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O poder simbólico do discurso jurídico hegemônico

CAPÍTULO 1 O A MICUS CURIAE E A GÊNESE DEMOCRÁTICA DO DIREITO

3.2 Da natureza simbólica do direito e do caráter burguês do sistema moderno do

3.2.2 O poder simbólico do discurso jurídico hegemônico

Por ter sido central à estratégia de ascensão burguesa, não é de se admirar que, ao longo do processo histórico, o direito tenha-se transformado, ele próprio, em um

direito burguês. Isso que dizer que o discurso jurídico ocidental foi sendo,

paulatinamente, lapidado à imagem e semelhança da classe burguesa: os consensos, os sentidos e as verdades que produziu são consensos, sentidos e verdades burguesas e não universais, ou seja, são consensos, sentidos e verdades parciais e não totais. As regras

de interpretação, os princípios e, mais importante, as consequências da aplicação do direito moderno tendem a corresponder às necessidades e aos interesses da classe social que, durante séculos, dedicou-se ao estudo e à formulação de um sistema de direito que atacasse a ordem estabelecida enquanto esta não fosse alinhada e que a mantivesse quando fosse oportuna e favorável. O historiador do direito Paolo Grossi compartilha de minha análise. No veemente texto A formação do jurista e a exigência de uma reflexão

epistemológica inovadora, o professor italiano irá afirmar:

O historiador tem, porém, o dever e a responsabilidade de acrescentar que aquilo que nos aparece como natural, ou seja, como conexo à natureza mesma do direito, é apenas o fruto de uma transformação que este sofreu em um tempo histórico e em um espaço geográfico bem delimitados. Para nos explicarmos melhor, é transformação que se verificou somente no ápice da idade moderna e na Europa continental. Aquele que pode nos parecer natural é todavia historicamente relativo; como se dizia mais acima, é nada mais do que o resultado de uma sagaz estratégia da classe burguesa, cônscia da relevância do direito para um exercício completo de poder e resolvida a controlá-lo.(GROSSI, 2006, 92)

Tal noção, de que o direito não é essencialmente burguês e de que tampouco sua racionalidade está naturalmente voltada para a satisfação dos interesses e das necessidades dessa classe social, é importante se queremos desvelar a verdade funcional do discurso jurídico, ou seja, quais são as finalidades a que se tem prestado. Tenho defendido a coincidência histórica entre racionalidade jurídica e interesses/necessidades burguesas, equilibrando-me na tênue linha que separa a percepção de ser o direito uma ferramenta nas mãos da classe hegemônica daquela que, paradoxalmente, prega que o direito é, por si só, um discurso da classe hegemônica. A diferença entre a primeira e a segunda percepção é que nesta o direito não passa de um discurso do poder constituído, cuja função será sempre a de trabalhar como instrumento regulatório e de opressão dos poderosos contra os oprimidos – aqui, ainda reside a ilusão metafísica de que o direito possuiria algum tipo de orientação espiritual em favor da opressão, ou seja, que a

verdade do direito é a coerção, a subjugação, o autoritarismo; enquanto que naquela

primeira percepção, o direito está com sua faceta regulatória hipertrofiada, mas ainda assim é potencialmente capaz de cerrar fileiras na permanente batalha pela emancipação humana, justamente porque, enquanto fenômeno humano, podemos interpretá-lo e a ele dedicarmos o sentido que quisermos.

Contudo, se venho afirmando que o direito tem servido à regulação muito mais do que à emancipação, e que tal diagnóstico se deve ao seu alinhamento com os interesses burgueses, tentarei explicar mais detalhadamente como se dá a relação entre

interesses hegemônicos e racionalidade discursiva socialmente compartilhada.

Novamente apoiado em Marx e Engels, por terem eles apreendido o mecanismo reflexivo entre a racionalidade do discurso hegemônico num período histórico singularmente identificado e a classe hegemônica do mesmo período. Em conhecida síntese, afirmam:

As idéias da classe dominante são, em todas as épocas, as idéias dominantes, ou seja, a classe que é o poder material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, o seu poder espiritual dominante. [...] As idéias dominantes não são mais do que a expressão ideal [ideell] das relações materiais dominantes, as relações materiais dominantes concebidas como idéias; portanto, das relações que precisamente tornam dominante uma classe, portanto as idéias de seu domínio. (ENGELS, MARX, 2009, 67)

Ora, o direito, essa construção racional de determinado discurso de poder, capaz de regular, organizar, normatizar e mesmo normalizar a sociedade, de forma prática, ao redor de preceitos, mandamentos e regras é, portanto, um sistema simbólico construído em atenção aos interesses das idéias da classe dominante.

