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A diretrizes da obra circunscritas nas diretrizes do método weberiano

2. Os fundamentos weberianos para uma sociologia da música

2.1. A diretrizes da obra circunscritas nas diretrizes do método weberiano

Na edição brasileira dos Fundamentos Racionais e Sociológicos da Música (1997), Leopoldo Waizbort não só elabora as notas explicativas com as quais o leitor pode se apoiar ao desbravar uma análise tão densa, quanto o auxilia a circunscrevê-la dentro da oeuvre weberiana. Waizbort delineia as linhas gerais e as principais balizas do pensamento de Weber sobre a arte, inserida no amplo recorte da cultura, devendo o ensaio sobre a música ser compreendido dentro dos estudos comparativos weberianos sobre as culturas ocidental e oriental, já que se aproxima dos complexos ensaios sobre a religião.

Dois textos são mencionados por Waizbort (1997) para marcar as filiações do ensaio na macro sociologia de Weber: a Introdução de “A ética protestante e o espírito do capitalismo” e o texto “Rejeições Religiosas do Mundo e suas direções”, inserido nos famosos “Ensaios de Sociologia”. O tratamento dado pelo sociólogo ao problema das formas de conduta prática relativas às religiões do mundo e ao efeito da razão (imperativo da coerência) presente nas éticas religiosas que ele examinou em “Rejeições Religiosas do Mundo e suas direções” (1982), serve, para Waizbort, de referência para se pensar como Weber construiu a análise sobre a música, marcando seu relacionamento com a religião.

Waizbort postula que as racionalizações envolvidas no desenvolvimento da religião suscitaram processos históricos longuíssimos, que remontam às origens da civilização. A esfera religiosa supôs a passagem do domínio ritual ao domínio racional, em que comporta uma ética racional. Essa passagem marca um momento decisivo para Weber: a ativação do processo de racionalização. Isto é, um mundo fragmentado e especializado, no qual cada uma das esferas passa a possuir e a desenvolver uma legalidade própria, que fundamenta seu domínio. Para Waizbort,

tal processo culmina no intelectualismo, isto é, na perda da ingenuidade original do mundo, uma vez que opera a autonomização de cada uma das esferas mundanas, condição que suscita tensões entre elas. No caso da religião, Waizbort, ainda da Introdução dos Fundamentos (1997) procura perceber de que maneira e com que intensidade a religião entra em conflito com outras esferas, examinando-a em estágios posteriores do processo de racionalização:

O processo de racionalização, que autonomiza as esferas, rompe com a unidade que poderia englobar o mundo. Assim, a autonomização da esfera política, da esfera econômica, da esfera jurídica etc., acabam por programar relações de tensão que passam a marcar em profundidade o mundo. Este se apresenta como um conjunto de esferas, ordens da vida e ordens do mundo autonomizadas e, consequentemente, não necessariamente coincidentes e concordantes [...] é possível que cada esfera determinada comporte uma racionalização em um grau e em uma direção específica. Há, portanto, racionalizações orientadas de modo diferente e mesmo divergente, e a intensidade de cada uma dessas racionalizações também é amplamente variável35.

Tanto a sublimação da ética religiosa e a busca da salvação que ela implicava, como o desdobramento da legalidade própria da arte tenderam a conformarem, uma relação de tensão progressiva com a religião. Isso se dá pelo fato de que, como afirma Waizbort (1997), a perspectiva de toda a religiosidade de redenção sublimada visa apenas o sentido e não a forma das coisas e ações relevantes para o alcance da salvação. Essa ética deprecia a forma como algo fortuito da criatura, como um aspecto desprovido de sentido. A esfera da arte, por sua vez, foi estabelecendo uma relação despreocupada com a religião, ou passou a partilhar um tipo de vínculo no qual tornava possível permanecer ininterrompida ou sempre ser restabelecida em todos os momentos em que o interesse consciente do recipiente estivesse ingenuamente preso ao conteúdo do que estava sendo formado; ou seja, esse interesse não estava atrelado à forma, puramente enquanto tal. Além disso, essa relação parece se restabelecer tanto tempo quanto a realização do criador for sentida ou como um carisma (originalmente mágico) do “talento” ou como um livre jogo – caso da produção musical de Johann Sebastian, sobre o qual trataremos no terceiro capítulo desta dissertação:

35WAIZBORT, Leopoldo. “Introdução”. WEBER, Max. Fundamentos Racionais e Sociológicos da

[Entretanto o desdobramento do intelectualismo e a racionalização da vida modificam esta situação. A arte constitui-se como um cosmos de valores próprios, abrangentes e autônomos]. Ela assume a forma de uma redenção intramundana, pouco importando como isso possa ser interpretado: redenção da rotina diária e, sobretudo, também da pressão crescente do racionalismo teórico e prático36.

