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A diferenciação do amicus curiae em relação ao assistente e ao perito O

CAPÍTULO 1 O A MICUS CURIAE E A GÊNESE DEMOCRÁTICA DO DIREITO

1.2 A problematização da natureza jurídica do amicus curiae

1.2.2 A diferenciação do amicus curiae em relação ao assistente e ao perito O

Dentre as figuras que, não sendo parte ou juiz da causa, podem intervir num processo judicial está o assistente. O instituto está tipificado pelo Código de Processo Civil nos artigos 50 a 55. O artigo 50 disciplina o conceito desta modalidade de intervenção de terceiros com a seguinte redação:

Art. 50. Pendendo uma causa entre duas ou mais pessoas, o terceiro, que tiver interesse jurídico em que a sentença seja favorável a uma delas, poderá intervir no processo para assisti-la.

A boa configuração e diferenciação do amicus curiae é importante porque, não só a doutrina, como por vezes a própria jurisprudência confunde o amigo da corte com outras intervenções típicas de terceiros. Basta ver que o próprio Superior Tribunal de Justiça – STJ já equiparou amicus curiae ao assistente:

O amicus curiae opina em favor de uma das partes, o que o torna um singular assistente, porque de seu parecer exsurge o êxito de uma das partes, por isso a lei o cognomina de assistente. É assistente secundum eventum litis. (STJ, REsp 737.073/RS, 1ª Turma, j. 06.12.2005, rel. Min. Luiz Fux, DJU 13.06.2006, p. 700)

Outra figura que comumente se confunde com o amicus curiae é o a figura do perito, na qualidade de auxiliar da justiça. Tal figura tem seu regime jurídico estabelecido também pelo Código de Processo Civil, que no art. 145 disciplina que ―quando a prova do fato depender de conhecimento técnico ou científico, o juiz será assistido por perito‖.

Em primeiro lugar, analisemos a visível diferença entre o perito e o amicus

curiae. Ora, ainda que os dois se prestem a fornecer conhecimentos técnicos e

científicos para indispensáveis para o melhor julgamento da causa, as suas semelhanças terminam aí. O perito é um profissional especialista na matéria sob judicie, nomeado pelo juiz para que o auxilie com elementos técnicos necessários ao melhor convencimento jurisdicional.

Já o amicus curiae é um ator voluntário, que tanto pode ser um indivíduo, quanto uma entidade associativa representativa de interesses coletivos. Os elementos que o amicus curiae pode fornecer ao julgador não se restringem a regras técnicas ou a especialidades profissionais bem delineadas, mas podem também dizer respeito a outros campos da experiência humana. O amigo da corte pode estar em juízo para apresentar as necessidades e os valores culturais da comunidade, ilustrar os projetos de bem-viver e as formas de ver o mundo de dada coletividade, bem como colaborar na antecipação dos riscos, da violência ou da exclusão que determinada sentença pode produzir. Em síntese, o amicus curiae pode aproximar o horizonte semântico do juiz do universo de sentidos da comunidade. Mas, o que mais importa registrar nesse trabalho é a diferença do

amicus curiae em relação ao assistente, porque é essa diferenciação que dará a

dimensão exata do papel desempenhado pelo amicus curiae enquanto instrumento de democratização do direito.

Como exposto no art. 50 do CPC o assistente é um terceiro interventor que tem interesse jurídico na demanda e, neste sentido, assiste à uma das partes, porque a vitória ou a derrota desta lhe afetará diretamente. O assistente, ao ser admitido no processo, se vincula ao destino que a parte que lhe aprouver receber da decisão judicial; o assistente chega mesmo a compor a relação processual e constará, formalmente, na sentença proferida. Em contraste, ressalta Cabral sobre o papel do amicus curiae na relação processual:

O amicus curiae, uma vez admitida sua manifestação, não se agrega à relação processual, porque seu interesse no litígio é decorrente do direito à participação no processo. Não há interesse em integrar a relação processual, vez que o titulo executivo que por ventura seja formado não incluirá o amigo da Corte, pelo que, neste particular, seu interesse é reflexo ou mediato. (CABRAL, 2004, 18)