Contudo, não devemos aqui repetir o erro da teologia e de inúmeras tradições filosóficas, a exemplo do idealismo, assumindo posição ―escolástica‖ sobre o tema, como diria Marx. Não devemos conceber as atividades intelectuais, do pensamento, em oposição às atividades práticas, objetivas. O ser é um só, compõe-se em constante dinâmica dialética entre ação e pensamento; e entre esses e o conjunto das relações sociais que o cerca. Da mesma forma se comporta o mundo social: os sistemas, estruturas, instituições e institutos pensados e realizados pelos seres humanos advêm de uma prática que se coloca em razão da realidade circundante.

Nas célebres Teses sobre Feuerbach, K. Marx critica o materialismo que o precedeu. A divergência do pensador parte da denúncia de uma lacuna ontológica: o materialismo antigo ignora a objetividade social, sua construção e obstinada atualização realizada pela atividade sensível dos seres humanos. Nessa estrutura de pensamento, a realidade é exterior e contraposta ao sujeito que a mentaliza, não havendo qualquer

outro vínculo entre subjetividade e objetividade, permanecendo ambas estanques em suas próprias esferas. Marx afirma na II Tese:

O problema se ao pensamento humano corresponde uma verdade objetiva não é um problema da teoria, e sim um problema prático. É na prática que o homem tem que demonstrar a verdade, isto é, a realidade e a força, o caráter terreno de seu pensamento. O debate sobre a realidade ou a irrealidade de um pensamento isolado da prática é um problema puramente escolástico. (MARX, 1977, 118-120)

Assim, o conceito de sistema simbólico, mencionado mais acima, é utilizado justamente para afastar qualquer posicionamento escolástico sobre a relação entre classe objetivamente dominante e racionalidade subjetivamente dominante. Aqui, parto da definição de Pierre Bourdieu: ―sistemas simbólicos‖ – tal qual a arte, a religião e a língua – são ―instrumentos de conhecimento e comunicação‖ que gozam do poder

simbólico de estruturar, influenciar e, de sobremaneira, determinar aspectos e elementos

da realidade do mundo social porque são eles mesmos, os sistemas simbólicos, ―estruturados‖; são estruturas simultaneamente estruturantes e estruturadas que exercem poder simbólico (BOURDIEU, 2010, 7-9):

O poder simbólico é um poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnoseológica: o sentido imediato do mundo (e, em particular, do mundo social) supõe aquilo a que Durkheim chama o

conformismo lógico, quer dizer, ‗uma concepção homogénea do tempo, do

espaço, do número, da causa, que torna possível a concordância entre as inteligências. Durkheim [...] tem o mérito de designar explicitamente a

função social (no sentido do estruturo-funcionalismo) do simbolismo,

autêntica função política que não se reduz à função de comunicação dos estruturalistas. Os símbolos são instrumentos por excelência da ‗integração social‘: enquanto instrumentos de conhecimento e de comunicação [...], eles tornam possível o consensus acerca do sentido do mundo social que contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social: a integração ‗lógica‘ é a condição da integração ―moral‖.(BOURDIEU, 2010, 10)

A classe dominante é capaz de impor a sua visão particular do mundo às outras classes sociais como se fosse a visão do mundo de toda a sociedade. A dominação ideológica, instituída pelos sistemas simbólicos e objetivada pelo poder

simbólico e pela violência simbólica que este gera, presta essencial função política para

classe dominante – ―assegurando uma comunicação imediata entre todos os seus membros e distinguindo-os das outras classes‖ – e à integração aparente do complexo social no seu conjunto, através da dissimulação das contradições e distinções internas da sociedade. A cultura hegemônica força as outras culturas, tratadas como subculturas, a definirem-se em relação à distância de que se encontram daquela cultura. Como resultado, tem-se o mascaramento das próprias relações de dominação que conformam a sociedade, dando a ordem estabelecida a aparência legítima de natural (ortodoxia). (BOURDIEU, 2010, 10). Ou seja, as relações de força implícitas nos sistemas simbólicos, em regra, apenas se manifestação na forma irreconhecível de relações de sentido, conhecimento, consenso, ou mesmo como verdades. (BOURDIEU, 2010, 14).