Em um primeiro momento, há uma relação de subordinação da arte à esfera da religião, já que compartilham os mesmos propósitos. A arte serve como um acessório para a esfera religiosa, embelezando-a, reiterando seus valores. A arte passa a se desatrelar da esfera religiosa, mostrando-se presa a ela somente no que diz respeito aos conteúdos. Para Weber (1997), essa tensão tende a se tornar extrema, uma vez que a arte assume a função de redentora, papel que só a religião reservava para si, estando circunscrita, nesse caso, nos nexos universais da racionalização e do desenvolvimento histórico da cultura ocidental. Essa é justamente a grande proposta da obra Fundamentos Racionais e Sociológicos da Música, que se mostra em consonância às diretrizes do método weberiano: apresentar os estágios de desenvolvimento da racionalização e da intelectualização da música, a partir do Ocidente.

E, para chegarmos à reflexão sobre essa proposta, a dissertação precisou se remontar à indagação sobre a singularidade do Ocidente como lócus de circunstancias e fenômenos que convergiram a uma direção única de desenvolvimento. Waizbort (1997), sobre essa questão, comenta que na Introdução de “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, Weber menciona que essa indagação tornou-se seu principal interesse e motivou-o a fundar seu pensamento. Só no Ocidente há ciência, há experimento racional e, principalmente, o capitalismo desenvolvido no grau de significação específico da Modernidade – ou seja, dotado de cálculos, formas e direções também singulares. Para Weber, nas outras partes do mundo houve outras direções de desenvolvimento e só no Ocidente se expandiu um racionalismo que contaminou todas as esferas da existência, embora as tenha contaminado diferenciadamente:

36 WEBER apud e com grifo de WAIZBORT, Leopoldo. “Introdução”. WEBER, Max. Fundamentos

Como Weber detecta um racionalismo ocidental, é preciso caracterizar sua intensidade e suas direções. Nesse ponto retornamos à ideia central em Weber, da multiplicidade de esferas da existência – que são correlatas aos domínios da vida. Assim, a racionalidade numa esfera determinada não significa necessariamente racionalidade em outra, e disso resultam, como vimos, infindáveis relações de tensão. O critério da racionalidade, desse modo, supõe, para sua justa compreensão, a análise do interior do universo no qual ele se situa e também a sua orientação37. Assim, na Ética Protestante, a análise da esfera econômica só teve sentido para Weber à medida que ela foi confrontada a outras esferas. Os Fundamentos se relacionam, também, à investigação do racionalismo nas diversas esferas do Ocidente e a arte é mais uma delas. Antes, as expressões artísticas serviam aos adornamentos de templos e igrejas e, posteriormente, se tornaram autônomas, devido às condições de produção cortesã-mecenática, e, depois, capitalista- burguesa. Com a racionalização, os valores artísticos foram se tornando conscientes, abrangentes e autônomos, possibilitando a ela uma atuação conforme suas leis próprias. Weber fala principalmente não de uma empresa da arte, mas dos efeitos que a compreensão consciente dos valores estéticos intrínsecos teve para as técnicas de produção da arte.

O ensaio sobre a música é estruturado em duas partes inter-relacionadas. A primeira, disposta nos quarenta e nove parágrafos iniciais, trata da racionalização harmônica do material sonoro, nas dimensões histórica e técnica. Os oito parágrafos seguintes discutem a história de alguns instrumentos a partir das racionalizações ocorridas com o som, no sistema de composição e na notação musical. A partir da investigação desse núcleo temático – a divisão harmônica da oitava em dois intervalos justos (quarta e quinta) – Weber conduz o leitor à busca do conjunto de fatores e dos sentidos que conformaram a atual condição da música moderna. Ao longo dos parágrafos que tratam da música helênica até a música contemporânea de Wagner e Liszt, Weber identifica o fato fundamental que consolidou essa racionalização do material sonoro: o temperamento. Toda essa análise é orientada pela busca das peculiaridades específicas da música moderna do Ocidente, em contraste e oposição com o Oriente.

37WAIZBORT, Leopoldo. “Introdução”. WEBER, Max. Fundamentos Racionais e Sociológicos da

Embora o ouvido musical tenha sido desenvolvido, aparentemente, de modo mais apurado em outros povos do que no Ocidente; embora diversas espécies de polifonia tenham se difundido pelo planeta; embora possam ser encontrados uma pluralidade de instrumentos e o descante em outros lugares; embora os intervalos sonoros racionais fossem também conhecidos e calculados em outras partes, só no Ocidente encontram-se os fundamentos típicos resultantes da lógica racionalizadora: música harmônica racional – tanto o contraponto como a harmonia de acordes; formação do material sonoro sobre a base dos três acordes de três sons com a terça harmônica; cromatismo e enarmonia, interpretados não em termos de distância, mas harmonicamente, de forma racional, desde a Renascença; orquestra com seu quarteto de cordas como núcleo e a organização dos conjuntos de sopros; o baixo contínuo; a notação musical (que possibilitou inicialmente a composição e execução das modernas peças musicais, e, assim, em geral, sua existência duradoura e completa); sonatas, sinfonias, óperas – embora haja, nas mais diversas músicas, música de programa, pintura material, alteração sonora e cromatismo como meio de expressão – enquanto expediente de todos os instrumentos básicos: órgão, piano, violino, tudo isso existe apenas no Ocidente.

