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A Digitalização das atividades cinematográficas 184

No documento Cinema digital: a recepção nas salas (páginas 184-189)

5.   O digital vai ao cinema 156

5.2.   A Digitalização das atividades cinematográficas 184

As tecnologias digitais têm provocado mudanças avassaladoras na sociedade, relacionadas à seu uso para manipulação e envio barato e não destrutivo de informação, que modificou totalmente as formas de comunicação, possibilitou a informática, os dispositivos móveis e a interconexão global como conhecemos hoje. Não havia dúvida de que seriam incorporadas às atividades da cadeia do cinema.

Há experiências de expansão na captação de imagens em movimento em outros suportes que não o fotoquímico já no sec XIX. Jorge La Ferla (2009) menciona inclusive algumas considerações de Sergei Eisenstein sobre o assunto, em vias a uma representação abstrata, numérica, digital, já em 1926.

O primeiro setor da produção cinematográfica a começar a sofrer de fato uma transformação devida às tecnologias digitais foi o setor de pós-produção. Originalmente a montagem dos filmes era feito nas máquinas como a Moviola, com cortadeiras e cola. Desde o surgimento da televisão já era comum a varredura de filmes por um sistema semelhante à câmera, para sua transmissão. Conforme surgiram os gravadores de vídeo, também passaram a ser usados na pós-produção cinematográfica: o sistema eletrônico que varre cada fotograma do negativo gerando uma cópia em vídeo é chamado de

telecine, e gerava cópias já positivadas que podiam ser assistidas para seleção

dos planos a usar na montagem. Com o tempo os telecines também registravam na imagem números lidos nas bordas dos filmes, que permitiam marcar com precisão onde seriam feitos os cortes. Essa lista dos pontos de

185 corte (cut list) já existia mesmo no fluxo de trabalho sem uso do vídeo, pois o material era assistido e selecionado numa cópia positiva e depois a montagem tinha de ser reproduzida sobre o negativo. Paralelamente desenvolviam-se também sistemas de controle de múltiplas cópias, ainda analógicas, para facilitar a edição com busca não sequencial (dita não-linear) dos diferentes trechos do filme. Um dos primeiros tais equipamentos foi o EditDroid, que usava um sistema já digital (um computador com arquitetura Unix) para controlar um sistema de edição com vários LaserDisc (um formato analógico). O sistema embora não tenha sido adotado comercialmente, foi a base para o desenvolvimento de outras tecnologias de edição não-linear e foi vendido para a J&R, dona da marca Moviola e depois para a Avid Technologies em 1993, sendo transformado no software que foi amplamente adotado pela indústria (ARUNDALE, TRIEU, 2014).

Os sistemas de telecine evoluíram em paralelo com as tecnologias de captação de imagem com conversão para o digital, e durante um período usava-se na indústria de pós-produção a diferenciação entre os telecines, que gravavam a informação direto em vídeo e em tempo real, mesmo que em formatos digitais, e os datacines (depois chamados de scanners) que liam os negativos de forma mais lenta, em geral com melhor qualidade e com registro em formatos de arquivos, mas também em fitas de vídeo digital como HDCAM e HDCAMSR. Esses formatos de melhor qualidade relativa são chamados de

online, enquanto os formatos de menor qualidade, mais leves (e baratos),

chamados de offline.

As montagens passaram a ser feitas em softwares como o Avid e Final Cut, a partir dos offlines telecinados e digitalizados. Essa montagem depois era aplicada ao material em melhor qualidade, seja o online ou direto o negativo, num processo chamado de conform. Essa estrutura e nomenclatura ainda é usada hoje nos workflows totalmente digitais, em que o material bruto captado é convertido para um formato mais leve (proxy) para visualização e edição, que depois será incorporada no material para gerar o corte mestre. Também rapidamente foram incorporados softwares nas cadeias de pós-produção de áudio, que por possuírem representação digital mais leve do que as imagens, em geral não possuem essas diferenciações do tipo offline/online.

186 Junto com essas inovações apareceram outras, importantes, como o timecode nas fitas de vídeo e formatos de captação de áudio. As fitas DAT (Digital Audio Tape) introduzidas pela Sony começaram a substituir os gravadores de som direto em fita Nagra a partir da década de 1990.

Também começaram a surgir a partir dos anos 1990 as câmeras de vídeo digital. É interessante notar que o vídeo digital precede as câmeras, tendo surgido antes como formato de armazenagem, com conversão do sinal elétrico captado por uma câmera analógica, no final da década de 1980. Do ponto de vista da captação é bom lembrar também que o sensor da “câmera digital”, seja CCD ou CMOS, é analógico, sendo digital somente a interpretação de seus conteúdos, ou seja, simplesmente essa conversão analógico-digital passa a ser feita dentro da câmera, e não em um sistema separado.

Grande parte da dinâmica da adoção das câmeras digitais no cinema segue então a trajetória bastante longa de evolução do vídeo analógico que, impulsionado pelo desenvolvimento do registro digital das imagens, foi se aperfeiçoando tecnicamente e se aproximando (e hoje até superando) a qualidade de luz, cor e tamanho de sensor (e, portanto, profundidade de campo) das melhores câmeras de película. Essa perseguição à qualidade e características visuais do fotoquímico tem de ser contextualizada num cenário em que os fabricantes de câmeras e negativo atuavam de forma incisiva junto a profissionais na defesa do celuloide: Carlos Ebert (2015) irá nos lembrar que até a década de 1950 as câmeras que permitiam captar som direto tinham mais de 70kg, dificultando seu uso em diversos cenários. Ainda segundo Ebert, o negativo na década de 1960 não tinha nem 4 stops de latitude. No Brasil a situação era ainda mais difícil: as câmeras blimpadas (que não fazem tanto ruído) chegaram no Brasil somente em 1973, e o negativo com ASA 500 só em 1996.

