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O criacionismo científico e sua postura de combate ao humanismo

No documento roneydeseixasandrade (páginas 114-119)

CAPÍTULO 2. A TEORIA DA CRIAÇÃO ESPECIAL

3. O Criacionismo Científico: uma análise desse discurso

3.5 O criacionismo científico e sua postura de combate ao humanismo

o produto de um ato sobrenatural de Deus, conforme estritamente delineado no texto bíblico

339

John C. WHITCOMB e Henry M. MORRIS. The Genesis Flood. Phillibsburg: Presbyterian and Reformed Publishing Company, 1961, p. 238.

de Gênesis, a negação do criacionismo, em sua sintonia com as linhas gerais explicitado nas Escrituras, seja pela aceitação do evolucionismo darwinista ou pela aceitação de qualquer tipo de evolucionismo teísta, é visto por esses proponentes como um ato de apostasia e rebeldia contra Deus mesmo. Mais do que isso: nessa perspectiva, toda a teoria evolucionista culmina por ser vista como uma grande “conspiração” maligna contra a verdadeira religião representada pelo cristianismo, levada a cabo pelo establishment científico, e como um movimento organizado que visa eliminar Deus da esfera ética, política, científica e social.340

Diante da suposta constatação de que o relato bíblico da criação está em harmonia com evidências ditas científicas, o que, segundo os defensores do criacionismo, torna mais plausível a aceitação da teoria da criação do que da teoria da evolução, a conclusão a que eles chegam é que todo tipo de evolucionismo constitui, de fato, uma clara negação da existência de Deus. Conforme declara Henry Morris, “é absolutamente impossível acreditar na Bíblia como a completa e literal Palavra de Deus e acreditar na teoria da evolução. E, mais do que isso, é quase impossível acreditar em um Deus pessoal de qualquer tipo, quando se acredita na evolução”.341

Por isso, na concepção dos criacionistas, o contexto não é apenas o de uma disputa científica entre duas teorias, mas, sim, o de uma batalha entre, de um lado, o “criacionismo teísta” e, do outro, o “evolucionismo ateísta” e o que tudo isto implica em termos de um conflito entre diferentes concepções sobre o ético-político e o social. Consequentemente, verifica-se uma ofensiva por parte do movimento do criacionismo científico contra toda forma de secularismo, humanismo, naturalismo e ateísmo (incluindo nesta categoria o darwinismo), pois esses, na opinião dos criacionistas, estariam influenciando negativamente a cultura e a sociedade dos Estados Unidos, em particular, e o mundo, em geral. Nesse sentido podemos falar em uma passagem do “diálogo cultural” do fim do século XIX, quando a mainstream protestante evangélico buscou dialogar com o darwinismo, para uma “guerra de culturas”, levado a cabo pelo fundamentalismo, tal como sugere James Davison Hunter. No seu entendimento, o eixo dinâmico desse “realinhamento cultural” não está simplesmente no fato de que diferentes concepções possam criar diferentes segmentos de opinião pública. O fato decisivo é que esse processo “reflete a institucionalização e a politização de dois sistemas culturais fundamentalmente diferentes”. Isso significa dizer que cada um desses sistemas culturais opera a partir de dentro de sua própria constelação de valores, interesses e pressupostos. Assim sendo, continua Hunter,

340

Ver: Henry M. MORRIS. Biblical creationism, p. 13.

341

No centro de cada um desses sistemas existem duas concepções distintas de autoridade moral – duas formas diferentes de apreensão da realidade, de ordenamento da experiência e de elaborar julgamentos morais. Cada lado da divisão cultural, então, fala com um diferente vocabulário moral. Cada lado opera a partir de um modo diferente de debate e persuasão. Cada lado representa as tendências de uma separada e concorrente galáxia moral. De fato, eles são “mundos à parte”. 342

Henry M. Morris, que sabemos ser um dos principais expoentes do criacionismo científico, é categórico ao afirmar que a teoria da evolução, por sua própria natureza, “é materialista, ela nada mais é do que uma tentativa de explicar os fatos da biologia em termos de leis da natureza, sem a necessidade de recorrer à ideia do sobrenatural ou do divino”. E não apenas isso. Além de relacionar o evolucionismo com o ateísmo, Morris chega a caracterizá- lo também como uma doutrina “satânica” causadora de todas as “maléficas” teorias sociais do século XX. No seu entendimento,

