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A dinâmica da modernidade

No documento roneydeseixasandrade (páginas 39-43)

CAPÍTULO 1. CRISTIANISMO E DARWINISMO

2. Religião e ciência na modernidade: o mundo desencantado

2.1 A dinâmica da modernidade

Já a partir do renascimento, da reforma protestante e principalmente das revoluções francesa, industrial e científica observa-se com maior clareza uma progressiva redução da alteridade, isto é, o distanciamento de Deus da esfera pública, para dar lugar à autonomia da esfera jurídica, política, econômica, intelectual e científica. Desde então, a teologia cristã no ocidente deixa de ser gradativamente a explicação soberana sobre a existência dos seres e do universo para se tornar apenas uma reserva de sentido dentre outras de matriz não religiosa.98

Todavia, isto não significa o desaparecimento de qualquer experiência do tipo religioso, mas sim, a emergência de uma concepção de organização da realidade social ou, o que é o mesmo, do estar-junto coletivo, que não se funda mais no ponto de vista do Outro Absoluto. Assim sendo, como assinala Marcel Gauchet, “a sociedade moderna não é uma sociedade sem religião, é uma sociedade que se constitui em suas articulações principais pelo metabolismo da função religiosa”. 99

Neste sentido, de acordo com Rodrigo Portella,

A Modernidade se caracteriza pela colocação do indivíduo como medida e como fim. O ser humano, em sua individualidade e racionalidade, de certa forma substitui o centro anterior, a saber, um cosmo sagrado, com suas derivações encompassadoras de sentido e norma, gerido por instituições religiosas que davam a coesão social e cultural e que alocavam o centro de sentido para além do ser humano. A Modernidade, no entanto, coloca o ser humano como medida de si, de suas relações e do universo, a partir de uma lógica cartesiana e de uma moral kantiana. Já não seria mais o cimento da coesão cultural-social ditado pela religião, o que daria o sentido ordenador da realidade e do social com suas mediações, mas doravante a própria racionalidade, a própria independência de escolha racional centrada no indivíduo autônomo.100

Diante do metabolismo da função religiosa, provocado pela filosofia, pela política, e pela ciência, a teologia cristã tradicional foi alvo de muitas críticas. Em reação a essas críticas

98

Segundo Peter Berger, “onde a modernização progrediu mais e onde a forma moderna de pluralismo está plenamente desenvolvida, as ordens de valores e as reservas de sentido não são mais propriedade comum de todos os membros da sociedade. O indivíduo cresce num mundo em que não há mais valores comuns, que determinam o agir nas diferentes áreas da vida, nem uma realidade única, idêntica para todos”. P. L. BERGER & T. LUCKMANN. Op. Cit. p. 39. Neste aspecto, entendemos que a religião, em particular os dogmas teológicos do cristianismo, não é capaz de fornecer um sistema único, comum e supra-ordenado de sentido para a sociedade moderna.

99

Marcel GAUCHET. Op. Cit. p. 232.

100

Rodrigo PORTELLA. Religião, Sensibilidades Religiosas e Pós-Modernidade. Da ciranda entre religião e

assistimos ao surgimento, por um lado, da teologia liberal resultante do esforço de sintonizar a teologia cristã com o pensamento moderno, em particular com a alta crítica no que se refere à interpretação das Escrituras e com a teoria evolucionista. Por outro lado, como já abordado nesta pesquisa, assistimos o surgimento do próprio fundamentalismo cristão nos Estados Unidos, como reação contrária e “contracultural” às mudanças produzidas pelo advento da modernidade e de sua cultura própria.101

Dado que uma das questões confrontadas pela teologia liberal refere-se às transformações ocorridas no âmbito da interpretação mesma dos textos bíblicos, isso nos leva, inevitavelmente, a considerarmos o momento de retomada dos textos clássicos do Renascimento. Este movimento ficou conhecido, sobretudo, por preconizar uma volta aos clássicos da antiguidade greco-romana, relacionado que esteve, como já indicamos, ao movimento humanista iniciado na Itália nos séculos XIV e XV. Proclamava a volta às línguas originais e às fontes da literatura antiga, clássica e bíblica, sendo que a principal tarefa deste retorno foi comprovar a autenticidade dos textos que, uma vez estabelecida, permitisse publicá-los em tradução feita a partir da língua original.

