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A dimensão testis e superstes no testemunho do inenarrável

Em latim, há dois sentidos para o testemunho: testis e superstes. O testemunho como

testis é aquele que se põe em um litígio como instância para o julgamento entre duas partes, se

relaciona com o estabelecimento dos fatos do processo. Etimologicamente, é aquele que assiste como terceiro. Portanto, diz respeito ao paradigma visual, ao que sabe e atesta a verdade por ter visto. Aproxima-se do positivismo da representação como cópia e do uso instrumental da linguagem “que crê na possibilidade de se transitar entre o tempo da cena histórica [ou a ‘cena do crime’] e o tempo em que se escreve a história [ou se desenrola o tribunal]” [SELIGMANN, 2005: 81]. Ou ao uso historiográfico e jurídico do testemunho como prova objetiva do decorrido, que então questiona o teor testemunhal enquanto capacidade de registro, de armazenamento e restituição da cena passada tal e qual.

O testemunho como superstes é dado por aquele que viveu um evento como ator ou vítima e sobreviveu ao acontecimento. Assim, “‘testemunha’, seja como aquele ‘que subsiste além de’, testemunha ao mesmo tempo sobrevivente, seja como ‘aquele que se mantém no fato’, que está aí presente” [BENVENISTE apud SELIGMANN, 2005: 81]. Portanto, diferentemente do modelo testis, que atesta porque viu, o testemunho como superstes tem por centro a audição de quem recebe o testemunho e o presente de quem fala. Refere-se ao próprio ato de testemunhar, sua necessidade, sua impossibilidade e sua possibilidade. Pensar a história a partir dele é pensar “em uma história mais auricular: aberta aos testemunhos e também ao próprio evento do testemunhar sem reduzir o testemunho a um meio[SELIGMANN, 2012: 58].

Quando consideramos a cena traumática, o aspecto subjetivo do testemunho como

superstes traz para a narrativa a incomensurabilidade entre a palavra pronunciada e a

experiência relatada, os limites da escuta e a necessidade da fala. Portanto, vai além do conhecimento dos fatos de um processo ou de uma verdade histórica. A não coincidência entre a linguagem e a experiência relatada, a lacuna, o fragmento e a imaginação são inerentes

ao testemunho superstes e assombram tanto ao historiador como ao juiz, pois, como indica Rancière, ambos são especialistas cujas ciências trabalham com a realidade do pensável.

Contudo, nas catástrofes coletivas a vulnerabilidade do testemunho como superstes não deve ser justificativa para a impossibilidade de seu uso histórico ou jurídico [SELIGMANN, 2012]. Ao contrário, apesar da aporia ele deve ser recebido pela prática historiadora78 e pela justiça procedimental como um documento que difere da dita

objetividade das placas comemorativas, dos nomes de ruas, dos arquivos, dos livros de história ou dos documentos legais e frios encartados nos processos de reparação a uma vítima que não fala.

Para Ricoeur, no coletivo da memória traumática o testemunho como superstes é fundamental tanto à prática historiográfica como à jurídica. Então, se na relação memória- história a primeira é a guardiã originária da lembrança, rastro inseparável da epistemologia histórica, nos crimes contra a humanidade a justiça não pode desprezar o conteúdo subjetivo do testemunho, ele não pode ser separado de seu sentido testis, pois muitas vezes é ele quem permite o julgamento.

Assim, se no testemunho como testis a voz de quem viu aparece dissociada da experiência e busca somente desfazer objetivamente a dúvida como num fora da subjetividade das partes, e depois da sentença que diz a justiça adquire status de prova objetiva para a epistemologia histórica em sua pretensão de verdade dos fatos, nas catástrofes coletivas o testemunho como superstes se associa à experiência, se liga inexoravelmente ao relato de quem sobreviveu à eminência da morte e busca por meio da narrativa e da escuta a elaboração do passado doloroso, a inscrição da experiência na pluralidade da memória comum compartilhada pela história e a efetivação de atos de justiça como valor exemplar e para além da vitimização. Todavia, seja como testis ou superstes, trata-se sempre de uma fala que abarca a esfera conflitiva. Conflitiva em relação a si e ao outro e ao si mesmo como outro.

Contudo, “o essencial [...] é ter claro que não existe possibilidade de se separar os

dois sentidos do testemunho, assim como não se pode separar historiografia da memória” [SELIGMANN, 2005: 81]. E nos crimes contra a humanidade do passado recente também não há como separar memória, história e justiça. Aqui, o julgamento se faz necessário, pois o não julgar deixa a última palavra ao mal, ao qual Ricoeur acrescenta o abandono à vítima. E também ao devir [2007].

78Para Ricoeur, na prática historiadora a noção de arquivo encontra a de documento e o testemunho situa-se entre os documentos. Pois qualquer traço deixado do passado se constitui em um documento a ser interrogado pelo historiador. Cf. RICOEUR, Paul [2010c], p. 198.

Trata-se então de aceitar o testemunho como exemplo do possível e impossível de uma singularidade que se opõe à universalidade da linguagem. Todavia, ao invés de reduzi-lo ao visual de uma fala que transforma a violência em espetáculo de dor e sofrimento indizíveis, incompreensíveis, que atestam somente a vitimização, devemos entendê-lo como uma complexidade, “um misto entre visão, oralidade narrativa e capacidade de julgar: um elemento completa o outro, mas eles se relacionam de modo conflituoso [...]. Uma passagem constante, necessária e impossível entre o ‘real’ e o simbólico, entre o ‘passado’ e o ‘presente’” [SELIGMANN, 2012: 59].

Dessa forma, se por um lado, no ato testemunhal da experiência traumática, há um desencontro entre a narrativa e o real ou a percepção angustiante do narrador de que sua experiência não pode ser expressa pela linguagem, por outro o que a linguagem busca é justamente o encontro desse impossível. Para Ricoeur, é esse encontro que transforma a memória em história, o trauma em justiça. Portanto, é o testemunho quem faz a passagem da narrativa aos fatos, do individual ao simbólico compartilhado, do privado ao público, da memória à consciência histórica, da experiência à expectativa. No entanto, sendo um ato de linguagem onde o real e a imaginação não se dissociam, não podemos dizer nem que a narrativa é propriamente uma verdade, nem que é mera mentira. Contudo, apesar das aporias que perpassam o teor testemunhal, devemos considerar que ele se refere a uma presença de uma sobrevivência no agora de algo que ocorreu.