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A temporalidade e o quem da narrativa na atestação de si

Ricoeur pensa a temporalidade e o quem da narrativa em intersecção com a hermenêutica e a ação. Na obra O conflito de interpretações o filósofo reflete acerca da hermenêutica considerando as análises estruturalistas,52 o método da história53 e a psicanálise,54 correlacionando-as com o que Miguel Dias Costa descreve na introdução da obra como uma guerra de interpretações divergentes ou mesmo opostas. E na analogia que faz entre a cena da clínica e o conflito da política o que interessa a Ricoeur é tornar pública a controvérsia escondido-mostrado em sua dimensão dialogal e ética como possibilidade de cura e de ultrapassagem além de, mas sem eliminar o conflito.

A hermenêutica professada por Ricoeur não se reduz a uma técnica de interpretação ou compreensão do instituído, mas se volta para a compreensão em produção de sentido. E a compreensão passa pela apropriação dos sentidos plurais da tradição e dos laços de pertencimento em constante fazer-se. Ricoeur coloca nos efeitos da linguagem a esperança de outro ser e agir. Pois embora os textos e as narrativas transmitam experiências são os significados produzidos pelos leitores que induzem a ação. Assim, como diz em Tempo e

52Ricoeur resiste ao estruturalismo. Contudo, para Jeanne Marie, essa resistência “não diz respeito às aquisições

descritivas que tais metodologias oferecem; ao contrário, as análises estruturalistas, sobretudo de textos, serão amplamente discutidas e aproveitadas por Ricoeur. Sua desconfiança concerne à pretensão de totalização que alguns usos desenfreados do estruturalismo e de outros ismos sugerem: como se esses modelos pudessem não só descrever e analisar as produções culturais e linguísticas, mas também explicar suas formas históricas de surgimento e invenção [...]. Ricoeur desconfia da mesma tendência de uma hybris totalizante que já denunciava no solipsismo cartesiano e que ele fareja na aplicação – acrítica – isto é, que não conhece seus limites – dos recentes paradigmas anticartesianos”. Cf. GAGNEBIN, Jeanne Marie [2006], p. 167. Cf. também DOSSE, François [1994].

53Quanto ao método da história, Ricoeur o insere na própria mediação hermenêutica, onde a relação escondido- mostrado é insuperável. Para o filósofo, estamos sempre em meio a um conflito de interpretações. Portanto, não há uma narrativa que possa compreender todas as narrativas, quer diga respeito ao indivíduo, ao coletivo ou à história, mas interpretações em abertura e desacordo. A interpretação se situa então como um duplo sentido ou ontologia como pertença do escondido-mostrado, onde a pertença no mundo além de mediada é sempre plural: entre nós e o mundo e entre nós e nós mesmos. Assim, o círculo mimético [prefiguração – configuração – refiguração] não produz uma verdade, mas interpretações divergentes, muitas vezes opostas e não totalizáveis. Dito de outra forma, há uma abertura no texto que se manifesta pela interpretação, momento em que o leitor se apropria da obra e torna-se responsável pelo sentido que produz. A lógica de duplo sentido pode ser chamada então de transcendental desde que entendida como uma possibilidade que difere da objetividade.

54Quanto à psicanalise, para Ricoeur, ela traz o inconsciente como desafio à fenomenologia, que coloca seu foco

principal na consciência. Contudo, ela é estrangeira à fenomenologia e deve ser pensada no campo do conflito enquanto desvelamento dos limites da própria fenomenologia. “Conflitual em relação a mim, em relação à fenomenologia e também à hermenêutica de textos”. O próprio ato terapêutico se dá pelo conflito, é uma relação de linguagem entre o paciente e o analista em que a controvérsia está sempre presente. Todavia, ela deve ser vista como uma cura pela linguagem, pois a relação terapêutica se dá no dizer e na dificuldade de dizer. Cf. Por

uma filosofia da memória reconciliada. SAFATLE, Vladimir entrevista Paul Ricoeur. Folha de S. Paulo. São

Paulo, maio de 2005. Disponível em: <http://www.geocities.ws/vladimirsafatle/vladi018.htm>. Acesso em: 30 abr. 2013. Cf. também RICOEUR, Paul [2007].

narrativa vol. 3, “os efeitos da ficção, efeitos de revelação e de transformação, são essencialmente efeitos de leitura” [2010c: 172].

