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A estrutura da obra Paixão Segundo São Mateus

FIGURA 2: SEQUENCIA DE VOZES NO SISTEMA TONAL.

3. A paixão Segundo São Matheus: uma análise da forma e do estilo da obra à luz da sociologia musical de Max Weber

3.2 A estrutura da obra Paixão Segundo São Mateus

Costuma-se afirmar que a Paixão segundo são João é uma obra intempestiva da juventude de Bach e que a Paixão Segundo São Mateus seria um trabalho do Bach velho e maduro. Por essa razão, a primeira seria uma obra vigorosa e dramática, ao passo que a segunda seria uma obra tranquila, grandiosa e épica. Contudo, o surgimento e a apresentação das duas Paixões datam dos primeiros anos de Bach em Leipzig e um período de apenas três anos separa

79 Ver glossário em anexo.

as duas obras. Nesse sentido, causa admiração a efetiva diversidade das duas Paixões (RUEB, 2001: 274).

Quando a Paixão Segundo São Mateus é apresentada em 1729, na Igreja de São Tomás, sua estrutura supõe uma execução por quatro naipes vocais – soprano, contralto, tenor e baixo – e doze solistas, para ser cantada dentro da igreja, no período da Semana Santa. Os cantores seriam acompanhados por um conjunto de dezoito a vinte instrumentos, dentre eles seis sopros. Já a execução da montagem realizada por Mendelssohn, cem anos depois do seu lançamento, supunha duas orquestras com quarenta músicos cada, dois coros e um coral com cerca de vinte crianças, respeitando a abundância sonora das antífonas adoradas por Bach. Embora não causasse o impacto esperado em sua primeira exibição, a Paixão é compreendida como a maior composição escrita por Bach, quer em duração, quer em executantes.

Há um trabalho intenso de subdivisão da parte vocal; o primeiro coro se fragmenta no último e no primeiro movimento da Primeira Parte da obra, nos timbres de soprano e mezzo soprano. Essas regras proporcionavam um enriquecimento do canto, uma vez que sugeriam percursos vocais consonantes a partir de um mesmo tema. Além de uma gradativa especificação das regras para o canto, a própria estrutura dos eventos a serem narrados pela Paixão também se racionaliza. Quando se trata de Bach, nota-se uma definição cada vez mais minuciosa, específica e nítida para os cantos. A Paixão Segundo São Mateus é composta por:

 25 recitativos;  13 corais;  1 coro;  11 árias;

 1 arranjo para coro e coral;

 13 arranjos entre recitativos e coros;  4 arranjos de Ária e coro;

Cada parte participa da narrativa com funções bem definidas e com as seguintes atribuições:

 Recitativos – especialmente compostos para o evangelista narrar o drama de Cristo, eles dão um significado ao texto. Neste aspecto são muito similares aos seus correspondentes na ópera.

 Corais – geralmente eram executados pelas vozes da igreja, vozes mais entendidas da congregação luterana. Suas funções são a de expressar a sensibilidade da congregação em relação ao drama litúrgico. Os corais são compostos de forma homofônica, nos quais as vozes se movem ao mesmo tempo e harmonicamente. Suas funções são a de fazer orações, além de diferirem nos papéis sonoros que cumprem em apresentações católicas e protestantes. Os corais católicos participam junto dos coros nas audições corriqueiras das igrejas; no universo luterano, as melodias dos corais formam parte de uma coletânea de cantos oriundos de antigas melodias da tradição cristã, compondo o habitus do canto litúrgico luterano. Por isso, o coral luterano era composto em geral por entendidos. A participação de Lutero nessa especificidade do canto litúrgico alemão foi decisiva, já que a música alemã já concebia a música como uma esfera autônoma, cuja legalidade própria transcendia as exigências do texto. Assim, era inconcebível para ele que a comunidade não participasse das cantorias dentro da igreja; no catolicismo, devido às complicações idiomáticas da polifonia, ela estava destinada aos especialistas da capela musical. Essa é uma concepção fundamental para a argumentação proposta nesse trabalho, acerca do uso de fundamentos e intenções racionalizadas na música de Bach. Também é de Martinho Lutero a frase: “a música é um número que canta”, afirmação que Bach explorará intensamente, com o uso obsessivo de significados numerológicos em suas harmonias.

