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A divinização das passividades

No documento deborahterezinhadepaulaborges (páginas 133-149)

Sou muito mais apaixonado do que sábio. [...]. Ora, isto é simultaneamente uma grande fraqueza e uma preciosa força; e experimentei-o bem, nestes últimos tempos. Não somos senhores absolutos desse gosto, dessa paixão de viver que me invejas [...] desse gosto e alegria de agir, portanto: é um manancial que em nós jorra sem nós, que é certo que podemos utilizar, canalizar, mas não manter nem alimentar. Se uma energia primeira se empobrecer no fundo de nós mesmos, nenhum raciocínio, nenhuma indústria poderá restaurá-la. [...]. Que NS nos conserve portanto, no fundo da alma, a tensão para o progresso e o mais ser;– e que simultaneamente volte só para Ele essa tendência profunda! – Porque, fonte da Vida, Ele é o único Senhor e Dispensador desse duplo vigor fundamental... Repito-te: experimentei profundamente essa dependência, essa impotência, que é nossa, para nos darmos o gosto (tão necessário) de viver. Foi aí que me senti tocado. Não será isto, um poucochinho, o tédio mortal de que NS agonizou?

(TEILHARD DE CHARDIN, 1966, p. 180)100

Tomar consciência de que a vontade de agir, o gosto de viver, tudo aquilo que faz o homem abandonar seu estado de inércia em direção ao progresso, não está no homem, mas lhe é dado, é algo que jorra em nós sem nós; eis outro aprendizado de Teilhard durante os anos de confronto, como nos revela esta carta enviada à prima. É na Guerra que o jovem jesuíta passa a refletir mais intensamente sobre aquilo que ele mesmo chamará de passividades101. E assim, como no caso das atividades, é em sua obra maior de espiritualidade102 que suas reflexões retomam de forma amadurecida. Neste escrito, Teilhard afirma que a vida do homem é dividida em duas partes: aquilo que o homem faz e aquilo que ele sofre, isto é, suas atividades e suas passividades. Mas, como em todo pensamento teilhardiano, não há dualidade e contradição, e sim dialética. A fase das atividades não se contrapõe à fase das passividades. Muitas vezes elas parecem se misturar de forma tal que é

99 TEILHARD DE CHARDIN, Pierre. Le Milieu Divin: essai de vie intérieure. Paris: Éditions du Seuil, 1957.

100 TEILHARD DE CHARDIN, Pierre. Gênese de um Pensamento: cartas 1914-1919. Lisboa: Livraria Morais Editora. Carta de 28 de dezembro de 1916.

101 A carta onde Teilhard fala à Marguerite sobre essa tomada de consciência, e que citamos acima, é datada de 29 de junho de 1916. Um dia depois, em 30 de junho, ele escreveria no seu diário de Guerra: “O Coração de NS é a fonte de todas as passividades que me dominam, e de todas as atividades que me despertam e me conduzem”. NEMECK, Francis Kelly. Teilhard de Chardin et Jean de la Croix: les 'passivités' dans la mystique teilhardienne comparées à certains aspects de la 'nuit obscure' de saint Jean de la Croix. Paris, Montréal: Desclée & Cie; Bellarmin, 1975, p. 83. Segundo Nemeck, na referida obra, é nesta passagem que Teilhard emprega, pela primeira vez por escrito, o termo “passividades”.

impossível separar uma da outra.

Ao mesmo tempo em que o Homem, pelo próprio desenvolvimento de suas potências, é conduzido a descobrir as metas cada vez mais elevadas para a sua ação, ele tende a ser dominado pelo objeto de suas conquistas; e, como Jacó em seu corpo a corpo com o Anjo, ele acaba por adorar aquele contra o qual lutava. A grandeza que ele desvelou e desencadeou o subjuga. E então, de acordo com sua natureza de elemento, ele é levado a reconhecer que, no ato definitivo que deve reuni-lo ao Todo, os dois termos da União são desmesuradamente desiguais. Ele, o menor, tem a receber mais do que a dar. Ele se encontra possuído por aquele de quem acreditava ter-se apoderado. (TEILHARD DE CHARDIN, 1957, p. 60)103.