Contudo, os significados que os leitores produzem são mediados por laços de pertencimento, por invenções linguísticas e por narrativas que perpassam a temporalidade do homem capaz. Nesse contexto, na relação sujeito-mundo a hermenêutica, devido ao interminável conflito de interpretações e as constantemente releituras que a caracterizam, possibilita aos sujeitos sociais compreenderem os sentidos que permaneciam recalcados ou ocultos das interpretações até então instituídas e assim produzirem novos significados indutores da ação.

Na relação leitor-sentido-ação-mundo o sujeito que recebe a narrativa não participa diretamente da ação e da configuração, o que faz é refletir acerca do conteúdo narrado, da ação dos personagens, da intriga. Dessa forma, é a partir da autorreflexão sobre os sentidos recebidos que o sujeito tem a possibilidade de produzir significados e alterar sua ação no mundo. No lugar da onipotência do sujeito Ricoeur coloca o sujeito mediado. Para Jeanne Marie Gagnebin, “a luta contra os exageros da tradição idealista, que Ricoeur aponta como o motivo primeiro de sua filosofia, desemboca assim numa pesquisa apaixonada das relações dessa consciência – e desse sujeito – com o mundo que os circunscreve e os constitui por inúmeros laços” [GAGNEBIN, 2006: 165].

Na relação sujeito-mundo Ricoeur entrecruza a não onipotência da vontade humana com a finitude, o mal e a culpabilidade; o sofrimento e a vulnerabilidade ou as figuras dolorosas do involuntário. Contudo, busca pela hermenêutica e para além do involuntário a possibilidade de uma ação ética e política como forma do viver conjunto e bem [GAGNEBIN, 2006].

De acordo com Olivier Abel, embora a problemática do mal seja central em seu pensamento,55 a questão não é propriamente o mal que está sempre lá e excede ao querer e ao agir, mas o bem como generosidade, ao sim da tradição das promessas de felicidade não cumpridas [ABEL, 1996]. Em O universal e o histórico, Ricoeur define o caráter teleológico do viver bem como felicidade. Todos os homens querem ser felizes. E o querer viver bem não diz respeito apenas ao diálogo curto da amizade e do amor, mas se volta também para os sem

rosto [2008b: 261-280].

55Para Abel, em Ricoeur a problemática do mal se coloca a partir do desastre coletivo que representou a Segunda

Guerra Mundial. É a guerra, enquanto experiência da terrível realidade do mal, “que o faz repensar a ética, o político, o jurídico e a história” Cf. ABEL, Olivier [1996], p. 19.

Então, na esteira de Hannah Arendt, Ricoeur pensa o querer viver bem na relação com cada um como pluralidade humana. O seu lugar é o político, onde o universal e o histórico não se dissociam. Pois, como diz na introdução de O Justo 2, “não existe sistema universalmente válido de distribuição [no sentido mais amplo da palavra]; de um ponto de vista contextualista, devem ser levadas em conta as escolhas revogáveis, associadas às lutas que marcam a história violenta das sociedades” [2008b: 9]. Para o filósofo, embora a felicidade possa ser uma aspiração universal se mescla ao contextual quando nos impõe a pergunta: “Com quem queremos viver e de acordo com que regras?” [2008b: 264]. Assim, a definição do que é o universal e sua efetivação depende do comportamento político dos sujeitos plurais, que por meio do direito à argumentação chegam a um acordo possível em sociedades históricas específicas. As regras de um acordo possível só podem ser buscadas na prática da linguagem.

Em Ricoeur, “todas as relações humanas passam inevitavelmente pelo discurso” [2008b: 270]. É a palavra enquanto troca de argumentos que traz ao horizonte comum o entendimento, o consenso ou a utopia da palavra compartilhada. Então, se por um lado a ideia de universalismo se funda no reconhecimento das condutas reguladoras do espaço comum em prol da felicidade ou do viver conjunto e bem, por outro o consenso só pode ser pensado como dissenso inerente às culturas múltiplas que caracterizam a humanidade.