Os humanistas do renascimento proclamavam a liberdade de reflexão bem como a autonomia crítica. Esta disposição, com relação à interpretação dos textos bíblicos, está claramente exemplificada nas obras do reformador alemão Martinho Lutero. Conforme afirma Hans-Georg Gadamer, Lutero reconhecia que a Escritura é intérprete de si mesma e que, por isso, não necessitava “de nenhuma tradição para lograr uma compreensão adequada dela, nem tampouco de uma técnica interpretativa ao estilo da antiga doutrina do quádruplo sentido da Escritura, já que sua literalidade possui um sentido unívoco, que deve ser interpretada por ela própria”.102

Muito embora os humanistas proclamassem, já nos séculos XV e XVI, o desvencilhamento da interpretação bíblica dos enquadramentos dogmáticos, é tão somente no final do século XVII e, sobretudo, no século XVIII, que a hermenêutica de fato libera a si mesmo “para elevar-se ao significado universal de um organon histórico”.103

Foi o caso de Spinoza que, em seu Tratado Teológico-Político, de 1670, propôs uma análise dos textos históricos, livres de preconceitos teológicos. Assim sendo, considerando não ser Moisés o autor da Torah (ou Pentateuco), uma vez que os livros bíblicos são compilações posteriores

101

Ver item 1.3: “O Fundamentalismo”. Além de o fundamentalismo ser compreendido como uma “reação contrária e contracultural ao pensamento moderno”, paradoxalmente ele também apresenta as estruturas discursivas da modernidade.

102

Hans-Georg GADAMER. Verdade e Método. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997, p. 275.

103

de textos que sofreram interpolações e erros de cópia, Spinoza afirmava a importância de um estudo sobre o estilo e a retórica dos autores bíblicos a fim de determinar suas intenções e propósitos em seu momento histórico.104

Outro exemplo desta tendência é a obra de Johann A. Ernest sobre a interpretação do Novo Testamento, na qual propôs que devem ser aplicados aos textos da Bíblia os mesmos recursos aplicados aos outros livros da antiguidade clássica, ou seja, a Bíblia deve ser julgada textual, histórica e filologicamente. Embora com tal procedimento procurasse apresentar a plausibilidade dos textos bíblicos, o emprego da filosofia, da filologia e da história fez aflorar questões que contestam a sua validade.105

Desta forma, a perspectiva histórica e crítica da interpretação bíblica, cuja gênesis foi no século XVI e que se estabeleceu nos séculos XVII e XVIII, teve amplo desenvolvimento ao longo do século XIX, especialmente na Alemanha.106

Baseado principalmente no pensamento de Emmanuel Kant, a teologia liberal surge, de fato, no século XIX com Friedrich Schleiermacher e se desenvolve no âmbito de um ambiente filosófico e teológico marcado pelo pensamento de Hegel, Feuerbach, Nietzsche e pelas análises histórico-filológicas elaboradas por Strauss, Baur, Ritschl e Harnark. 107 Uma característica é marcante no pensamento de todos esses pensadores, a tendência à historicização do cristianismo.

Esta perspectiva liberal em teologia chega aos Estados Unidos e é acolhida por muitos teólogos e biblistas no século XIX e início do século XX, tal qual constata William Martin ao afirmar que “a forma de interpretação crítica e histórica da Bíblia importada da Alemanha alcança os seminários e os púlpitos norte-americanos desafiando a inspiração e a credibilidade de todo corpus da Escritura, base do cristianismo evangélico”.108

Um exemplo histórico e paradigmático da influência da teologia liberal sobre o pensamento religioso nos Estados Unidos é a obra do professor Ralph H. Elliott publicada em 1961, intitulada The Message of Genesis.

104

SPINOZA, Traité théologique-politique. In: Oeuvres, Paris, Ed. Garnier-Flammarion, 1965, vol. II, cap. VII, p. 137-158. Cf. também Júlio Trebolle BARRERA. A bíblia judaica e a bíblia cristã: introdução à história da

Bíblia. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995, p. 675. 105

Battista MONDIN. Os grandes teólogos do século vinte. São Paulo: Edições Paulinas, 1979-1980, p. 8.