Ora, essa distinção se dá porque o amigo da corte não possui interesse

jurídico no processo, ou seja, não está diretamente vinculado à decisão judicial. O que

motiva e anima a participação do amicus curiae é o exercício da cidadania, é a possibilidade de colaborar com a interpretação das normas jurídicas no sentido de garantir representatividade social e legitimidade democrática às decisões emanadas pelo Poder Judiciário. Neste sentido, explica Felipe Bauer Bronstrup:

Por outo lado, o interesse avalizador mantido pelo amicus curiae não se limita ao referido interesse jurídico. Como exposto em parágrafos anteriores, o objetivo principal deste instituto é contribuir de alguma forma para o melhor deslinde do julgamento, de modo a contribuir com uma decisão mais justa e melhor fundamentada. Assim, é forçoso concluir que, ao menos diretamente, não há qualquer interesse jurídico envolvido, já que a decisão não lhe afetará a esfera jurídica tão prontamente. Disso, conclui-se que o interesse de amicus transcende ao seu campo privado, defendendo um interesse difuso a toda a sociedade. (BRONSTRUP, 2012, 157)

O amicus curiae, da forma como o conceitualizo neste trabalho, está interessado na legalidade da legitimidade, ou seja, sua atuação se destina a possibilitar que, por meio de procedimentos institucionalizados, os consensos sociais formados na periferia do sistema socioeconômico, portanto pelos grupos sociais que estão distantes ou excluídos dos centros de formação pública da opinião e da vontade, terão lugar no estabelecimento dos consensos normativos que orientarão a prática jurisdicional. Assim, seu interesse não é o interesse jurídico, mas sim o interesse público e social. Comigo concordam os professores Cambi e Damasceno:

Portanto, o ―amigo da corte‖ não está vinculado ao interesse das partes, mas ao exercício da cidadania, isto é, o interesse social na preservação da ordem jurídica, na interpretação e aplicação judiciais justas das regras e princípios jurídicos, bem como na legitimação do exercício jurisdicional, capaz de gerar precedentes judiciais, em casos de grande impacto social. É, sob esse ângulo, que a intervenção ampla torna-se não apenas uma mera possibilidade viável, mas uma opção necessária, sob o prisma democrático. (CAMBI, DAMASCENO, 2011, 29)

Não sem razão, o professor Cabral aproximará a utilização do amicus

curiae, em nosso ordenamento jurídico pátrio, daquela figura do ideological plaintiff,

encontrada no direito estadunidense em processos coletivos. Para o jurista – opinião da qual compartilho – o amicus curiae possui um nexo ideológico e político com o processo, porque não está ali para defender esta ou aquela posição; seu comprometimento é com a justiça material que pode ser alcançada com a interpretação ou aplicação de uma norma jurídica, na medida em que esta inclua ou exclua as visões de mundo sustentadas pela comunidade que suportará, de forma reflexiva, os efeitos da decisão. Diz o autor:

O amicus curiae não precisa demonstrar interesse jurídico. Sua atuação decorre da compreensão do relevante interesse público na jurisdição e da busca de permitir a participação política por meio do processo. A importância de sua intervenção é política e seu interesse é ideológico, de exercer parcela de participação, manifestando-se nos autos. Situação semelhante ocorre com a legitimação do denominado ideological plaintiff na litigância coletiva das

class actions nos EUA, em que a parte não porta interesse jurídico, mas uma

conexão ideológica com um interesse da comunidade, o que representa uma forma de participação processual que é sustentada e incentivada por autores como Mario Cappelletti e Vicenzo Vigoritti. (CABRAL, 2004, 19)

Percebe-se que o que distingue, em essência, o amicus curiae das outras figuras jurídicas de intervenção de terceiros é justamente o interesse político, social e público da sua atuação, ao contrário do interesse jurídico relacionado com o assistente e o perito.

1.3 Definição da natureza jurídica da amicus curiae: instituto processual de matriz