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I. DA SEGURANÇA À SEGURANÇA HUMANA E À RESPONSABILIDADE DE PROTEGER

I.2. Da Segurança Humana à Responsabilidade de Proteger (R2P)

I.2.4. A distinção das intervenções humanitárias

A par das questões normativas, a doutrina da R2P tem sido alvo também de análises comparativas no que respeita à semelhança da sua essência com as intervenções humanitárias. Uma questão, que se torna uma não-questão se se considerar que a R2P é no fundo sucessora das Intervenções Humanitárias (IH) no sentido em que parte do ponto onde o desenvolvimento da intervenção humanitária apresentava sérias debilidades. Sendo uma delas o seu âmbito estritamente humanitário e que a R2P tem capacidade para suplantar uma vez que abrange o dever de ação: preventiva (num cenário de pré-crise), reativa (durante a sua ocorrência) e reconstrutiva (no pós-crise) (Evans 2008).

Este não é, porém, o cerne da questão. O tendencial cotejo surge essencialmente pela semelhança que ambas apresentam relativamente ao seu cariz humanitário e ao facto de recorrerem ao uso da força se tal for necessário para assegurar os seus propósitos. Ainda que a R2P constitua uma evolução em relação às IH dado que se desenvolveu sobre uma estrutura reforçada através dos pilares da prevenção e da reconstrução em cenários de crise, o facto de ser constituída também por um pilar de enforcment, de intervenção com recurso ao uso da força, gera desconfiança em relação à sua operacionalização. Um panorama acicatado pela intervenção militar levada cabo na Líbia ao abrigo deste mesmo pilar da R2P, como teremos oportunidade de abordar aquando da análise do estudo de caso, mas que de antemão sabemos tratar-se de matéria controversa quer seja pela sua ação quer seja pela sua inação (ICISS 2001). Ou seja, quando não ocorre causa sérios problemas na consciência da comunidade internacional, mas, e ao contrário, intervindo-se há sempre a possibilidade de correr menos bem e surgem outras questões muito criticas, que se colocam desde logo com a necessidade de intervir.

Não obstante, e analisando ambos os conceitos e práticas realizadas ao abrigo destas formas de proteger civis em cenários de conflito verificamos que diferem não apenas enquanto conceção teórica, mas também que se distinguem pela sua execução amplamente associada a um contexto político, social e temporal específico (quadro 5).

Quadro 5 - Principais elementos de distinção entre IH e R2P

Intervenção Humanitária Responsabilidade de Proteger

Origem Séc. XX – 1945 Séc. XXI - ICISS 2001

Referencial de aplicação

Substantivo – a proteção dos Diretos do Homem;

Conflitos em curso

Adjetivo – 4 tipo de crimes objetivamente qualificados;

Situações ameaça ou rutura da paz internacional

Ação e Atores Reativa - resposta pontual; Reduzido número de envolvidos.

Preventiva/Reativa/Reconstrutiva - resposta continuada;

Maior número envolvidos

Consentimento

Sem autorização do CS ou do Estado a intervir

Autorizada pelo CS da ONU e com ou sem anuência do Estado a intervir

Meios Uso da força Não coercivos e coercivos

Fonte: Próprio autor

Assim, embora em termos de génese se possa recuar uns séculos antes do referido período (meados do sec. XX)11, o conceito de IH sobre o qual nos debruçamos é o que advém essencialmente

da Carta das Nações Unidas, não do seu conteúdo literal mas dos ideais que lhe estiveram na base, e na medida em que representou uma nova era para ordem internacional e, concomitantemente, um novo instrumento de, e para, o Direito Internacional. No período que lhe sucedeu, várias foram as intervenções intituladas de cariz humanitário12 que fez com que o conceito fosse escrutinado por

distintas áreas do saber, fundamentalmente políticas e jurídicas, e em função disso, mais ou menos (ou distintamente) desenvolvido. De forma que é comum no domínio das Relações Internacionais e da Ciência Política verificar-se o uso de distinta nomenclatura referindo-se à intervenção humanitária, amplamente considerada, sem atender à especificidade do termo, nomeadamente no que respeita à sua jurisdicidade, centrando-se, portanto, no objetivo geral que são os imperativos humanitários de salvar vidas e/ou proteger a dignidade da pessoa humana - os fundamentais Direitos Humanos. Pelo

11 A este respeito, e para mais desenvolvimentos, Assunção do Vale Pereira em: “A intervenção humanitária no direito internacional contemporâneo” (2009). Coimbra Editora, pp 97-198.