O caráter ateísta e satânico da doutrina é evidenciado na geração de muitas más doutrinas sociais. Nietzsche e Marx, ambos ateístas radicais, foram profundamente influenciados pelas ideias de Darwin da seleção natural e da sobrevivência do mais apto. Eles levaram para o âmbito social e filosófico o que Darwin tentou aplicar ao reino biológico e inventaram suas filosofias mortais. De Marx, o mundo herdou o socialismo, o comunismo, e o anarquismo. A filosofia de Nietzsche influenciou profundamente o pensamento político alemão e se tornou a intensa base de seu militarismo no último meio-século. Mussolini foi o discípulo mais zeloso de Nietzsche, e o fascismo foi o resultado disso. O nazismo foi criado no mesmo esgoto. A evolução é também a base de muitos tipos de doutrinas imorais, sendo agora ensinada no campo da psicologia por Freud, Russel e outros. Os evangelhos das trevas (gloom) conhecidos como determinismo e o behaviorismo têm o mesmo fundamento. Parece impensável que uma teoria pudesse ter tal alcance e efeitos tão mortais como a teoria da evolução.343

Do ponto de vista da análise de discurso, vale ressaltar as aproximações semânticas dos termos utilizados por Morris para classificar a teoria da evolução: “ateísta”, “satânico”, “mau”, “mortal”, “esgoto”, “imoral”, “escuridão”. Todos esses vocábulos extremos nos indicam a dimensão da aversão moral alimentada pelos proponentes do criacionismo científico em relação ao evolucionismo e os seus supostos efeitos morais e sociais. Essa concepção acerca da teoria da evolução tem acirrado ainda mais a “guerra de culturas” em que

342

James D. HUNTER. Op. Cit. p. 128.

343

Henry M. MORRIS. Science and The Bible, p. 38. Em seu livro The long war against God, Morris também afirma que uma forte presença do satanismo pode ser notada no simultâneo desenvolvimento do marxismo e do comunismo em geral apoiado pelo darwinismo. Ver: Henry M. MORRIS. The long war against God. California: Master Books, 2000, p. 199.

se tornou a controvérsia entre o criacionismo e evolucionismo nos Estados Unidos. De fato, como aponta Hunter, como consequência da luta para institucionalizar o discurso do criacionismo no cenário cultural norte-americano, verifica-se um esforço da corrente criacionista em neutralizar o discurso em oposição, isto é, o discurso do evolucionismo darwinista através da estratégia de ridicularizar, escarnecer e insultar seu oponente, objetivando dessa forma, comprometer a credibilidade moral desse discurso perante a opinião pública.344

Em diversas obras produzidas pelos proponentes do criacionismo científico pode-se verificar esse mesmo posicionamento de combate e desqualificação do humanismo secular.345 Todavia existe uma obra que é realmente a mais incisiva nesse sentido. Trata-se de outro livro de Henry Morris, The Long War against God. Nessa obra, Morris faz ataques contundentes contra toda a forma do que considera humanismo secular.

No capítulo intitulado Evolutionist Religion and Morals, Morris é suficientemente claro ao afirmar que o materialismo evolucionista tem aplicações na vida moral e espiritual.346 Dessa forma, em sua opinião, ele emerge como um substituto do cristianismo bíblico e de toda forma de monoteísmo em geral, assumindo a forma de uma religião humanista, isto é, uma religião “centrada na humanidade como pináculo da evolução e como medida de todo significado, rejeitando por completo o conceito de um Criador transcendente”.347

Contrário a qualquer crítica à sua compreensão de humanismo, Morris segue afirmando que o humanismo é uma religião ou uma filosofia religiosa, ou mesmo um sistema religioso que fundamentalmente rejeita a ideia de Deus.348 Como exemplo ele cita o I Manifesto Humanista publicado pela American Humanist Association, em 1933, que em sua opinião é claramente orientado por diretrizes evolucionistas. Os dois princípios do humanismo relacionados com o evolucionismo destacados por Morris são: “Primeiro: os religiosos humanistas consideram o universo como autoexistente e não criado. Segundo: O humanismo considera que o homem é parte da natureza e que ele emergiu como o resultado de um processo contínuo”.349

Essas referências tomadas por Morris são utilizadas para apoiar

344

James D. HUNTER. Op. Cit. Kindle Book, Locations 1,791-96-5,465.

345

Ver por exemplo o livro de Henry M. MORRIS. The twilight of evolution. Grand Rapids: Baker Book House, 1963.

346

De fato, como indica a antropóloga Eugenie Carol Scott, muitos cristãos conservadores, que são fortemente literalistas, temem que, seus filhos aprendam o evolucionismo, e consequentemente deixem de acreditar em Deus. Sem Deus para guiá-las, as crianças vão crescer e se tornar pessoas más. Além disso, perdendo a fé em Deus, perderam também a sua salvação. Ver: Eugenie C. SCOTT. Op. Cit. p. 264.

347

Henry M. MORRIS. The long war against God, p. 113.

348

Ibidem, p. 114 e 115.

