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A função social e ideológica dos contos de fadas

3. A origem dos contos de fadas

3.5. A função social e ideológica dos contos de fadas

Marina Warner em seu livro Da fera à Loira (1999) realiza uma viagem no tempo e no espaço em torno da memória cultural, a fim de evidenciar elementos dos contos de fadas nas suas fontes primevas, puxando os múltiplos fios dessa tessitura caracterizada pela magia, pelo onírico, pelo fantástico e que, para a autora, é a manifestação da metamorfose. Warner mostra a inesgotável fonte de motivos que emigram da memória coletiva para todo o mundo e que, graças à insistência do discurso feminino em se fazer ouvir, ainda estão presentes não só nos contos de fadas contemporâneos, mas em todas as manifestações de arte de todos os tempos.

A autora desvenda todo o percurso do tradicional Final Feliz dos contos de fadas. Mostra como o sapatinho de cristal da Cinderela associa-se ao pé membranoso da figura lendária da Rainha de Sabá, a mesma que outrora configurara como a Sibila (Melusina), esta que fora tida como vidente, feiticeira, mulher serpente, mas também profetisa, pois de acordo com relatos lendários previra o nascimento e a morte do Cristo na cruz, tanto que fora considerada por Santo Agostinho (1999, p. 98) como cidadã da cidade de Deus e ele até mencionou as suas profecias com aprovação. Esta figura lendária é também paradoxal, visto que é associada também à negatividade da língua da mulher em relação à sedução da fala feminina, associada à figura da Eva mítica. A autora explicita a perseguição ao discurso feminino devido ao perigo que este representava para as sociedades que foram alimentadas e contaminadas pelo paradoxo da figura lendária das Sibilas. Diz a autora:

Por volta do século XVI e da Era da grande caça às bruxas, o pavor de mulheres velhas e proféticas atingiu também as Sibilas; foram denunciadas como porta-vozes do Demônio, mesmo se o que haviam dito fosse verdadeiro.(WARNER, 1999, p. 102).

De acordo com o exposto pela autora, o fio discursivo que nos apresentou a Mamãe Gansa de Perrault, que fora puxado do fio discursivo das velhas contadoras de histórias, são fios da tessitura da figura lendária Sibilina.

Segundo Warner (p.95), a Sibila é mencionada por Heráclito, por volta de 500 a .C como criatura com poder de proferir palavras sombrias que atravessava mil anos com a sua voz. Posteriormente, Pausânias ao descrever Delfos e arredores, cita a monstruosidade da vidente. Esta mulher oracular, mulher serpente “[...] mais tarde influenciou o elenco dos contos de fadas, formado por rainhas-fadas, esposas demoníacas, feiticeiras malvadas e madrinhas amaldiçoadoras”. (p.95). E Warner cita a referência depreciativa que Platão faz no Górgias ao tipo de conto – mythos grãos, o conto das velhas que era contado às crianças para diverti-las ou para assustá-las. “Possivelmente, trata-se da mais remota referência ao gênero”. (p.39).

A autora mostra como a perseguição ao discurso feminino era evidente tanto na escrita como em xilogravuras da época. Warner chama a atenção para o fato de que a língua associa-se ao pecado da luxúria, pois se observa a sedução da fala na referência à Eva e à serpente. “Nas representações medievais, o Demônio tentador às vezes espelha o próprio rosto de Eva”. (1999, p. 74).

São significativos os argumentos que Marina Warner apresenta em torno da perseguição e até da proibição do discurso feminino ao longo da História da humanidade. Cita, inclusive, o clichê referente ao sexo feminino “O silêncio vale ouro”, que fora prenunciado na Política de Aristóteles como o silêncio sendo a glória para a mulher, mas não da mesma maneira para o homem. E a autora prossegue as suas citações no domínio das Escrituras.

A primeira epístola a Timóteo, atribuída a São Paulo, contém a famosa injunção: ‘a mulher aprenda, em silêncio, com toda a sujeição’ (2,11). A carta prossegue: ‘Não permita à mulher que ensine, nem que tenha domínio sobre o homem, mas esteja em silêncio’ (2,12). O autor dá suas razões passando, de modo caracteristicamente paulino, a uma exegese alegórica do pecado original: afirma que Adão foi criado antes para simbolizar sua precedência em relação à Eva, e que esta, o modelo de todas as mulheres que a sucederam, pecou pela fala, com as palavras tentando Adão a comer do fruto. Portanto o discurso deve ser negado a suas filhas. O preconceito contra a fala feminina é legitimado pelas Escrituras.