 Textos poéticos, escritos talvez pelo próprio Johann Sebastian ou pelo poeta Christian Friedrich Henrici (conhecido como Picander) para a obra. Novamente não descrevem o drama e, sim, a impressão que ele causa. Além desses trechos poéticos, o texto cantado na Paixão se origina de duas: os

capítulos 26 e 27 do Evangelho de São Mateus e alguns hinos tradicionais da igreja luterana, que eram chamados de corais.

 Coros – peças musicais compostas, em sua maioria, de forma polifônica, cujo objetivo é o de descrever o drama e a participação do povo no enredo. Os coros têm várias funções: a semântica, simbolizando a magnificência da glória de Deus (ver primeiro coro Herr, unser Herrscher); representar as opiniões do povo – as turbas – no julgamento de Cristo; e como elemento para comentários – como o desconsolado lamento da humanidade.

 Efeitos instrumentais gradativos

A figura da página 10 do presente trabalho traz o manuscrito original de Johann Sebastian, a respeito do Evangelho de Matheus. É importante se observar que o gênero Paixão Oratório esteve muito contaminado do sentimento pietista, uma forte doutrina religiosa que sugere um vínculo individual e contínuo com o sagrado, apesar da onipresença divina. Devido a esse caráter pietista, a composição revela uma preocupação profunda do ser humano com a salvação de sua alma, com o reconhecimento do amor de Cristo e com a redenção dos pecados dos homens. Os corais e árias da Paixão são unidos à poesia livre e refletem, continuamente, o apelo pietista81.

A relação entre timbre vocal e o papel dos personagens também cumpre sucessivas racionalizações, respeitando critérios articulados pelos agentes do campo musical. Na Paixão de São Mateus, o elenco vocal é distribuído dessa forma:

 O evangelista Mateus – Tenor  Jesus Cristo – Baixo Dramático  Pilatos – Tenor

 Pedro – Baixo  Judas – Baixo

81 Sobre o pietismo na música de Bach, ver RUEB, Franz. 48 variações sobre Bach. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. Cap. 22.

 Primeiro Sumo Sacerdote – Tenor  Segundo Sumo Sacerdote – Tenor  Esposa de Pilatos – Soprano  Primeira Serva – Soprano  Segunda Serva – Contralto  Primeira Testemunha – Contralto  Segunda Testemunha – Tenor

Do ponto de vista da construção narrativa desta obra épica, Bach optou por uma fórmula relativamente simples. O personagem do evangelista – nesse caso, Mateus – vai narrando, cronologicamente, os importantes momentos da crucificação de Cristo, a partir dos trechos do evangelho desse apóstolo; em seguida, há um congelamento da cena para que os coros, árias e corais possam comentar as situações que vão ocorrendo na via crucis. Os comentários do evangelista também se intercalam com as passagens instrumentais realizadas por uma pequena orquestra.

Bach procede como instrumentista habilidoso como sempre o fez em toda a sua formação musical: aciona todos os efeitos que ele julga necessários, combina traços e estéticas no galante estilo operístico nascente; na tradicional fórmula sacra baseada no cantus firmus; faz desenhos melódicos cujo apelo se assemelha ao da música figurativa82 e usa técnicas de músico virtuose. Combinações que só são

possíveis por causa do controle excessivo que o agente musical possui do processo de criação; em termos weberianos, Bach usa fórmulas musicais cujos significados estão bem decantados 83.

Isso só foi possível por causa das intermináveis lutas artísticas entre Johann Sebastian e aqueles que lhes impunham várias restrições durante os ofícios de músico de corte, chefe de capela, professor e diretor musical. Ela está imersa na

82 Música cujas direções melódicas e/ou harmônicas fazem menção, pela fruição sinestésica, a imagens. A escola impressionista, do século XIX, teve em Debussy, um grande expoente na arte de sugerir imagens de mar, nuvens, água, chuva com os desenhos melódicos e passagens instrumentísticas.

83 Gabriel Cohn enumera os termos próximos à acepção weberiana para o termo racionalizado. A decantação de significados e o controle intenso sobre os mesmos são uns desses termos apontados por Cohn acerca do conceito weberiano.

problemática weberiana do desatrelamento das esferas de ação arte e religião, antes imbricadas.