do mundo, ou seja, a aspiração pela totalidade, que Kant dizia que não poderia ser experimentada, tem pelo menos a idade das Descobertas marítimas, mas é como corolário da tecnologia eléctrica (McLuhan) que ela quase se efectiva.

No início dos anos 1970, Alvin Toffler considerava que a sociedade oci- dental tinha sido tomada por um turbilhão de transformações (1970). Maior do que uma segunda revolução industrial, este turbilhão seria responsável por um “choque do futuro” que romperia com o passado. A sociedade nova e estranha que estaria prestes a eclodir tumultuosamente não poderia ser encarada como uma continuidade histórica idêntica à que marcou a pas- sagem da barbárie à civilização. Sucedendo à sociedade industrial, esta nova sociedade, em processo de consolidação graças a uma “revolução da

19Para Toffler, dividir a história em três ondas ou vias corresponde a dividi-la em três ida-

des: a primeira, de longa vigência, tem a marca do predomínio da actividade agrícola, em que a tecnologia surge associada ao esforço humano; a segunda, cujo clímax é atingido com a revolução industrial, em que a tecnologia surge ligada a um esforço mecânico, maquí- nico; finalmente a terceira, desencadeada pela revolução tecnológica, é regida predomi- nantemente por fluxos de informação.

20Distinga-se os termos pelo seu próprio significado semântico. A virtualidade é do domínio

da potência, na medida aristotélica de um real, pelo menos ainda, não actual. O virtual não se opõe, portanto, como pensava Deleuze (1989), ao real, mas ao actual. A ficção é do domínio da coisa imaginária, do artifício, da simulação, do fingimento. Então, se o vir- tual é um real potencial, o ficcional não é senão o irreal.

21“Des espaces autres” – conferência proferida a 14 de Março de 1967, no Cercle d’Études

Architecturales, mas cuja publicação Foucault só autorizou na Primavera de 1984.

informação”, constitui então a terceira via da História19(1980), ou a ter-

ceira fase da evolução sistematizada por Teilhard – o momento em que o mundo está encoberto pelo fulgor de uma consciência incandescente. Trata- se, pois, do nascimento de uma nova civilização, que é «ao mesmo tempo altamente tecnológica e anti-industrial» (Toffler, 1980:26).

Com esta matriz tecnológica, o tempo presente, que, para Toffler é um sucedâneo da sociedade de massas, conduz a uma concepção de novos paradigmas, a uma nova “cosmovisão” que implica reconsiderar novas definições para as relações sociais e de poder (1990). Numa visão que o aproxima particularmente de McLuhan, pela perspectiva de um deter- minismo tecnológico, Toffler profetizou desde Future Shock aquilo que, vinte e cinco anos depois, constatou, em Creating a new civilization (1995), ser um “mundo fictício”, desenvolvido na esfera de uma dimensão virtual. Se bem que a virtualidade e a ficção não sejam coincidentes20, há

em Toffler uma convicção de que não podemos alhear-nos – a de que uma crescente ficcionalização da realidade pelos meios mass-mediáticos está a gerar uma irrealidade que alcança o universo da informação e das notí- cias e a que, perigosamente, tendemos a responder como se fosse real.

Talvez fosse já a esta ficcionalização que Foucault se referisse, em 1967, quando, numa conferência21 no Cercle d’Études Architecturales,

disse que «há, antes de mais, utopias» (Foucault, 1984:46). Definindo-as como locais (emplacements) sem lugar real e considerando-as por oposição às heterotopias, lugares efectivos, lugares reais, efectivamente localizá- veis, Foucault reconhecia que as utopias «são espaços que mantêm com o espaço real da sociedade uma relação geral de analogia directa ou inversa.» (ibidem). A sua ideia de que estamos numa época em que o espaço se nos dá sob a forma de relações destes emplacements reaviva- se hoje na inquietude que o espaço representa na história da experiência ocidental. É que, lembra Foucault, se, na Idade Média, o espaço era «um conjunto hierarquizado de lugares», depois de Galileu, ele tornou-se «infi- nito e infinitamente aberto», sendo, nos nossos dias, definido «por relações

22Referindo-se à história do espaço na experiência ocidental, Foucault estabelece que o

espaço medieval é sobretudo espaço de localização, na medida em que se definiria pela hie- rarquia de lugares sagrados e profanos, lugares protegidos e lugares abertos e sem defesa, lugares urbanos e lugares camponeses. Na idade pós-medieval, por outro lado, o lugar de uma coisa não é senão um ponto no seu movimento, pelo que, a partir do século XVII, a extensão substitui a localização, como valor de constituição do espaço.

