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A diferenciação entre intertextualidade e interdiscursividade

2. O texto como objeto da significação e do sentido

2.4. A diferenciação entre intertextualidade e interdiscursividade

Frequentemente, é atribuída à obra da autora o termo intertextualidade. Devido ao diálogo que o discurso da autora realiza com outras obras é imprescindível não se ater ao aspecto de interdiscursividade e intertextualidade.

O diálogo que Marina Colasanti instaura entre passado e presente, entre o feminino e o masculino, entre o oprimido e o opressor, entre o mundo natural e o mundo ideal, o imaginário, resulta no embate de muitas vozes. A polifonia nas narrativas da autora se depreende muito mais de vozes na interdiscursividade do que na intertextualidade.

Em geral, o diálogo que os contos da autora mantêm com outros textos vem sendo tratado como diálogo intertextual. Mas a partir da terminologia de Bakhtin, observa-se que Marina Colasanti, predominantemente, opera pela interdiscursividade.

Fiorin (2006, p. 51-2), argumenta em torno do termo intertextualidade apontando o equívoco com que tem sido tomado esse termo. De acordo com o autor, a palavra “intertextualidade” nem aparece na obra de Bakhtin; este, fala em relações entre textos. Fiorin argumenta que foi Júlia Kristeva que utilizou esse termo pela primeira vez, na França, ao apresentar Bakhtin em publicação na revista Critique, em 1967.

De acordo com Fiorin, Kristeva diz que “[...] para o filósofo russo, o discurso literário não é um ponto, um sentido fixo, mas um cruzamento de superfíceis textuais, um diálogo de várias escrituras, um cruzamento de citações” (2006, p.51).

A partir de tal definição a semioticista, segundo Fiorin, passa a chamar “texto” o que Bakhtin trata por “enunciado”. E é a partir disso que se dá o equívoco, a idéia de dialogismo

bakhtiniana passa a ser tratada por intertextualidade. E com a difusão deste termo por Roland Barthes o termo intertextualidade toma o lugar do dialogismo.

Fiorin propõe a distinção entre texto e enunciado para Bakhtin. Segundo Fiorin, “enunciado”,

[...] é um todo de sentido, marcado pelo acabamento, dado pela possibilidade de admitir uma réplica. Ele tem uma natureza dialógica. O enunciado é uma posição assumida por um enunciador, é um sentido. O texto é a manifestação do enunciado, é uma realidade imediata, dotada de materialidade, que advém do fato de ser um conjunto de signos (2006, p. 52). O enunciado representa uma posição do seu enunciador, representa o sentido desta posição, a qual pode ser representada pelo tom da voz do enunciador, pela escolha das palavras por esse enunciador, enfim o enunciado não é manifestado apenas verbalmente. Já o texto é a materialização, ou seja, a manifestação do enunciado.

Portanto, para Fiorin, assim como há distinção entre discurso e texto, pode-se dizer que há relações dialógicas entre enunciados constituindo a interdiscursividade, e relações dialógicas entre textos constituindo a intertextualidade.

Fiorin (2006, p. 52), chama a atenção para a necessidade de se distinguir interdiscursividade de intertextualidade: “[...] devem-se chamar intertextualidade apenas as relações dialógicas materializadas em textos. [...] quando um texto não mostra, no seu fio, o discurso do outro, não há intertextualidade, mas há interdiscursividade”.

De acordo com Fiorin em todo discurso intertextual há interdiscursividade, mas não é em todo discurso interdiscursivo que se depara com a intertextualidade.

No conto “Além do Bastidor” de M. Colasanti, por exemplo, lê-se uma réplica aos enunciados míticos cristãos, às ideologias disseminadas em detrimento desses enunciados que se consagraram ao longo do tempo. Mas não se encontra no fio do discurso de “Além do bastidor” o discurso de um “outro” especificamente. O mesmo ocorre com os demais contos do corpus. Mesmo no conto “Entre a espada e a rosa” em que há um diálogo com uma infinidade de textos, tal diálogo se dá a partir da evidência de motivos, nos termos de Propp.

Em síntese, na obra de Marina Colasanti parece que ocorre com maior freqüência a interdiscursividade.

Segundo Fiorin, para que haja intertextualidade é preciso que o texto abrigue duas materialidades lingüísticas de dois textos e que suas existências sejam independentes uma da outra (2006, p.53).

Quando Chico Buarque de Holanda (1989) canta: “Quando nasci, veio um anjo safado O chato do querubim

E decretou que eu tava predestinado A ser errado assim

Já de saída a minha estrada entortou Mas vou até o fim”.;

e quando Adélia Prado (1986) escreve:

“Quando nasci um anjo esbelto Desses que tocam trombeta, anunciou: Vai carregar bandeira.

Carga muito pesada pra mulher Esta espécie ainda envergonhada”.,

ambos os autores estão estilizando, a partir dos seus textos, o poema de “Sete Faces” de Carlos Drummond de Andrade:

“Quando nasci, um anjo torto Desses que vivem na sombra

disse: Vai, Carlos, ser gauche na vida”. (1979, p.70).

Os textos de Buarque e de Adélia Prado estilizam o texto de Drummond a partir da palavra “anjo” que se apresenta como um guardião torto, safado e marcado.

Os textos de Buarque e de Adélia Prado instauram intertextualidade com o texto de Drummond, visto que em seus textos ocorre o encontro de duas materializações de linguagem: O texto de Drummond e os seus próprios textos. E os três textos têm existência independentemente um do outro.

Nos contos da autora analisados neste trabalho, o que se observa é o diálogo interdiscursivo e não o intertextual. E esta estratégia discursiva será mostrada a partir da análise dos contos na página 77, os quais evidenciarão um cruzamento, um encontro e/ou

confronto de discursos, ao invés de citação textual no fio discursivo das narrativas de Marina Colasanti.

A questão da interdiscursividade nas narrativas da autora é ponto central, tanto quanto as referências clássicas e motivos oriundos das narrativas orais, visto que o diálogo interdiscursivo se instaura, a partir das vozes do presente concebendo e/ou subvertendo as vozes da memória cultural. E é justamente devido a essa centralidade temática na obra da autora que, antes de analisarmos os contos selecionados para este trabalho, optamos por uma volta ao passado, a fim de descobrir tesouros no acervo cultural da humanidade: nas narrativas míticas, orais e nos contos de fadas.

A fortuna crítica vem classificando os contos que compõem o corpus deste trabalho como contos de fadas. E ainda que sejam, propomos verificar a origem deste subgênero, a fim de nos familiarizarmos com as suas características, bem como entendê-lo numa analogia com os contos de Marina Colasanti e, assim, tomar um posicionamento, ou seja, verificarmos até que ponto os contos da autora são realmente contos de fadas.