A espístola relaciona mais adiante os vários tipos de discurso impróprio, aos quais as mulheres se abandonam com tanta freqüência, e proscreve pelo menos cinco deles: acima de tudo Timóteo deve rejeitar ‘as fábulas ridículas e os contos de velhas senhoras’ (4,7). Até mesmo as viúvas mais jovens, alerta Paulo, são ‘não somente ociosas, mas também chocarreiras e curiosas, falando sobre o que não convém’ (5,13). Paulo também teme os mexericos, e observa que o comportamento de viúvas jovens desperta boatos, a menos que voltem a se casar. Em contraste, exorta seu discípulo a ser ‘modelo dos fiéis na palavra, no modo de falar com o próximo...’ (4,12) e, final, a evitar ‘as tagarelices vãs e profanas’ (6,20). (1999, p. 56).

De acordo com Warner (p. 22), o preconceito contra as mulheres, principalmente contra as velhas e seu discurso, inscrevem-se na mudança do caráter dos contos de fadas. A idéia negativa do mexerico foi sofrendo transformações à medida que também foi modificando a imagem da Sibila ao lado do culto de Santa Ana, de forma que a imagem da velha sentada ao pé da fogueira passasse a revelar sabedoria caseira. “No início da Idade

Média, houvera uma comparativa tolerância com relação à comunicação feminina [...]”. (p.57).

É importante salientar que houve combatentes dessas perseguições, pois de acordo com Warner, as escritoras de contos de fadas lutaram contra os preconceitos da época manifestados na conduta dos membros da sociedade, tanto que na segunda metade do século XVII, os salões sofisticados em que foram escritos os contos “Cinderela”, “O Pássaro Azul”, “A Princesinha sabida” e “A Bela Adormecida”, tornaram ambientes de fomentação [d] “a arte da conversação como uma das habilidades fundamentais da civilização”. (p. 76).

Para Warner, “foi nos séculos XVII e XVIII que os escritores de contos de fadas franceses inventaram o modelo conhecido hoje, e a partir dele cortaram dezenas de diferentes variações inventivas”. (1999, p. 312). O mesmo se observa em Coelho (1991), para a autora a transformação do maravilhoso feérico com essência primitiva dotado de verdade humana em contos maravilhosos infantis , evidenciou-se a partir de Charles Perrault, na França do século XVII. (p. 65).

É importante argumentar que, a princípio, Perrault se ocupa de relatos maravilhosos, da redescoberta e recriação do maravilhoso popular sem o intuito de escrever para crianças. De acordo com Coelho (1991, p.66), a sua preocupação estava voltada para a tarefa de trazer ao cenário literário, a literatura popular como autenticamente francesa e moderna, conferindo- lhe identificações de valores entre a criação dos modernos e dos antigos, os gregos e os romanos, considerados pela cultura oficial como superiores. Também com a publicação de Os Desejos Ridículos em versos burlescos, Perrault procurou provar o que atestava um amigo seu, D’ Aubignac a respeito da Ilíada, que as antigas epopéias não passavam de vários contos populares tradicionais, de diferentes autores, mas que seguiam um determinado fio narrativo. Somente com a terceira adaptação de A Pele de Asno se configura o interesse por uma literatura para crianças. (p.67).

Outra preocupação de Perrault era com as causas femininas que tinha como uma das líderes a sua sobrinha, Mlle Héritier. A exemplo desta preocupação na sua escrita, Warner (1999, p. 300) chama a atenção para “o desenlace prático e sanguinário de “Barba azul” ao lado de outros finais românticos dos contos de Mamãe Gansa”. De acordo com a autora, Perrault admitia que contos de fadas era literatura de mulheres e crianças, mas foi o primeiro homem a escrevê-los, e não deixou de tratar das causas femininas em seus contos manifestando-se contra casamentos arranjados da época, e debateu às claras contra a impossibilidade da mulher administrar sua riqueza. (p.313).

Warner citando Perrault em defesa do romantismo nos contos de fadas mostra a veemência do escritor em relação ao amor no casamento:

Não duvido nem um pouco de que várias pessoas das mais altas classes achem estranho que eu julgue uma felicidade tão grande gozar de amizade conjugal – assim pensam aqueles que ordinariamente consideram o casamento somente um caminho para se estabelecerem na sociedade, e que acreditam que, se é preciso tomar uma esposa com o fim de ter filhos, é preciso escolher uma amante com o fim de ter prazer. (PERRAULT apud WARNER, 1999, p.313).

Em relação às causas femininas da época de Perrault, faz-se necessário citar as escritoras e amigas de L’ Héritier, como Henriette Julie de Murat e Marie-Catherine d’Aulnoy, contemporâneas como La Force e Bernard que, segundo Warner (p.312-13), lutaram contra a imagem negativa da mulher difundida por concepções cristãs e cobraram mudanças nas relações de casamentos, criticando o costume de casar meninas em idade precoce com homens desconhecidos.