Esse capital simbólico é produzido e acumulado pela classe hegemônica, tanto quanto o é o capital econômico. Aquele depende, na forma e no conteúdo, deste e é acionado pelos agentes ou pelas instituições envolvidos nas relações de poder, enquanto instrumento ―estruturado e estruturante de comunicação e de conhecimento‖, para a imposição ou para a legitimação da dominação, reforçando assim com sua própria força às relações de força que sedimentam. (BOURDIEU, 2010,11) O capital econômico acumulado pela classe economicamente hegemônica fornece-lhe os meios materiais e culturais – de produção, difusão e reprodução – necessários à imposição de sua espiritualidade, de seu modo de vida – seus princípios, suas virtudes, seus vícios –, de sua arte, de sua língua, de sua religião; e, com maior centralidade nos termos deste trabalho, de seu direito.

Vê-se que a tendência para universalizar o seu próprio estilo de vida, vivido e largamente reconhecido como exemplar, o qual é um dos efeitos do etnocentrismo dos dominantes, fundamentador da crença na universalidade do direito, está também na origem da ideologia que tende a fazer do direito um instrumento de transformação das relações sociais e de que as análises precedentes permitem compreender que ela encontre a aparência de um fundamento na realidade: não é em qualquer região do espaço social que emergem os princípios práticos ou as reivindicações éticas submetidas pelos juristas à formalização e à generalização.(BOURDIEU, 2010, 247)

Percebe-se então que à luta de classes econômica travada objetivamente na sociedade corresponde esta outra, muito mais sorrateira e silenciosa, que é necessária e inevitavelmente seu reflexo subjetivado: há uma luta de classes simbólica entre os diferentes grupos sociais na busca também por hegemonia ideológica. Sua arena é a

linguagem e o prêmio do vencedor é ter seus consensos e seus sentidos considerados como Verdades pelo resto da comunidade ou, no caso do direito, ver os seus princípios, interesses, necessidades, valores etc. transformados em regras jurídicas de regulação social, de correição normativa e de legitimação política.

Mas as complexas relações de vassalagem e suserania do mundo da vida que se manifestam pela linguagem não podem ser tomadas de forma simplista. Como bem identificou o sociólogo lusitano Boaventura de Sousa Santos, há uma permanente tensão entre regulação e emancipação inerente ao paradigma da racionalidade moderna. Ainda que o capital econômico seja o fator preponderante na construção da hegemonia ideológica, não é o único fator. Pensar assim poderia nos levar a acreditar que a cultura social que se tem pertence unicamente à classe dominante e que não haveria possibilidades de mudá-la, ou mesmo influenciá-la, sem ter primeiramente a benesse do capital econômico o que, sabemos, não é verdade. Ser-nos-iam, portanto, incompreensíveis fenômenos culturais típicos das classes populares, como o samba e mesmo o funk dos morros e das favelas cariocas, que conquistam parcelas sensivelmente expressivas das classes e grupos hegemônicos, ou mesmo a construção e o aperfeiçoamento de institutos e instituições jurídicas, como a regulação da jornada de trabalho, o próprio direito do trabalho como um todo ou os importantes avanços na teoria e na prática de proteção aos direitos fundamentais positivados pelas cartas constitucionais ao redor do mundo, além de toda a sistemática internacional de proteção e de defesa dos direitos humanos.

O que se observa é, na realidade, aquela constante luta simbólica (ideológica) entre as classes, com supremacia da classe dominante, mas conquistas importantes das classes e grupos sociais dominados. O direito, assim como os outros sistemas simbólicos, é um discurso que está em constante disputa social. Ao ser usado com maestria pela classe burguesa como ferramenta de construção de hegemonia, desvelou, historicamente, suas poderosas faces, tanto a faceta regulatória, quanto a faceta emancipatória, abrindo-se assim um flanco por onde outros grupos sócias podem implementar lutas e disputas por sentidos, princípios, regras, em síntese, verdades consensuadas que atendam interesses e necessidades favoráveis à construção de uma sociedade verdadeiramente de sujeitos livres e iguais. Esse caráter de disputa e de negociação pelo sentido do direito foi bem compreendido, além de Pierre Bourdieu, pelo jurista mexicano Óscar Correas:

Em nossa concepção, o direito é um discurso de poder que -serve para exercê-lo. Mas como o poder é um bem partilhado, ainda que desigualmente, entre os distintos grupos sociais, o direito é um discurso que ‗reflete‘ – que tem como causa – a correlação de forças entre os grupos. Neste sentido o direito é o resultado da luta entre classes e setores sociais. Não é o produto – efeito – da vontade da classe dominante, como se pode pensar a partir de uma concepção um tanto ingênua sobre o exercício do poder. Como vimos em outro lugar, o reconhecimento do direito coloca limites ao poder. Quem dita o direito não tem na verdade todo o poder social; não pode impor totalmente sua vontade; tem que negociar politicamente com outros grupos sociais, e o direito é o resultado desta negociação. (CORREAS, 1996, 110)

Contudo, enquanto classe hegemônica, a burguesia foi capaz de mascarar, dissimular e universalizar qualquer avanço social como se seu fosse e capitalizá-lo para si. Como é ela quem cede legitimidade – ao menos de forma aparente e nos momentos regulares do desenvolvimento social, ou seja, nos momentos não revolucionários, de não ruptura – aos discursos, a classe dominante age como ―naturalizadora‖ e ―normalizadora‖ dos processos sociais, dando-lhes, em última instância, a sua marca. Esse mecanismo, de forma cíclica e reflexiva, acaba também por reforçar a sua própria legitimidade social em relação às outras parcelas da sociedade.

As relações entre ser e dever-ser são dialéticas. Forma e conteúdo constroem-se histórica e reciprocamente na dinâmica do real. O direito (e também os outros sistemas simbólicos) é essa forma híbrida de objetividade e subjetividade, pois enquanto discurso – estruturante e estruturado – é capaz de atuar de forma prática e por sua própria força produzir efeitos, criando e conformando, ao mesmo tempo em que é criado e conformado, o mundo social. (BOURDIEU, 2010, 237)

A burguesia beneficiou-se dessa característica, desse poder simbólico, para ascender e por fim tornar-se a classe hegemônica. Contudo, conforme já dito, elaborou racionalidades distintas, a variar em ralação a função política que necessitava ver cumprida pelo direito. O jusnaturalismo racionalista foi a racionalidade jurídica formulada e divulgada no longo conflito social travado por aquela classe contra a aristocracia-feudal. Até o total florescimento da Modernidade, será tal racionalidade a estratégia ideológica revolucionária burguesa. Para suportar meu argumento de que o direito transitou entre duas racionalidades ao longo da modernidade mais uma vez socorro-me das agudas observações do professor Lyra Filho:

A contestação burguesa da ordem aristocrático-feudal, internamente, assim como do sistema internacional montado, recorreu, então, à forma do direito natural, que denominamos antropológico, isto é, do homem, que extraía os princípios supremos de sua própria razão, de sua inteligência. Esses princípios, e de novo não por mera coincidência, eram, evidentemente, os que favoreciam as posições e reivindicações da classe em ascensão – a burguesia – a das nações em que capitalismo e protestantismo davam as mãos para a conquista do seu ―lugar ao sol‖. (LYRA FILHO, 2006, 48)

Mas, tão logo a classe burguesa conquiste a supremacia social, abandonará aquela racionalidade e passará a usar a força do poder simbólico do direito transviado em outra racionalidade, agora não mais revolucionária e emancipatória, e sim reacionária e regulatória. A nova racionalidade será o positivismo jurídico. Durante o desenrolar de seu processo histórico, sob a regência do programa do Esclarecimento, a modernidade irá configurar, progressivamente, um mito sacrificial. De forma paradoxal, a tentativa de racionalizar por completo o mundo da vida resultará na construção de um mito pretensamente racionalista para acobertar toda a irracionalidade da ordem moderna. Especialmente no que diz respeito a nós, povos latino-americanos que pelos europeus foram colonizados, o discurso pelo fim da ―minoridade‖, da opressão e da selvageria encobertará atrocidades, genocídios e extermínios em massa, além do descomunal saque de nossas riquezas naturais e culturais. No próximo tópico, tentarei esclarecer ao menos uma centelha do que foi encoberto pelas luzes do Esclarecimento e situar a parcela de responsabilidade do direito nos crimes cometidos em favor do

progresso e da razão. Meu objetivo é desvelar ao leitor as vicissitudes e as mazelas

geradas pela ordem iníqua e pelo direito injusto que acabaram implodindo o pilar da emancipação – também presente enquanto potência nos principais discursos e sistemas simbólicos modernos – em favor da regulação e da racionalidade instrumental que acabou por fetichizar e coisificar os seres humanos e as suas criações.

3.3 Crítica ao economicismo e à mecânica histórico-teleológica implícitas na análise