Além das câmeras de maior porte, de vídeo digital, e depois as câmeras

de cinema digital, assim chamadas por captarem a imagem direto em 24

quadros por segundo e em fotogramas já separados, surgiram também câmeras digitais pequenas, leves e muito mais baratas que qualquer possível solução em filme, que facilitam manipulações e movimentos e permitem até

187 novas estéticas cinematográficas como o Mumblecore. Mesmo assim ainda há certos realizadores que preferem uma marca visual como a textura do grão do fotoquímico e pesquisadores como os do grupo suíço liderado por Christian Iseli buscam avaliar a real percepção do público sobre essas diferenças ontológicas entre imagens (ISELI et at., 2016).

O suporte de gravação dos conteúdos é um aspecto efetivamente revolucionado pelas tecnologias digitais. A gravação em arquivos proporciona uma economia grande com relação aos negativos, que chegavam a representar 20% dos custos de produção, em média, e atingiam montantes como 55 milhões de dólares para blockbusters como Titanic. A economia no suporte permite que se grave mais conteúdo, e sem as antigas limitações de takes de no máximo 5 minutos (a não ser com uso de câmeras especiais).

De volta à pós-produção, os sistemas digitais de edição não-linear rapidamente tornaram-se mais baratos e multiplicaram as facilidades e possibilidades de manipulação da imagem, e passaram a ser a forma mais adotada para montar filmes em todas as escalas de produção. As agilidades da manipulação também transferiram para plataformas computacionais as composições e correções de imagem. Embora os custos totais tivessem potencial de ser diminuídos, na prática capta-se muito mais material e fazem-se mais ajustes, aumentando o volume de trabalho da pós-produção.

Durante a década de 2000 o sistema de trabalho mais comum para o cinema era a intermediação digital: captação em celuloide, com escaneamento de cada fotograma do filme em alta qualidade e montagem e ajustes de imagem sendo feitos todos computacionalmente, com o resultado final sendo impresso novamente em uma película, em geral já em positivo, para copiagem e distribuição, sem voltar mais ao negativo original, relegado a um formato somente de captação.

Se as distribuidoras já faziam cópias destinadas ao consumo caseiros desde a difusão do home vídeo analógico, a mesma demanda só se expandiu às novas tecnologias. A partir do DVD o home vídeo também se tornou digital, e dada a importância dessa cópia e das distribuições para televisão no

188 faturamento das majors, a sistemática da pós-produção passou a favorecer cada vez mais a multiplicidade de formatos de finalização. Se antes mesmo os grandes filmes iam para as praças de distribuição de forma única, somente para receber áudio dublado e legendas na copiagem, conforme necessário, isso se modificou bastante com a diversidade de formatos de distribuição. Com cópias diferentes tendo de ser feitas para a TV analógica, a TV digital, o DVD, o Blu-Ray, o VOD, cada uma com diferentes resoluções, telas de diferentes proporções, diferente quantidade de canais de áudio etc. unificou-se em plataformas digitais o controle dos diversos materiais necessários para montar essas diferentes versões, a partir dos másters e deliverables que serão usados para conversão para cada um desses formatos.

Essa diversidade de destinos, e a evolução da capacidade dos computadores caseiros também causa um efeito característico da digitalização: uma aproximação entre as ferramentas em software usadas nas grandes indústrias e escalas comerciais e aquelas disponíveis para o consumidor final. Com o volume desse mercado, muitos dos desenvolvimentos de tecnologias audiovisuais recentes estão mais interessados nos possíveis lucros e ganhos da economia de escala.

Manovich (1995; 2001) irá considerar que o Quicktime, lançado para computadores pessoais em 1991, tem um caráter revolucionário equivalente ao cinetoscópio, pois permitia a fácil criação de loops de imagem, criando uma plataforma de experimentação e, portanto, desenvolvimento de linguagens. Além disso desenvolveria de forma importante, segundo o autor, a prática da visualização privada.

Por fim, ainda observamos mais uma forma em que o uso das tecnologias digitais está sendo incorporado aos cinemas, por meio das redes. Não falo aqui ainda da distribuição de filmes, que veremos a seguir, mas do trabalho e uso compartilhado de materiais. A interconexão global, cada vez a mais alta velocidade, permite que as diversas etapas da produção de um filme sejam cada vez mais espalhadas, com captações em diferentes países, enviando em segundos suas imagens para um terceiro local, que as edita ao mesmo tempo em que uma outra equipe também remota faz a edição de som,

189 e uma outra os efeitos visuais, tudo isso automaticamente sincronizado, e supervisionado pelo diretor que pode acompanhar os trabalhos e dialogar com todas as equipes, vendo as imagens e sons em alta qualidade do conforto de sua casa. Não está claro se é a melhor forma de trabalho, se o modo mais adequado de fazer bons filmes, mas já é possível.

5.3.

O digital chega às salas de cinema

No documento Cinema digital: a recepção nas salas (páginas 184-189)

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