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A dignidade da pessoa humana como critério de ponderação

III) CAPÍTULO III A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA

4. A dignidade da pessoa humana como critério de ponderação

A Constituição Federal brasileira de 1988 ao consolidar a estrutura jurídica do Estado Democrático de Direito estabeleceu como um dos seus fundamentos a dignidade da pessoa humana ao lado dos valores sociais do trabalho, da livre iniciativa, da erradicação da pobreza e da marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais.

A ideia adotada na Constituição brasileira foi de transmudar a dicotomia clássica do direito público e privado, de modo a ampliar os direitos e garantias individuais e contextualizar em nível constitucional relações jurídicas até então adstritas do direito privado e da normatização infraconstitucional, como o direito à privacidade, o direito à imagem, o direito à intimidade, o direito à igualdade entre os cônjuges, a proteção ao direito de propriedade, a proteção ao direito do consumidor, a proteção aos direitos do trabalhador, a proteção à criança ao adolescente e a proteção ao direito ambiental.

Carlos Roberto Siqueira Castro afirma que a Constituição atual não está infensa de posicionar-se sobre as atuais questões emergentes do cenário pós-moderno como o transplante de órgãos, o aborto, a eutanásia, a manipulação genética, a clonagem

de células e a interferência do genoma humano, entre outras concernentes ao avanço tecnológico que interferem direta ou indiretamente o ser humano. 347

O mesmo autor afirma que os princípios engendrados na Constituição, como, por exemplos, os princípios da livre concorrência e o da busca do pleno emprego, o da propriedade privada e o da redução das desigualdades regionais e sociais, erigidos como diretrizes da ordem econômica, ainda que tragam entre si contradições de cunho ideológico, todos em conjunto visam a ampliar a dimensão social do papel do Estado.348

A constitucionalização de direitos individuais e sociais que aumenta significativamente a responsabilidade social e governamental leva a uma preocupação cada vez mais relevante: o de tornar efetivo e pragmático os direitos ali positivados, ainda que estes estejam entrelaçados como viés ideológico contraditório.

Neste contexto, a dignidade da pessoa humana prevista no artigo 1º, inciso III da Constituição Federal, erige-se como princípio nuclear da ordem jurídica e como fundamento “supralegal” em que irá prevalecer não apenas o regramento infraconstitucional frio, técnico e instrumental das relações jurídicas, mas sim a proteção em último grau do individuo, do seu bem estar social e a dos valores imateriais e de personalidade dele integrantes.

O aludido princípio, ainda que traga em si conceito jurídico indeterminado, traduz um preceito normativo de proteção à vida, à integridade física e moral do indivíduo e de seus bens materiais e imateriais que está diretamente conectado com os direitos fundamentais arrolados na Carta Magna de 1988.

Ingo Wolfgang Sarlet afirma que o princípio da dignidade humana possui

índole dúplice defensiva e prestacional, isto é, atua como limite dos poderes estatais em relação à comunidade em geral no sentido de que a pessoa não pode ser reduzida como objeto da ação própria e de terceiros que a exponham sob graves ameaças e ao mesmo

347 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Dignidade da Pessoa Humana: O Principio dos Princípios

Constitucionais, Estudos de Direito Público em homenagem a Celso Antônio Bandeira de Mello, São Paulo: Malheiros Editores Ltda, abril de 2006, p. 176.

tempo funciona como prestação de deveres estatais implementando condições concretas garantidoras desta dignidade.349

Entretanto, a dignidade da pessoa humana não é só princípio matriz de todos os outros princípios constitucionais, mas também princípio fonte que servirá de fundamento para solução de uma reparação sofrida ou ameaça de lesão ou, ainda como critério de ponderação de interesses e direitos fundamentais conflitantes quando esgotadas todas as fontes normativas ou estas entre si colidentes.

Neste sentido, Ingo Wolfgang Sarlet, com apoio em Ernst Benda afirma que o princípio da dignidade da pessoa humana constitui valor-guia não apenas dos direitos

fundamentais, mas de toda a ordem jurídica (constitucional e infraconstitucional). 350

O caráter jurídico-normativo da dignidade da pessoa humana vem sendo reconhecido pelo STF como ápice do sistema constitucional e assecuratório de todo os demais de direitos e garantias fundamentais da Constituição. Sobreleva notar também que o princípio funciona também como critério de interpretação do sistema constitucional e contribui para a implementação do denominado mínimo existencial.