23A noção de fantasmagoria tem, na obra de Walter Benjamin, um lugar central, corres-

pondendo, por um lado, a uma função falaciosa de transfiguração, e por outro, a uma pos- sibilidade de congregar em si imagens utópicas da colectividade.

de vizinhança entre pontos ou elementos». Perdem-se, na actual concep- ção de espaço, os valores de localização e extensão22, que, na realidade,

eram a matriz do espaço real na era pré-tecnológica.

Sem estes eixos espaciais, é, pelo menos aparentemente, estranho que Foucault sugira que a época actual é a época do espaço. «Nós estamos», diz, «num momento em que o mundo se experimenta (…) menos como uma grande vida que se desenvolveria através do tempo do que como uma rede que religa pontos e entrecruza o seu labirinto» (ibidem). Dizemos aparentemente estranho, porque, na ausência de coordenadas concretas de definição do espaço, dir-se-ia que a época actual é a da a-espacialidade. No entanto, a a-espacialidade, como negativo da espacialidade e corre- lato da a-temporalidade, seria o lugar do nada, da a-relação. Sem a mate- rialidade da forma, da área e do volume, isto é, sem localização nem

extensão, o espaço deixaria de ser o território naturalizado de inscrição da

experiência. É que, sendo um atributo mais objectivo que o tempo, o espaço seria apreendido apenas no sentido em que fosse medido. Não podendo sê-lo, o espaço deixaria de ser o horizonte de todo o agir.

O que Foucault realmente pretendia era asseverar que «estamos na época do simultâneo, estamos na época da justaposição, na época do pró- ximo e do longínquo, do lado a lado, do disperso» (ibidem), que são todas elas ainda formas de espacialidade. Propondo uma heterotopologia, uma descrição sistemática que teria por objecto o estudo, a análise, a descri- ção e a leitura destes espaços em permanente relação com o ficcional, Fou- cault sugere antes que os emplacements substituem a localização e a

extensão na justa medida em que se definem pela conexão de redes de

informação, isto é, pelo tipo de circulação dos elementos humanos. Se o território da experiência fosse, hoje, uma a-espacialidade, não faria sen- tido falar do espaço como uma inquietude da actualidade. Mas o que é a ficção senão um problema também de espaço?

O que os media melhor souberam fazer, pelo menos após o apareci- mento e a vulgarização da imagem televisiva, foi precisamente aproxi- mar o que estava distante e distanciar o que estava próximo. O resultado é uma distorção da geografia do globo que fantasmagoriza23a percepção

do espaço. Os lugares deixam de ser experimentados fisicamente para serem também imaginados ficticiamente, num permanente “como se…”. Esse é, na verdade, um dos efeitos da globalização aventados por Anthony Giddens: a contaminação do presente pelo distante, a determinação do visível pelo invisível. É isso que significa dizer que «nas condições da modernidade, (…) o local é completamente penetrado e modelado por influências sociais muito distantes.» É que «o que estrutura o local não é apenas aquilo que está presente no cenário; a “forma visível” do local oculta as relações distanciadas que determinam a sua natureza» (Gid- dens, 1998:13).