349

American Humanist Association. Humanist Manifesto I. Citado por Henry MORRIS em The long war against

sua tese de que o humanismo é nocivo à sociedade em geral por desconsiderar completamente o lugar de Deus e de sua palavra em seu sistema de valores, além, é claro, de ter sido fundado sobre as bases do evolucionismo e do anti-criacionismo, o que em seu parecer entra em contradição direta com a verdadeira religião, ou seja, o cristianismo.350

No quinto capítulo, intitulado The conflict of the ages, Morris ressalta a influência do evolucionismo sobre todas as esferas do conhecimento humano e da sociedade em geral. Em sua opinião “toda disciplina moderna está agora contaminada e controlada pelo evolucionismo. [...] E mais, todos os devastadores movimentos político-econômicos do último século, incluindo as grandes guerras, foram motivadas pela filosofia evolucionista”.351

Em consonância com essa afirmação, Morris apresenta uma série de argumentos que indicam, segundo a sua opinião, a existência de movimentos organizados que visam a promover a filosofia evolucionista, dentre os quais a maçonaria, os jesuítas e a suposta organização conhecida como illuminati! Assim, em sua opinião, a decadência moral e a ampla apostasia religiosa contemporâneas estão diretamente fundadas nas racionalizações acerca da teoria da evolução.352

Como não poderia deixar de ser, em contraposição a esses e outros movimentos que Henry Morris considera como promotores da filosofia evolucionista e de todo tipo de humanismo secular, ele defende aquilo que assume como sendo o outro lado do conflito: “a verdade do criacionismo teísta”, o discurso que em sua opinião não é apenas o mais plausível, mas é o único verdadeiro. Assim sendo, nessa que está se tornando uma guerra de culturas, “a verdade do criacionismo teísta” continua a valer apesar de todos os ataques sofridos através das eras. Segundo Morris,

As profecias das Escrituras indicam que o Criador deve, eventualmente, triunfar e derrubar toda a rebelião e engano de Satanás, mas porque Satanás e seu exercito (formado por homens e demônios) recusam a acreditar na Palavra de Deus, o conflito continua. De fato, as profecias da Escritura indicam que em breve será estabelecido um governo global, humanista, e totalitário, sobre o controle do “grande dragão, que é a antiga serpente, chamada de Diabo, e Satanás” (Apocalipse 12,9; cf. 20,2).353

350

Henry M. MORRIS. The long war against God, p. 117. Como exemplo destes princípios, Morris cita o II

Manifesto Humanista de 1973. 351

Henry M. MORRIS. The long war against God, p. 197.

352

Ibidem, p. 198.

353

Nessa passagem fica evidenciada, mais uma vez, a opinião dos proponentes do criacionismo científico de que o evolucionismo, por se opor a doutrina bíblica da criação e consequentemente excluir Deus de todos os aspectos da vida humana, é uma arma utilizada por Satanás na sua longa guerra com o seu Criador.354 A utilização dessas imagens religiosas extremas encaixam-se dentro da perspectiva de uma oposição moral e não científica como poderia se esperar. Dessa forma, a controvérsia criacionismo-evolucionismo, ultrapassa a esfera de uma mera discussão entre hipóteses científicas e assume como já sugerimos uma estrutura do que pode ser considerada, de fato, como uma guerra de culturas.

4. Considerações finais sobre a TCE

Como observamos neste capítulo, a disseminação massiva da concepção criacionista ao longo do século XX esteve e continua intimamente relacionada com a expansão do movimento fundamentalista protestante nos Estados Unidos. Assim como o fundamentalismo, a perspectiva criacionista, representada, sobretudo pela teoria da criação especial (TCE), funda-se em uma interpretação inerrantista e literalista das Escrituras, reafirmando a doutrina da criação conforme as linhas gerais encontrada no livro da Gênesis, colocando-se, portanto, em franca oposição aos princípios da teoria darwinista e da teologia liberal.

O reconhecimento da existência de vínculos entre o criacionismo e o movimento fundamentalista protestante implica em considerarmos que, assim como o fundamentalismo, o movimento criacionista que esteve inicialmente preocupado com questões teológicas e de apologética, tornou-se paulatinamente um movimento teológico-político. Esse momento, que se deu entre os anos de 1870 a 1930, como vimos, tem sido considerado por alguns analistas como a primeira fase do movimento criacionista.

Outra importante consideração apontada ao longo deste capítulo refere-se aquela que é considerada a segunda fase do movimento criacionista. Essa segunda fase, que se deu a partir da década de 1960 e que assumiu a forma de um debate teológico-científico, solidificou uma vertente do criacionismo que ficou conhecida como criacionismo científico. De fato, a década mencionada foi testemunha de um surpreendente e contínuo ressurgimento da crença no criacionismo, sustentado, desta feita, pela chamada geologia do dilúvio, elaborada

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No documento roneydeseixasandrade (páginas 114-119)