Quando pensa o quem da narrativa, para o filósofo, considerando que o relato do quem não se desprega da atestação de si, narrar-se pressupõe o engajamento do sujeito com sua fala. Nesse aspecto, é uma questão ética que envolve a credibilidade do locutor, um sujeito que se compromete com sua fala quanto atesta a si. Em Amor e justiça, Ricoeur alia a atestação de si à compreensão hermenêutica para além do distinguir puramente formal entre o bem e o mal [RICOEUR, 2012b: 114]. Ele a aproxima da categoria do testemunho da consciência como um chamamento de si a si mesmo no sentido de atestar algo por verdadeiro. A atestação de si faz parte da autoestima de um sujeito que crê em sua capacidade de poder dizer, de manter a palavra e emitir um juízo que difere da neutralidade, na medida em que o obriga a decidir sobre uma avaliação e outra pelo juízo da situação. Segundo o filósofo, é pela atestação de si que o quem da ação e do discurso se torna um homem capaz de se fazer reconhecer. Seu ponto central é a linguagem, pois não há atestação de si em solicitude e compreensão que não passe por atos de linguagem. E só estamos protegidos “contra o retorno da intolerância e do fanatismo por um trabalho de compreensão mútua” [RICOEUR, 2008b: 279].

Na memória coletiva a atestação de si se liga à narrativa de um homem capaz, que assume a responsabilidade pelo que diz e exterioriza a interioridade de uma experiência como

compartilhamento de algo que não é só seu e que se manifesta como Eis-me aqui. E inclui variantes reais, deformadoras e incompletas de um sujeito que se lembra de si. A atestação de si é a atestação de um homem falível.

Para Ricoeur, a atestação de si “é uma certeza frágil, vulnerável, sem fundação, que se exprime na ameaça permanente da suspeita como contrário da atestação” [PIVA, 1999: 210]. A suspeita se insere na maneira como se constituem os vínculos de pertencimento. Se por um lado temos o patriotismo, a consciência de classe etc., por outro há o manipulado, o esquecido, o dissimulado, o negligenciado, o negado, onde se alojam os restos da sociedade: os desclassificados, os traidores, os exilados, os fora-da-lei. Dessa forma, como diz em

Tempo e narrativa vol. 1, “nas modalidades de consciência explícita, a atestação do pertencimento participativo pode ser valorada com as cores mais diversas, opostas até; a gama delas estende-se entre os pólos extremos da aprovação e da rejeição, da comemoração e da execração” [RICOEUR, 2010a: 326].

A suspeita se alia à impossibilidade de uma consciência imediata, já que depois da psicanálise freudiana o sujeito foi desalojado da posição do eu metafísico e temos que renunciar à ilusão da consciência imediata.56 Para o filósofo, trata-se ainda do Cogito, porém ferido, e a certeza permanece na ordem da atestação. Todavia, a fragilidade da atestação de si só é superada pela ipse enquanto promessa de falar, narrar, agir, imputar-se apesar de. Ela se liga à confiança do narrador que diz e do interlocutor que escuta, acredita, reconhece, compreende e se apropria do conteúdo narrado, quando ao mesmo tempo em que modifica a compreensão de si desloca-se para além de si, pois, compreender é tanto recepcionar a língua do estrangeiro como compreender a si em mutabilidade. Tais questões são indissociáveis do processo hermenêutico, que “desapropria duplamente o sujeito da interpretação: obriga-o a uma ascese primeira diante da alteridade da obra; e, num segundo momento, desaloja-o de sua identidade primeira para abri-lo a novas possibilidades de habitar o mundo” [GAGNEBIN, 2006: 168].

56Ricoeur situa a quebra da filosofia da consciência imediata a partir de três mestres da suspeita: Marx, Nietzsche e Freud. Para o filósofo, se Marx deseja libertar a práxis da necessidade pela tomada de consciência, Nietzsche busca aumentar a força do homem, restaurar a força para além da violência de aquém de. Já Freud pretende alargar a consciência por meio da aceitação de um inconsciente latente, aparentemente estranho. Embora as três interpretações sejam fortemente marcadas pela falsa consciência e suas discordâncias sejam mais manifestas do que suas proximidades, elas colocam que depois de, com Descartes duvidarmos sobre a coisa, devemos agora duvidar sobre a consciência. “A partir deles, a compreensão é uma hermenêutica: procurar o sentido, daí para frente, já não é soletrar a consciência do sentido, mas decifrar-lhe as expressões.” Cf. RICOEUR, Paul [1988], p.148. A categoria fundamental passa a ser então a relação escondido-mostrado ou simulado-manifesto. Dessa forma e para além das diferenças que separam os três autores, devemos pensar a consciência imediata como impossibilidade.