Quando, há meio século, Foucault se referia à justaposição como uma característica do espaço era já para uma ordem de sobreposição de pre- sente e ausente, de visível e invisível que apontava, no advento do real fic- cionado dos nossos dias. De facto, é nesta ilusão de diluição do particular, de compressão do espaço pelo tempo que se instaura o sentido ficcional desta nova realidade que, excedendo-se numa representação de si pró- pria, não é mais do que um irreal virtualmente actualizado. A intensifi- cação da consciência do mundo como um todo, de que os media foram especiais promotores, resulta numa ideia de miniaturização quimérica do real, já presente em Bachelard (1992), que via a miniatura como a ima- gem ou expressão de uma representação simbólica e poética do espaço. Assim controlado pela imaginação, na metáfora da miniatura, o mundo desvenda-se uma ficção dominável e transfigurável. Tão maneável como os aparelhos tecnológicos também eles efectivamente miniaturizados.

O domínio sobre o espaço é, por sinal, uma das mais entusiasmantes aventuras da Modernidade. Numa análise às contradições culturais do capitalismo (1976), Daniel Bell sugere justamente que uma nova concep- ção do espaço e do movimento foi condição do apogeu do modernismo. O próprio conceito do real é já o da sucessão, e não mais o da fixação, de fra-

mes cénicos da nossa acção. O desejo de ignorar radicalmente a Tradição

está intimamente vinculado ao desejo de aparição da novidade, ainda que inscrita num movimento cíclico. A fé moderna na capacidade humana para mudar o mundo tem, aliás, na concepção do espaço um dos seus par- ticulares efeitos. Se, na Tradição, o mundo era uma cosmologia estranha, dominando o paroquialismo e a superstição relativamente às fronteiras do globo, na Modernidade, a ideia de matematização do real sujeitou a noção de mundo a uma concepção de totalidade cognoscível. Por conseguinte, sendo, pelo menos aparentemente dominável, o real estaria sujeito àquilo que Foucault julgava ser a própria essência da Modernidade: «o panop- tismo» (Miranda; 2003:79), presidindo-lhe um princípio de transparên- cia. Ora, só na assunção da transparência, da possibilidade de tudo

24Referimo-nos ao conceito de bigbrotherização vulgarizado pela ideia do livro “1984” de

George Orwell, em que o autor se refere a uma figura de poder, um “Grande Irmão”, metá- fora do Estado, que anuncia uma vigilância ininterrupta de todos os cidadãos.

25É curiosa a reflexão que faz Paul Virilio acerca desta sensação de finitude. Diz o autor que

«o sentimento de encerramento no mundo não pode senão desenvolver-se» e que «em breve, iremos sentir o fim do mundo. Não o fim do mundo apocalíptico, mas o mundo como finito.» (2000b:63)

26O GPS é um sistema de posicionamento geográfico que nos dá as coordenadas de um lugar

na Terra, segundo a latitude, a longitude e a altitude. A informação, enviada por satélites em sinal de rádio, permite, em última análise, localizar [“controlar” a localização] de pessoas, de coisas, enfim, da vida quotidiana. Para além do GPS poderíamos, no entanto, referir ainda outras tecnologias de controlo e de vigilância, específicas do universo Internet. As tecnolo- gias de controlo incluem, segundo Manuel Castells, «o uso de passwords, cookies e proces- sos de autenticação». As tecnologias de vigilância, por seu lado, «interceptam mensagens e colocam marcadores que permitem seguir os fluxos de comunicação a partir de um deter- minado computador e controlar a actividade da máquina dia e noite» (2004:204-205).

atravessar com o olhar, sem o obscurantismo que caracterizava os tempos pré-modernos, se valida a ideia de uma monitorização absoluta do espaço, uma espécie de bigbrotherização do real24.