Em meados do século XVIII, já se evidenciava a domesticação dos contos de fadas para o público infantil conforme observa Warner (p.268). E saltando para o século XIX, os Irmãos Grimm se voltam para as histórias populares com o objetivo de escrever para crianças. Segundo Warner,

[...] revisaram a coleção The Kinder-und Hausmarchen, redigindo sucessivos rascunhos após a primeira edição de 1812 –Wilhelm, em particular, impregnando a nova edição de seu fervor católico, carregando

nas tintas morais do enredo, distribuindo castigos aos maus e recompensas aos justos, com o fim de amoldar-se aos valores cristãos e sociais dominantes. (p. 243).

De acordo com a autora, “noções de como as moças deviam se comportar também influenciaram a seleção dos editores” e os Grimm, de uma edição para outra foram moldando as suas heroínas de acordo com os princípios de educação privilegiados. Para Warner a subversão a esses modelos só ocorreu nas décadas de 70 e 80 a partir de pedagogos com concepções diferentes em relação à performance feminina. (1999, p.316).

E a intenção didática, nos contos de fadas, intensificou-se cada vez mais no século XIX, conforme afirma Warner. Os Grimm abriram o caminho a partir da reedição e reformulação de seguidas edições dos seus contos familiares numa melhoria da mensagem. (p.330).

Segundo Coelho (1991, p.80-1), a partir do racionalismo cientificista o maravilhoso sobrenatural dos contos de fadas perdeu espaço e passou a ser rejeitado pelas diretrizes do Ensino vigente. E o maravilhoso dos contos de fadas cedeu lugar ao maravilhoso do fantástico absurdo ou do nonsense evidenciados em obras como Alice no País das Maravilhas e Pinóquio. Este último, segundo a autora, é “um excelente e alegre manual de conduta para os pequenos leitores da sociedade progressista em ascensão”. (p.82).

De acordo com o exposto, vê-se que há inúmeras especulações em torno da origem dos contos de fadas e, conforme argumenta Marina Warner,

A origem do conto de fadas em si constitui um conto de fadas, e a procura pela natureza da narradora, pela personagem da Mamãe gansa, assume o caráter de uma aventura de contos de fadas. A imagem da santa Ana, a boa e sábia avó, exerceu uma influência benéfica sobre as figuras relacionadas às mulheres com conhecimentos ocultos ou mesmo proibidos. Mas, no fundo do baú de histórias do passado europeu, esconde-se a rainha de Sabá, uma figura lendária composta de fantasia e escritura, seriedade e comédia; ela mistura a madrinha encantada com o bobo da corte, a feiticeira com a huri, a curandeira com a bruxa, a Sibila com a avozinha, e sobrepõe-se de maneira significativa à proverbial narradora de histórias da tradição posterior dos contos infantis. (1999, p. 125).

De posse de todo esse acervo cultural, constata-se que os contos de fadas foram utilizados não “apenas” como proposição de distração para adultos; de estratégias para se colocar a criança em contato com as adversidades da vida e da natureza, como rituais de passagem e/ou de aprendizagem e de diversão infantil. Também foram manifestações da sabedoria popular, da arte popular conforme tomou partido Perrault, instrumentos de resistência à propagação da ideologia cristã, burguesa e familista, bem como da perpetuação da ideologia patriarcal nos séculos XVII e XIX, conforme argumenta Mariza B.T. Mendes (2000, p. 143). E atentando para estas constatações, é importante refletir ao lado de M. Foucault ao afirmar que:

O exercício do poder consiste em ‘conduzir condutas’ e em ordenar a probabilidade. O poder, no fundo, é menos da ordem do afrontamento entre dois adversários, ou do vínculo de um com relação ao outro, do que da ordem do ‘governo’. Devemos deixar para este termo a significação bastante ampla que tinha no século XVI. Ele não se referia apenas às estruturas políticas e à gestão dos Estados; mas designava a maneira de dirigir a conduta dos indivíduos ou dos grupos: governo das crianças, das almas, das comunidades, das famílias, dos doentes. Ele não recobria apenas formas instituídas e legítimas de sujeição política ou econômica; mas modos de ação mais ou menos refletidos e calculados, porém todos destinados a agir sobre as possibilidades de ação dos outros indivíduos. Governar, neste sentido, é estruturar o eventual campo de ação dos outros. (1995, p.244)

A partir da leitura da escrita de Marina Colasanti, percebe-se que a autora não se vale da estrutura do conto de fadas com intuito didático ou com partidarismo ideológico; a autora propõe a reflexão sobre as ideologias como forma de poder. E o que se depreende dos seus contos de fadas, ao invés do didatismo, é a libertação do sujeito, visto que a autora produz literatura - esta, que tem o poder de transformar o mundo e os sujeitos atores de suas histórias.