106

Júlio Trebolle BARRERA. Op. Cit. p. 676 e 677

107

Como Kant demonstra em seus escritos, “a filosofia especulativa não pode prestar qualquer auxílio à religião porque não pode demonstrar nem mesmo a existência de Deus [além disso, Kant] elabora uma interpretação racionalista da Revelação cristã, na qual todos os elementos dogmáticos são reduzidos a simples símbolos”. Ver: Battista MODIN. Op. Cit. p. 8. Sobre a interpretação racionalista de Kant, examinar sua obra A Religião dentro

dos Limites da Razão. 108

Nesse livro Elliott apresenta uma interpretação do livro do Gênesis de acordo com uma perspectiva hermenêutica e metodologia exegética baseadas no método histórico-crítico da escola alemã. Em sua análise, por exemplo, Ralph Elliott chama atenção sobre o fato de que, embora o primeiro livro da Bíblia tenha sua autoria atribuída a Moisés, muitos ignoram que o nome de Moisés não esteja no texto original hebraico, sendo usado apenas no texto grego da Septuaginta (LXX). Além disso, reconhece também que existem duas narrativas independentes e de tradições diferentes sobre a criação – uma em Gênesis 1.1 a 2.3 (documento relativo a tradição Elohista – Elohim) e a outra em Gênesis 2.4-25 (documento de tradição Yahwista – Yahweh). 109

A partir dessas e outras compreensões ancoradas na alta crítica das Escrituras, Elliott propõe que “devemos pensar as histórias do Gênesis – a Criação, a Queda, Arca de Noé, Torre de Babel, entre outras – da mesma maneira como pensamos nas parábolas de Jesus, como histórias profundamente simbólicas e que, por isso, não devem ser tomadas como literalmente verdadeiras”.110

Com isso ele defende a tese de que o livro do Gênesis é apenas um livro religioso, um livro teológico, que revela o drama do homem e do universo. Na sua avaliação,

Visto que o livro de Gênesis não é um livro científico nem histórico, e sim um livro teológico, seu objetivo é o de contar acerca da revelação de Deus aos homens. Por isso nenhuma informação sobre “tempo” é dado. Questões sobre eras e tempos são para a especulação e pesquisas científicas. O importante no livro são as questões sobre a consciência do homem e sua existência na presença de Deus e sua dependência dele.111

Essa interpretação dada ao livro do Gênesis por Elliott não foi nem continua sendo bem recebida pelos teólogos fundamentalistas. Se já no final do século XIX os protestantes conservadores posicionavam-se em contrário à abordagem do texto bíblico nos moldes da alta crítica, buscando, em contrapartida, uma leitura literal da Bíblia, mais ainda a partir da década de 1960! Década que, como sabemos, testemunhou um massivo ressurgimento fundamentalista, configurando um momento ainda mais “militante” que culminou com a expulsão dos teólogos liberais das igrejas e dos centros acadêmicos confessionais. 112

109

Ralph H. ELLIOT. Op. Cit. p. 1.

110

Ibidem, p. 15 111

Ibidem, p. 17-22 passim.

112

Um exemplo desta perspectiva de oposição militante sistemática à alta crítica pode ser detectado já em 1886, com a criação do Moody Bible Institute em Chicago, criado justamente para combater os ensinamentos da teologia liberal. Ver: George MARSDEN. Op. Cit. p. 22. & Karen ARMSTRONG. Op. Cit. p. 202. Mais recentemente temos a cisão ocorrida na Southern Baptist Convention, quando a ala fundamentalista conservadora desta denominação praticamente expulsou os liberais, após ter tomado a direção da Convenção. Ver: Nancy

É nesse contexto tipicamente moderno, de tensões externas e internas ao protestantismo evangélico nos EUA, que tem sido travado o debate teológico entre uma concepção de mundo articulada a partir de uma compreensão religiosa acerca da origem do mundo e dos seres e uma concepção de mundo, não menos religiosa, que propõe a sintonia da teologia evangélica com a compreensão evolucionista originalmente elaborada por Charles Darwin e suas derivações.

No documento roneydeseixasandrade (páginas 39-43)