Na interligação entre experiência e expectativa, a atestação de si se faz presente pelo quem, agente e paciente da ação. É ele que realiza a mediação entre o passado que não é mais e o futuro que não é ainda, quanto atesta o ter por verdadeiro por meio da narrativa de si. O que o quem da narrativa articula então é o agora sem extensão com o agora como passado e o

agora como futuro eminente, ou as coisas presentes, a presença do ausente e a expectativa do

devir.

Na memória coletiva traumática, o testemunho como atestação de si é que possibilita tornar visível o dissimulado e negligenciado pelas manipulações de sentido que buscam despregar o passado do presente e do porvir. Para Ricoeur, a passagem pelo testemunho é fundamental para quebrar com a visão de um tempo novo no sentido do sem precedentes, onde o futuro é entendido como um progresso que surge da aceleração realizada pela ação dos homens desvinculada da experiência. Segundo o filósofo, é preciso romper com a perspectiva que coloca o presente tão somente como a transição entre as trevas do passado e o porvir do futuro, pois a ruptura entre experiência e expectativa transforma o futuro em mera utopia, uma vez que a falta de enraizamento não permite aos homens formular um percurso praticável. Nesse sentido, nossas “expectativas têm de ser determinadas, portanto finitas e relativamente modestas, para que possamos suscitar um engajamento responsável” [2010c: 367].

É preciso lutar então “contra a tendência de só considerar o passado sob o ângulo do acabado, do imutável, do findo. É preciso reabrir o passado, reavivar nele potencialidades irrealizadas, impedidas, massacradas até” [RICOEUR, 2010c: 368]. Contra os que dizem que o futuro é aberto e contingente e o passado fechado e terminado, o filósofo propõe que nossas expectativas sejam mais determinadas e nossas experiências, mais indeterminadas, “pois somente expectativas determinadas podem ter sobre o passado o efeito retroativo de revelá-lo como tradição viva. É por isso que nossa meditação crítica sobre o futuro pede o complemento de uma meditação semelhante sobre o passado” [RICOEUR, 2010c: 368].

A assertiva nos leva a Walter Benjamin. Para o filósofo alemão, “em cada época é preciso arrancar a tradição ao conformismo” [1994a: 224], despertar no passado as centelhas de esperança. Esse papel Benjamin atribui ao “historiador capaz de identificar no passado os germes de uma outra história, capaz de levar em consideração os sofrimentos acumulados e dar uma nova face às esperanças frustradas” [GAGNEBIN, 1994: 8].

Contudo, se por um lado, como pensa Ricoeur, a matriz da história é a memória, por outro, como diz Halbwachs, a atestação de si não garante a impressão da experiência na tradição compartilhada, pois “para que nossa memória se aproveite da memória dos outros, não basta que estes nos apresentem seus testemunhos: também é preciso que ela não tenha

deixado de concordar com as memórias deles” [2003: 39], que ainda existam pontos de contato. Para que o relato possa ser apropriado, o que transmite deve pertencer a um fluxo comum que interligue narrador e ouvinte. “Quando esse fluxo se esgota porque a memória e a tradição comuns já não existem” [GAGNEBIN, 1994: 11].

O pensamento de Benjamin aponta para o esgotamento do fluxo. Para o filósofo, o declínio da narrativa tradicional faz parte do estilhaçar da memória comum acirrado pela experiência da Primeira Guerra, que fez com que os combatentes voltassem mais pobres em experiências comunicáveis [1994b]. A experiência traumática da guerra provocou a quebra do humano, do anteriormente visto, do que era até então transmitido oralmente. Perdemos a “capacidade de trocarmos pela palavra experiências vividas” [1975: 63]. Como Benjamin, Ricoeur deplora a quebra do humano ou a ruptura entre a experiência e a narrativa. Para o filósofo francês, “a passagem da humanidade para um estágio em que ninguém mais teria qualquer experiência para comunicar para quem quer que seja” [2010c: 457] seria mortal para a comunidade dos homens.

Trata-se então de buscarmos a abertura, de rejeitarmos a “imagem do homem tradicional, solene, nobre, adornado com todas as oferendas do passado, para dirigir-se ao contemporâneo nu, deitado como um recém-nascido nas fraldas sujas de nossa época” [BENJAMIN, 1994b: 116]. E de aceitarmos que se antes a narrativa apoiava-se na plenitude do sentido de uma tradição em comum, o que temos agora é o inacabamento [GAGNEBIN, 1994].