Contudo, como dizíamos antes, os media e, de algum modo, todos os meios técnicos de informação em rede, não apenas tornaram possível esta aspiração moderna como também, transgredindo-a, se constituíram como agentes “ficcionadores” dos espaços monitorizados. Se, no sonho eufori- zante da Modernidade, os media davam corpo a este projecto de vigilân- cia que, melhor do que a punição, deveria reger a “sociedade disciplinar” caracterizada por Foucault em Vigiar e Punir (1975), na sociedade con- temporânea, os meios e as tecnologias de comunicação estão já para além do panoptismo idealizado, no século XVIII, pelo utilitarista Jeremy Ben- tham. Mas, se é verdade que não servem a vigilância, também o é que não servem mais o controlo que Deleuze estabeleceu como o princípio geral da sociedade. É que uma e outra formas de dominação, a vigilância e o controlo, assentam numa ideia de sociedade cujo espaço estaria ine- quivocamente delimitado. Por outras palavras, quer a vigilância quer o controlo como princípios regedores enclausuram a sociedade em frontei- ras, o mesmo é dizer, fecham-na numa ideia de “confinamento”. Contudo, a sociedade pós-mediática, ou pós-moderna, não é mais uma sociedade confinada a limites domináveis, vigiáveis ou controláveis, mesmo que ter- ritorialmente o sentimento seja o do estreitamento do mundo ou o da fini- tude do seu alcance25.

Ainda que aparentemente tenhamos hoje a sensação de total domínio dos acontecimentos graças aos sistemas de vídeo-vigilância, de GPS (Global Positioning System)26e demais sistemas de observação, a verdade é que a

totalidade da vida humana, tecnologicamente transviada, ultrapassa os pró- prios confins da tecnologia. Bragança de Miranda refere-se ao fracasso como

27Referimo-nos, por exemplo, a Roman Jakobson, para quem a linguagem tem, entre outras,

uma função referencial, a Karl Bühler (1979), linguista e psicólogo alemão, que se refere, no âmbito das funções da linguagem, à representação como uma característica por exce- lência da língua e a Ingedore Koch (2003), que, numa sistematização das três formas de conceber a linguagem humana, anota a ideia de representação (de “espelho”) do mundo e do pensamento como a mais antiga, a que ainda hoje alguns autores reconhecem vali- dade. Nesta medida, a função primeira da língua seria representar, graças a um carácter eminentemente instrumental. Numa obra em que toma por inspiração a linguística de Gustave Guillaume, é precisamente assim que André Joly se refere à linguagem, como «um instrumento privilegiado, se não exclusivo, da comunicação humana» (1987:7), sendo que a relação entre o universo referencial e o universo linguístico é antes de mais uma

relação de dizibilidade, ou seja, de representação.

28A Heidegger se deve a desmistificação do carácter instrumental da técnica. Em Die Frage

nach dem Tecknik, Heidegger explica que a essência da técnica não é técnica, isto é, maqui-

nal ou instrumental, justificando que embora correcta, a definição instrumental da técnica «não nos mostra ainda a sua essência.» Por isso, continua Heidegger, «temos que pergun- tar: que é o instrumental ele mesmo? A que é que pertence uma coisa assim enquanto um meio e um fim? Um meio é aquilo por que algo é efectuado e deste modo alcançado. Ao que tem como consequência um efeito chamamos causa. No entanto, causa não é somente aquilo por meio do qual é efectuado algo distinto. Também o fim segundo o qual se determina o modo dos meios vale como causa. Onde se perseguem fins, empregam-se meios; onde domina o instrumental, ali prevalece a condição de causa, a causalidade.» Sugerindo justamente que a técnica não tem uma função referencial, mas antes uma função reveladora do próprio Ser (Sein), Heidegger conclui, então, que «nesta perspectiva, a técnica não só remete ao homem como muito mais radicalmente ao ser na sua verdade.» (Heidegger, 1994:11)

29É como espaços inventados que entendemos, por exemplo, os “lugares” do ciberespaço. As

“janelas” do Messenger ou do Skype [programa de conversação, escrita e áudio equivalente ao Messenger da Microsoft], as salas de conversação (chat rooms), os próprios sites, as salas de conferência on-line são todos eles formulações do espaço inventadas pelos meios tecnológicos.