O percurso weberiano vai da racionalização harmônica dos intervalos (mesmo que haja tensões nessa racionalização) até a das escalas musicais, comparando-as com o que aconteceu com a racionalização do material sonoro no Oriente, que assumiu graus e direções distintas. O Oriente supôs racionalizações baseadas em critérios extramusicais, não conferindo à esfera artística uma lógica própria. Enquanto no Ocidente houve a música racionalizada harmonicamente, no Oriente a música se racionalizou melodicamente e de acordou com as distâncias.

Em seguida, o autor trata do mundo do intelectualismo, que diz respeito à moderna sociedade ocidental, altamente racionalizada em todas as esferas e completamente desencantada. Waizbort observa que, analiticamente, esse momento é significativo, embora muito nebuloso em sua determinação histórica concreta. O caminho da arte em direção à sua autonomia a libertou dos fins práticos, se expressa pelo que Weber denomina de puro gozo estético, ou seja, voltada exclusivamente para si mesma e dotada da verdadeira e específica racionalização. A arte se projeta sobre os próprios

meios artísticos. O nascimento do puro gozo estético e das puras necessidades de expressão marca esse descolamento da nova esfera, que passa a se desenvolver segundo sua legalidade específica.

O ensaio sobre a música nos mostra que nesse processo de racionalização, os intervalos, as escalas, posteriormente as formas musicais de composição polifônica foram os resultados dessa lógica permanente, no qual influências exteriores também puderam ser detectadas, tais como o papel da Igreja e dos monacatos religiosos nesse desenvolvimento racionalizado. Mas, para Weber, nada foi tão significativo como a notação, a invenção moderna do registro das composições musicais, responsável pela crescente especialização. Cada uma das dimensões racionalizadas da música se mostra relacionada à outra, e todas elas são oriundas de uma música concebida harmonicamente. A audição humana Ocidental foi penetrada por esse desenvolvimento, à medida que o ouvido ocidental já ouve harmonicamente, pois foi educado para isso. O virtuose – os artistas educados para a execução virtuosa – e os instrumentistas se tornaram o suporte do desenvolvimento musical. O ensaio weberiano também menciona que os virtuoses, com o passar do tempo, se sentirão sufocados pelos limites que o sistema tonal irão impor à sua capacidade expressiva. Cabe registrar que a racionalização na música Ocidental não se operou de modo unívoco, deixando-se infiltrar por tensões e elementos não racionais, mas que acabam sendo absorvidos por sua lógica, nem que seja como um antídoto a ela.

Weber (1997) argumenta que na história da música, a racionalização do material sonoro se deu por uma via extramusical, no Oriente, e por uma via intramusical, sendo esse o traço específico da música Ocidental. A racionalização foi operada no Ocidente a partir de dentro do sistema sonoro – a partir do temperamento, que também foi orientado harmonicamente, assim como os intervalos e as escalas, a partir dele. O temperamento foi um dos fundamentos típicos da música racionalizada Ocidental, uma vez que afetou seus critérios melódicos e também os harmônicos. Waizbort (1997) observa que, nos Fundamentos, Weber une a ratio musical com a vida musical, mas observa que nenhuma determina a outra; assim como na Ética Protestante, os termos se entrelaçam “a partir de um complexo de nexos na

efetividade histórica que nós encadeamos conceitualmente em um todo sob o ponto de vista de sua significação cultural“ (1997:46). No final do trabalho, Weber discutirá a construção racionalizada de alguns modernos instrumentos musicais – o violino e as cordas, o órgão e o piano – e os efeitos disso no desenvolvimento da música. Trata da racionalização da polivocalidade, da importância do monacato no desenvolvimento da música moderna, até chegar ao tratamento do piano como um legítimo móvel burguês.

Leopoldo Waizbort tece comentários acerca de algumas posições tomadas por Weber no ensaio. A primeira delas se refere ao conceito de progresso, entendido não como um parâmetro valorativo da qualidade das obras, mas como um critério técnico, objetivo e inequívoco, isto é, progresso dos meios técnicos e dos meios artísticos, no caso da música. São os progressos técnicos que articulam os sentidos nessa obra de Weber. Além disso, se trata de uma sociologia que se ocupa com a racionalização no interior da esfera, o que, para Waizbort, faz derivar seu caráter histórico.

2.2. Exegese da obra: condução racional dos elementos horizontais e verticais