Por um lado, isso não significa dizer que nos libertamos de toda a tradição, pois fabricamos novos sentidos a partir de proposições anteriores. Por outro, não significa transmitir uma verdade, mas um ensinamento, um conselho, “uma proposta sobre a continuidade de uma estória que nesse instante está a se desenrolar” [BENJAMIN, 1975: 65]. A experiência narrada se transforma então em experiência do narrador não pelo conteúdo que transmite, mas no que é dado ao ouvinte-leitor interpretar, compreender. Nessa perspectiva, a memória torna-se sem limites, visto que o lugar do sentido primordial foi ocupado por esperanças e possibilidades em abertura. No lugar do racionalmente explicado, verificado, acabado, imutável e findo, Benjamin coloca o inacabamento e o presente como a chave para compreensão do antes e depois. Como em Ricoeur, a configuração está aberta, uma história sempre pode ser narrada de outro modo.

Rememoramos e nos apropriamos da lembrança no agora, pois embora os rastros nos remetam ao passado, se manifestam ainda que incompletos e inacabados no presente. Então são das marcas que eclodem no agora que sai o significado impresso no vivido como abertura

para além de. Trata-se de “uma concepção de narrativa que admita a lacuna e a dissociação [...]. Fragmentos fazem parte de um esforço de elaborar um passado que nunca poderá ser configurado como uma unidade perfeita” [GINZBURG, 2012: 126].

A força que Ricoeur atribui ao presente o aproxima da Segunda consideração

intempestiva de Nietzsche, que nos incita a uma releitura do ocorrido “não mais pelo fato consolidado no presente, mas pela ‘força do presente’” [RICOEUR, 2010c: 408]. Para o filósofo alemão, somente a partir da suprema força do presente é que temos o direito de interpretar o passado [2003: 56]. 57

No entanto, Ricoeur se afasta de Nietzsche quando o filósofo alemão associa a promessa a uma memória de vontade, que faz o homem calculável e regular, detentor de uma espécie de domínio de si, que o filósofo francês aproxima do reconhecimento-identificação, no sentido da rejeição ao diferente de si [2006: 144]. Para Ricoeur, embora o risco apontado pelo alemão não seja desprezível, há na promessa uma prioridade, o “outro conta comigo e com a fidelidade à minha própria palavra, e eu respondo a expectativa” [2006: 145]. E no sentido atribuído por Hannah Arendt, a promessa responde ao imprevisível da ação ou a confiabilidade no agir humano [2006: 143].

No testemunho, a promessa se alia ao homem que atesta a si e se compromete em renovar o relato [RICOEUR 2006: 142]. No plano político, a memória e a promessa se aliam à atestação de si como ação do presente que possibilita, ao contrário do que sugere Nietzsche, a abertura do passado à inovação, à ética e ao pacto que une à responsabilidade dos interlocutores a dimensão dialogal onde “é preciso cumprir as promessas e a dimensão cosmopolita do espaço público gerado pelo pacto social tácito ou virtual” [RICOEUR 2010c: 398].

Nessa perspectiva, a exterioridade do tempo histórico possui uma vastidão superior ao da memória, funcionando como uma espécie de correção do passado reaberto por um presente de iniciativa e um futuro de antecipação [RICOEUR, 2007: 163]. Para o filósofo francês, o tempo histórico “cosmologiza o tempo vivido, humaniza o tempo cósmico. É assim que

57É contra a paralisia do presente pela história monumental, antiquária e crítica que Nietzsche defende a força

plástica do presente. Para o filósofo, enquanto a história monumental celebra o passado como grandioso, ao mesmo tempo em que promove o esquecimento das singularidades irrealizadas e das aberrações efetuadas por meio da generalização, retira o valor da inovação do presente. Tudo que é digno de celebração ou grandioso já foi feito; já a história antiquário só pensa em preservar o passado, conservá-lo e tudo que é inovação, que não está de acordo com o passado é hostilizado, desprezado. Por fim, a história crítica julga e condena. Contudo, toda a história merece condenação, pois sempre houve violência e fraquezas humanas. Somos resultados das gerações anteriores: tanto de suas glórias como de suas aberrações. Então, “o melhor que podemos fazer é confrontar a natureza herdada e hereditária com o nosso conhecimento, combater através de uma nova disciplina rigorosa o