Ser possuído por quem acreditávamos possuir, agir impulsionados por uma força que nos é exterior, mas que acreditávamos ser nossa força interior. Assim se entrecruzam na existência a nossa vontade e a vontade de Deus como duas mãos que se juntam para tecer o mundo. Tendo se unido a Deus através da ação e maravilhado pelos encantos dessa união, o homem deseja também uma outra união, a saber, “[...] aquela, na qual ele, permanecendo em si mesmo, se desenvolveria menos do que se ele se perdesse em Deus” (TEILHARD DE CHARDIN, 1957, p. 61-62)104. O desenvolvimento aqui se concentra no desenvolver-se para e com Deus, ou, para ser mais fiel aos termos teilhardianos, no perder-se em Deus, no abrir-se para assim ser penetrado por Deus.

Segundo o místico francês, “[...] aquilo que não é operado em nós é, por definição, sofrido, experimentado” (TEILHARD DE CHARDIN, 1957, p. 62)105

; enfim é recebido. É em termos de receptividade à ação divina que devemos entender o conceito de passividades, tal como empregado pelo pensador (NEMECK, 1975)106. O homem, no decorrer de sua vida, é constantemente chamado a abrir-se à vontade de Deus, a mergulhar e se deixar tomar por essa vontade. Saber-se sempre tocado pelos desígnios da Providência, estar certo de se encontrar sempre no lugar desejado por Deus, torna a vida mais bela mesmo nos momentos onde tudo parece indicar o contrário. Assim pensava Teilhard e seu pensamento nada tem de resignado. Ao mesmo tempo que vai nos ensinar a amar a mão de Deus que nos faz dobrar, ele

103 TEILHARD DE CHARDIN, Pierre. Le Milieu Divin: essai de vie intérieure. Paris: Éditions du Seuil, 1957.

104 Ibid. A esta fase Teilhard chama de fase ulterior, mas entendemos que isso se dá por razões didáticas, para um melhor entendimento de seus leitores. Como já salientamos, o pensamento de nosso jesuíta é marcado e ancorado na dialética que marca a vida. Teilhard salienta ainda que as duas fases ativa e passiva da vida são desiguais. Embora possa parecer que a primeira ocupa o primeiro lugar, é a segunda, ou seja, a fase passiva a mais extensa e profunda. Somos feitos muito mais do que nos fazemos, porque mesmo quando agimos, somos guiados pela força criadora.

105 Ibid.

106 NEMECK, Francis Kelly. Teilhard de Chardin et Jean de la Croix: les 'passivités' dans la mystique teilhardienne comparées à certains aspects de la 'nuit obscure' de saint Jean de la Croix. Paris, Montréal: Desclée & Cie; Bellarmin, 1975.

vai nos ensinar a tomar essa mão para junto dela lutar contra o mal. O homem de ação que foi nosso jesuíta tem conhecimento de que há momentos na vida em que o agir se torna penoso e difícil. Por isso, assim como é muito importante no estudo de sua obra falar das atividades, é também essencial falar das passividades. De acordo com Nemeck (1975,p. 66) esta

[...] palavra 'passividade' se encontra frequentemente nas suas obras, notadamente entre 1916 e 1927. Ela se descobre especialmente nos contextos que tratam de um e de outro aspecto da doutrina cristã do desapego, da privação. O estudo das passividades em Teilhard equivale assim praticamente ao estudo do mistério do despojamento interior contido na sua mística.107

Esta referência nos indica que o pensador do Auvergne se dedicou ao tema das passividades no período que vai da Guerra à redação de Le Milieu Divin. Sua preocupação parece ser, como no caso das atividades, conciliar o ideal cristão de despojamento e de amor ao mundo, de resignação e de luta frente ao Mal.