Neste contexto, não é demais afirmar que o ponto de coalisão de todos os direitos fundamentais centraliza-se no princípio da dignidade da pessoa humana. Havendo o confronto dos direitos fundamentais, já acima assinalado, não haverá dúvida que o balanceamento pelo julgador dos interesses em conflito direcionar-se-á pelo bem jurídico de maior relevância, que por sua vez, estará mais próximo do princípio matriz de todo o sistema constitucional.

Daniel Sarmento afirma:

“Assim, a dignidade da pessoa humana afirma-se como o principal critério substantivo na direção da ponderação de interesses

349 SARLET, Ingo Wlfogang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais Na

Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: Uma Análise Na Perspectiva da Doutrina e Judicatura do Ministro Carlos Ayres Britto. Direitos Fundamentais em Construção. Estudos em Homenagem ao Ministro Carlos Ayres Britto. coord. Bertoldi, Márcia Rodrigues; Oliveira, Kátia Cristine Santos de, Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 241.

constitucionais. Ao deparar-se como uma colisão concreta entre princípios constitucionais, tem o operador do direito de observada a proporcionalidade, adotar a solução mais consentânea com os valores humanitários que este princípio promove.” 351

Todavia, Daniel Sarmento assinala que o STF, no julgamento de ação de investigação de paternidade, em que o réu foi conduzido coercitivamente pelo juízo de primeiro grau ao exame de DNA, ao fazer a ponderação entre o direito à intangibilidade física do réu e o direito do investigante sobre a ciência da ascendência biológica, optou pelo primeiro, apesar de dois votos vencidos. No HC nº 71.374-4, foi assim proferida a ementa:

“Investigação de Paternidade – Exame DNA – Condução do Réu “Debaixo de Vara”. Discrepa a mais não poder, de garantias constitucionais implícitas e explícitas – preservação da dignidade humana, da intimidade, da intangibilidade do corpo humano, do império da lei e da inexecução específica e direta de obrigação de fazer – provimento judicial que, em ação civil de paternidade, implique determinação no sentido de o réu ser conduzido ao laboratório, ”debaixo de vara”, para coleta do material indispensável à feitura do exame DNA. A recusa resolve-se no plano jurídico- instrumental, consideradas a dogmática, a doutrina e a jurisprudência, no que voltadas ao deslinde das questões ligadas à prova dos fatos” 352

Registra-se, todavia, o voto vencido do Ministro Rezek:

“Nesta trilha, vale destacar que o direito ao próprio corpo não é absoluto ou ilimitado. Por vezes a incolumidade corporal deve ceder espaço a um interesse preponderante, como no caso de vacinação, em nome da saúde pública. Na disciplina civil da

351 SARMENTO, Daniel. A ponderação de Interesses na Constituição Federal. 1ª Edição. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, p. 74.

família o corpo é, por vezes, objeto de direitos. Estou em que o princípio da intangibilidade do corpo humano, que protege um interesse privado, deve dar lugar ao direito à identidade, que salvaguarda, em última análise, um interesse também público... Lembra o impetrante que não existe lei que o obrigue a realizar o exame. Haveria, assim, afronta ao artigo 5º - II da CF. Chega a afirmar que sua recusa pode ser interpretada, conforme dispõe o artigo 343 - § 2º do CPC, como uma confissão (fls.6). Mas, não me parece, ante a ordem jurídica da república neste final de século, que isto frustre a legítima vontade do juízo de apurar a vontade real. A lei nº 8.069/90 veda qualquer restrição ao reconhecimento do estado de filiação e é certo que a recusa significará uma restrição a tal reconhecimento. O sacrifício imposto à integridade física do paciente é risível quando confrontado com o interesse do investigante, bem assim a certeza que a prova pericial pode proporcionar ao magistrado. ”353

Sob o meu ponto de vista, entendo que o voto vencido do Ministro Rezeck está com a razão. O direito do investigante de saber qual pessoa é o seu genitor prioriza-se não apenas em razão da importância do bem jurídico postulado, mas sim em razão da impossibilidade de obter-se tal constatação senão pelo exame de DNA. A mera presunção processual da ser o investigado pai em razão de não ter procedido voluntariamente ao referido exame não satisfaz aquele que anseia do judiciário a prestação jurisdicional que traga à tona a verdade substancial, ainda mais quando se trata de um direito indisponível.

Em suma, o princípio da dignidade da pessoa humana está intrinsicamente conectado com o equilíbrio e a harmonia dos direitos fundamentais, pois, como princípio matriz de todo o sistema constitucional atuará sempre em prol da manutenção da unidade da Constituição, não obstante, conforme visto, no juízo de ponderação de interesses nem sempre prevalecer a pretensão quando confrontada com os direitos à privacidade, à intimidade ou à incolumidade física.