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Indexicalidade 179

No documento Cinema digital: a recepção nas salas (páginas 179-184)

5.   O digital vai ao cinema 156

5.1.   Cinema e Digital 156

5.1.2.   Indexicalidade 179

“O fato é que os sensores CCD e CMOS, sensíveis à luz, operam de forma similar à superfície da emulsão fotográfica. A diferença técnica nesse aspecto pode ser grande, mas não é uma diferença qualitativa, ou de natureza semiótica.” (QUEIROZ; SUPPIA, 2012, p. 8)

180 Imagem 5.1 - Cidadão Kane - Orson Wells, 1941

Imagens 5.2 - Disque M para matar - Alfred Hitchcock, 1954. À esquerda fotograma do filme, à direita foto de bastidor, com o diretor e o objeto de cena usado.

181 Imagem 5.3 - Cidadão Kane - Orson Wells, 1941

Imagem 5.4 - Tempos modernos - Charlie Chaplin, 1936

As imagens acima ilustram, em filmes completamente realizados em suporte fotoquímico, cenas em que a realidade do universo do filme não corresponde a um mero registro fotográfico de uma situação real. Não estou falando do caráter ficcional das obras, mas da origem das imagens captadas e finalizadas dessa forma. No filme de Chaplin, o buraco em que ele pode cair não passa de uma pintura colocada em uma armação de madeira próxima a câmera, com a perspectiva correta. Não existe nenhum buraco. Nas imagens de Cidadão Kane, os quadros são na verdade composições em que máscaras negras foram preenchidas com conteúdo de diferentes tomadas. Na primeira imagem os atores no primeiro plano e no último foram filmados separadamente, e todo o hall entre as duas portas é um terceiro elemento separado, pintado à parte e composto opticamente com os outros dois. Um processo semelhante é usado na composição da imagem 5.3, em que a “janela” está na verdade num estúdio. As imagens de Hitchock mostram o relógio falso que foi usado para fazer o plano do filme, em que o dedo também é falso, ou melhor, é real, mas não é um dedo.

182 Em todos os exemplos existe uma relação entre o que estava na frente de câmera no momento da captura de cada tomada e o que está no fotograma final composto. Há uma associação entre o que existe de fato, mesmo que seja uma pintura, e o que foi parar no negativo da câmera. Mas não é possível atribuir ao fotograma final da cópia de exibição o mesmo tipo de relação com uma “realidade real”. E com certeza não é possível atribuir a nossa impressão ao ver tais cenas com a “realidade” que estava na frente da câmera.

Não é preciso nem apelar para composições como essas. Em um set de filmagem, nas equipes de arte ou de câmera, é comum a necessidade de posicionamento “artificial” de objetos, de atores, de olhares, para que diferentes tomadas, diferentes enquadramentos, com diferentes lentes, tenham aparência melhor, mais real ou, mais precisamente, mais verossimilhante. A vinculação direta entre o que está na frente da câmera e o que o espectador vê e compreende da cena nunca existe por completo. Não é preciso apelar para as trucagens e Meliés nem para filmes de fantasia. Não é necessário nem introduzir as diversas manipulações espaciais e temporais da linguagem do cinema: a montagem. A manipulação da imagem existe no cinema desde o seu princípio.

Mesmo a conversão de um sinal analógico, de uma informação representada de forma analógica, em sinal digital, embora seja uma recodificação, não necessariamente interrompe a indexicalidade. A decodificação da imagem digital, seja com algoritmo mais simples ou mais complexo, que será enviada para um dispositivo e finalmente formará a imagem, por meio de fontes luminosas, lentes e filtros, não é diferente da decodificação da imagem da película pelo projetor, com suas partes óticas e eletromecânicas. Um bom exemplo é o formato Technicolor que usa três tiras diferentes de 35mm para captar em separado a informação de cor, na película. Neste formato cada uma dessas 3 representações da imagem tem ainda menos relação com a imagem real, com a realidade visual. Será que um filme colorido feito em 35mm usando essa técnica tem indexicalidade diferente de outro, feito com uma só tira de filme, porém em preto e branco?

183 As tecnologias digitais facilitam a manipulação de informação, não há dúvida. Mas os impactos são, muitas vezes, superestimados. Por um lado, os “neodigitais”, segundo La Ferla, estariam entusiasmados com as possibilidades da tecnologia digital alçar o cinema a uma nova dimensão semiótica, “livres” das “premissas realistas clássicas apoiadas no caráter indexical da imagem fotográfica” (SUPPIA; QUEIROZ, 2012, p. 3), porém:

“[...] nem [Fernão] Ramos, nem [John] Belton, entretanto, estão atentos àquilo que parece-nos mais relevante nesta controvérsia, sobre a divisão dicotômica simplificadora, estabelecida em termos excludentes, entre as categorias analógico / digital e icônico / indexical / simbólico. Mal caracterizadas e detalhadas, os termos desta dicotomia servem à suposta equivalência entre dois “grupos conceituais”. Mas não é clara a correspondência usualmente estabelecida entre as categorias analógico-indexical, de um lado, e digital / simbólico, de outro” (QUEIROZ; SUPPIA, 2012, p. 13)

É interessante notar que esse desprendimento ontológico e indexical também está no centro do argumento de muitos dos teóricos que se colocam do outro lado da discussão, os “nostálgicos” conforme categoriza La Ferla. No limite, esse fenômeno de quebra da relação ontológica com uma realidade, na forma Baziniana, levaria à “imagem síntese”, ou infografia, discutida por exemplo por Arlindo Machado (1994) e Philippe Dubois (2004).

As consequências desse desprendimento se estendem, atingindo desde a concepção das imagens e filmes, até sua real criação e posteriormente sua apresentação e interpretação por parte de um espectador. Essas diferentes etapas do “ciclo de vida” de uma obra estão relacionadas, é claro, porém atribuem-se a elas, em diversas análises, muitos significados concatenados, como por exemplo em:

“A imagem digital também conduz à desontologização da imagem baziniana. Com o predomínio da produção de imagens digitais, em que virtualmente qualquer imagem torna-se possível, “a conexão das imagens a uma substância sólida passou a ser tênue... não há mais qualquer garantia da verdade visual das imagens” (MITCHELL, 1992, p. 57). O artista não necessita mais sair em busca de um modelo pró- fílmico do mundo; é possível dar forma a idéias abstratas e a sonhos implausíveis. (Peter Greenaway [1998] prefere falar em irrealidade virtual, em lugar de realidade virtual)” (STAM, 2003, p. 350)

184 De fato, muitas ferramentas digitais facilitam a criação de imagens completamente artificiais e facilitam a incorporação de elementos artificiais em imagens fotográficas, em particular auxiliam na criação de imagens artificiais que aparentam ser fotográficas, compostas ou não com elementos fotográficos. Mas daí a decretar o fim da verdade visual, como se ela antes existisse, a decretar que o artista tinha de buscar um modelo pró-fílmico do mundo e não tem mais, são passos, a meu ver, bastante largos.

5.2.

A

Digitalização

das

atividades

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