Em muitos dos escritos de Teilhard aparece o termo passividades, mas quase nunca ele submete o conceito a uma qualificação particular. É apenas em alguns casos que ele determina o gênero específico (NEMECK, 1975)108. Durante a Guerra, por exemplo, ele fala das passividades de existência. Em Le Milieu Divin trata das passividades de crescimento e diminuição. E em Le Milieu Mystique, escrito do ano de 1917, quando se encontrava na frente de batalha, ele cita uma “passividade de ordem superior” (TEILHARD DE CHARDIN, 1965, p. 163)109.

No ano de 1916, quando Teilhard vivia seus anos de Guerra, numa carta à prima Marguerite, aparece pela primeira vez o termo “passividades da existência” (NEMECK, 1975)110. Depois de ter falado sobre a importância da atividade do homem, do valor do esforço humano, ele diz:

E, simultaneamente, permaneço fiel ao meu culto do outro componente do real, isto é, das energias dominantes que fazem dobrar e ajoelhar-se as nossas mais vigorosas resistências. – Gostei muito das linhas de Blondel, que me enviaste, acerca da dor, porque em cada palavra transparece a ação criadora, formadora, de Deus, cuja influência é a única capaz de nos arrancar a nós mesmos 'para em nós pôr qualquer coisa que não é nossa'. – 'A alegria da

107 NEMECK, Francis Kelly. Teilhard de Chardin et Jean de la Croix: les 'passivités' dans la mystique teilhardienne comparées à certains aspects de la 'nuit obscure' de saint Jean de la Croix. Paris, Montréal: Desclée & Cie; Bellarmin, 1975.

108 Ibid. Seguimos neste trabalho a mesma divisão feita por este autor das passividades de existência, passividades de crescimento e diminuição e passividade de ordem superior.

109 TEILHARD DE CHARDIN, Pierre. Écrits du temps de la guerre: 1916-1919. Paris: Bernard Grasset, 1965, p. 163. Do escrito Le Milieu mystique.

ação de outro em nós', eis precisamente o que faz com que me pareçam tão doces e adoráveis as passividades da existência (já que é Deus quem por elas prima em nós), ao ponto de que, se não reagisse, esqueceria que o êxito de qualquer criatura está ligado à sua boa-vontade agente, e que nenhuma fatalidade imanente nos empurra para o êxito. (TEILHARD DE CHARDIN, 1966, p. 180)111.

Na dor e no sofrimento Teilhard entrevia a ação criadora, formadora, santificadora de Deus. Sentir a ação de Deus em nossas vidas é o que, segundo ele, poderia tornar doces e adoráveis as passividades da existência. Essas passividades fariam o homem sair de si mesmo para deixar-se tomar pelo Maior que ele. O sentimento experimentado pode ser tão inebriante a ponto de levar o homem a uma entrega tal, que ele, o homem, perderia seu interesse e sua vontade de agir. Nesta mesma carta Teilhard expressa à prima seus votos de felicidades para o ano vindouro nos seguintes termos: “[...] que pela alegria e pelo sofrimento, pelo trabalho e pelas passividades, pelo êxito e pelo insucesso, pelas reuniões e pelos lutos, NS cresça em ti e ganhe o primeiro lugar na tua ação e nas tuas afeições” (TEILHARD DE CHARDIN, 1966, p. 178)112. Deixar o Senhor crescer e ganhar o primeiro lugar em nossas vidas; eis a função das passividades e o desejo maior de nosso místico.

Para que Deus tome nossas vidas, para que penetre em nós, não é necessário, portanto, que nos deixemos dominar pela dor. É preciso compreender bem o sentido ou o significado das “passividades de existência”, para que não as confundamos com a aceitação pura e simples do sofrimento.