12 Ob. Cit. pp. 415- 856, em que a autora expõe e analisa as várias intervenções realizadas sob ditames humanitários, em

que, ao longo do tempo, o conceito basilar de IH se foi confundindo com outros termos semelhantes de “auxílio humanitário” “ingerência humanitária” “assistência humanitária” usados muitas vezes de forma unívoca (Assunção 2009).

Apesar dos equívocos terminológicos, o conceito de IH tem uma noção definida podendo ser entendida como “a ameaça ou o uso da força sobre um Estado por outro Estado (ou grupo de Estados) destinado a prevenir ou pôr termo a violações generalizadas e graves dos direitos humanos fundamentais de indivíduos que não sejam seus próprios cidadãos, sem a permissão do Estado onde a força é aplicada”13 (Holzgrefe 2003, 18). Uma ação tendente, portanto, a proteger um grupo de

pessoas vítimas do seu próprio Estado, ou quando este não tem capacidade ou interesse em proteger (pense-se por exemplo nos Estados falhados), sem o seu consentimento14 recorrendo ao uso da força

armada, de forma unilateral, e sem legitimação por parte do CS (Assunção 2009).

Um conceito preciso e de fácil apreensão que não encontramos para a R2P, e que se deve ao facto de a sua construção se ter alicerçado mais em práticas e políticas do que na academia (Evans 2008). A sua própria terminologia expressa o seu conteúdo - Responsabilidade de Proteger – a partir do qual se estruturou todo um princípio de ação que se iniciou como vimos com a ICISS, posteriormente levado à uma cimeira mundial da ONU onde foi reconhecido por todos os seus Estados Membros e, mais tarde, desenvolvido com contributos práticos como sucedeu com o já referido relatório de 2009 sobre a sua implementação. Em termos conceptuais o significado da R2P encontra-se na sua estrutura tripartida que prevê distintos pilares de ação que tem inerente uma linguagem não conflitual, que permite um debate mais preciso e consistente (Evans 2012).

Constata-se assim uma distinta construção, desde logo, temporalmente marcada e por isso determinante para os referenciais de aplicação e, consequentemente, para o tipo de resposta, atores e meios envolvidos. Dentro deste contexto, a R2P resulta de uma construção prática, sem uma noção tão precisa como a de IH como vimos, desenvolvida em torno da noção do exercício da soberania responsável e não da doutrina da intervenção humanitária (Ban Ki-moon 2009; Bellamy 2013), mas que não a enfraquece. Com efeito, têm sido amplamente comparadas, e até confundidas, ou mesmo consideras a continuidade uma da outra - a R2P como sucessora da IH. Contudo, a R2P teve na sua

13 Tradução livre de: “the threat or use of force across state borders by a state (or group of states) aimed at preventing or ending widespread and grave

violations of the fundamental human rights of individuals others than its own citizens, without the permission of the state within whose territory force is applied”.

génese mais do que eliminar uma terminologia irremediavelmente associada ao uso de meio coercivos militarizados (e apenas esses como resposta) a que a IH estava intrinsecamente ligada (Evans 2008). Surgiu da necessidade de agregar o exercício da soberania à responsabilidade, de forma a manter uma dada população segura dentro de um determinado território. Consistindo a construção na procura de espaços comuns capazes de potenciar a alteração na forma e meios de intervir para proteger pessoas em cenários de crise, não obstante o aproveitar da possibilidade de se desligar da confusão terminológica e das experiências menos bem-sucedidas das intervenções humanitárias. Uma abordagem ao “direito de intervir” que, como exposto no quadro II, tem em consideração um novo panorama de atores na cena internacional, um contexto com distintas ameaças e repercussões, ideias de humanitarismo político e reforço de legitimação da ação, esta que não se basta por um agir perante situações limite, tendo como pilar essencial a prevenção prévia à intervenção stricto sensu, e a reconstrução nos pós-intervenção. O quadro conceptual da R2P tem vindo deste modo a distanciar-se do discurso das intervenções humanitárias realizando o seu próprio caminho, no entanto ao nível prático apenas a experiência o dirá à medida que as situações a forem exigindo (Evans 2006).