resultado desta tentativa de domínio total: «Por mais que o poder, tal como se estruturou na modernidade, procure vigiar todo o espaço, criando um espaço de segurança total, acabou por o fazer em fracasso» (1996). De facto, se tomássemos a tecnologia meramente como ferramenta representativa da realidade, cometeríamos o mesmo erro que os linguistas para quem a língua tem sobretudo uma função referencial.27Ora, compreender a tecnologia de

um ponto de vista estritamente instrumental não é senão um logro, porque é compreendê-la como um sistema de representações que ela não é. Mais do que apontar para um mundo que a antecede, a tecnologia funciona antes como engrenagem reveladora da própria realidade28. A tecnologia não faz

senão como a linguagem: inventa mundos, que é em certa medida o mesmo que dizer inventa espaços.29Na justa medida em que Bourdieu reconhece a

dimensão construtora da língua, somos, pois, arremessados para um enten- dimento da tecnologia que é o da indissociabilidade entre a sua própria lin- guagem e o mundo exterior na infinita construção de significados. Neste sentido, seria naturalmente redutor entender a tecnologia como Saussure entendeu a língua, enquanto sistema de funcionamento autopoiético. Pelo contrário, só na estreita relação com as realidades humana e circunstancial

30José Bragança de Miranda é, no contexto português, um dos autores que mais se refere

às múltiplas facetas da crise do moderno. Num texto de 2003 que citamos acima [“Crítica de uma certa ficcionalização do controlo”], por exemplo, refere-se à «crise dos meios de confinamento», à «crise dos modelos identitários», à «crise das teorias críticas que se baseavam num fechamento absoluto» e ainda à crise da «individuação racional moderna».

31Designação do primeiro capítulo da obra Naufrágio com Espectador (1990).

podem as tecnologias, sobretudo as da informação, operar, com a língua, no infindo processo que é o da significação. Longe, aliás, de ser meramente representativo, este processo não termina no simples jogo entre significante e significado, ou antes entre as máquinas (imagens da tecnologia) e o pen- samento. É, pois, nesta aproximação da tecnologia ao processo discursivo, por definição intersubjectivo, que ela é geradora de mundos livres, incon- troláveis e indomináveis, no fundo, ficções de um real à imagem e seme- lhança do qual já não é possível garantirmo-nos.

Talvez seja este carácter inventivo da técnica o que parece indicar uma «certa crise dos meios de confinamento» a que se vai assistindo (Miranda: 2003:81). A fragilidade dos modelos de dominação, reflectida no «colapso das tecnologias políticas ligadas à vigilância» (ibidem), exprime a falência do projecto de unidade, em mais uma das facetas da crise da moderni- dade30. Mas a esta fragilidade não escapa o perigo do descontrolo ou do “aci-

dente” (ibidem), ou, numa formulação cara a Hans Blumenberg, o perigo do naufrágio (1990). Sendo, na verdade, certo que o computador se anunciou como o mecanismo primaz de controlo, hoje é mais como dispositivo de des- controlo e dispersão que o encaramos. Multiplicador de ficções, maquina- dor de virtualidades, o computador é, por isso, embarcação para a deriva, para a inevitabilidade do naufrágio. A metaforologia de Blumenberg explica-se nas palavras do próprio autor: «Dois pressupostos determinam antes de mais a carga significativa da metafórica da navegação e do nau- frágio: primeiramente o mar, enquanto limite natural do espaço de empreendimentos humanos, e, por outro lado, a sua demonização, enquanto esfera do incalculável, da ausência de lei, da desorientação» (1990:22). Tomando a navegação como a violação das fronteiras31, Blu-

menberg empresta-nos a expressão apropriada para perceber o alcance de preceitos dos novos tempos, como o que se refere à “navegação na Inter- net”. Estar para além das fronteiras, transgredindo a autoridade das suas limitações, é algo para que os sistemas de computação nos predispuseram, aventando a possibilidade de não sermos mais seres circunscritos à invio- labilidade fronteiriça da terra. Falasse especificamente sobre a navegação cibernética e era precisamente para esta ideia que Blumenberg apontaria quando sugere que «em toda a navegação humana se encontra um momento de frivolidade, senão mesmo de blasfémia, que pode ser compa- rado com a infracção contra a inviolabilidade da terra…» (1990:26).

32Na introdução à tradução portuguesa de Naufrágio com Espectador, Bragança de Miranda

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