A expressão 'as passividades da existência' designa portanto, para Teilhard, todas as energias invasoras que constituem o nó da ação purificadora de Deus na alma. Elas são chamadas 'passividades' em razão da atitude receptiva da alma, e elas são qualificadas 'da existência' porque sem elas a alma não pode nem chegar à plenitude de sua própria existência, nem contribuir eficazmente ao máximo do real. (NEMECK, 1975, p. 72)113.

Ou seja, o termo passividades da existência indica antes de tudo a ação de Deus na vida humana, ação que ajuda o homem no seu caminho para o mais-ser. Não se deve pensar nas passividades como a atitude passiva do homem frente aos males do mundo, mas antes como a sua atitude receptiva à ação e presença divinas, que se dão tanto nas alegrias e vitórias, quanto nas tristezas e derrotas.

111 TEILHARD DE CHARDIN, Pierre. Gênese de um Pensamento: cartas 1914-1919. Lisboa: Livraria Morais Editora, 1966. Carta de 28 de dezembro de 1916.

112 Ibid. Carta de 28 de dezembro de 1916.

113 NEMECK, Francis Kelly. Teilhard de Chardin et Jean de la Croix: les 'passivités' dans la mystique teilhardienne comparées à certains aspects de la 'nuit obscure' de saint Jean de la Croix. Paris, Montréal: Desclée & Cie; Bellarmin, 1975.

As reflexões de Teilhard sobre as passividades ganham força durante a Guerra e nos anos seguintes, chegando ao auge quando ele redigia Le Milieu Divin. Mas isto não quer dizer que, durante os anos de juventude, o místico do Auvergne não tenha se ocupado do tema. Ele passou pela experiência da morte muitas vezes em sua vida e de modo particular foi marcado pela morte, no ano de 1902, de seu irmão mais velho Albéric. Esta perda é constantemente comentada com os pais nos anos em que o jesuíta passou no Cairo (1905-1908) e também nos anos de teologia em Hastings (1908-1912). Numa carta enviada do Cairo, em 26 de setembro de 1906, ele comenta com os pais sobre o aniversário de morte do irmão e demonstra sua fé. Diz ele:

É amanhã o aniversário de Alberic, que, como de costume, me leva a pensar um pouco mais em vós, nos vossos filhos, nos velhos tempos; apesar da tristeza, o dia 27 torna-se uma festa de família. Convosco pedirei a N.S. e à Virgem Santíssima que leve cada um de nós a realizar o maior bem possível, pelos meios que Eles quiserem (TEILHARD DE CHARDIN, 1967, p. 118)114.

O tom nos leva a pensar nas lembranças e na saudade dos velhos tempos em que a família estava reunida. Mas à tristeza se junta a alegria de saber-se realizando a vontade de Deus. Um ano depois, em 1907, outra carta nos indica o desejo inato de Teilhard de, na dor ou no contentamento, sentir-se cada vez mais próximo de Deus: “Peço a Deus por Quem vos deixei, que abençoe para vós, como entender, os meses que vêm; saberá certamente fazer com que sirvam para nos aproximarmos d'Ele” (TEILHARD DE CHARDIN, 1967, p. 209)115

. Em muitas outras ocasiões, o jovem jesuíta pensa no sofrimento. Cresce nele a consciência de que, muitas vezes o mal é inevitável. Ao mesmo tempo, no entanto, ganha forma em seu pensamento a certeza de que “[...] é necessário lembrarmo-nos que graças ao amor de Deus as privações podem ser-nos tão úteis como muitas satisfações” (TEILHARD DE CHARDIN, 1967, p. 131)116 ou de que “[...] Deus não lhe poupa separações e cuidados. De tudo isto, é ainda Ele que deve sair engrandecido por nós, impondo-se cada vez mais à medida que tudo desaparece, o único capaz de tudo substituir e de tudo reconstituir” (TEILHARD DE CHARDIN, 1967, p. 170)117.

O que à primeira vista parece ser ausência de Deus na vida humana toma para o místico francês a forma de presença ativa do Criador, que se impõe ao homem quando tudo o

114 TEILHARD DE CHARDIN, Pierre. Cartas do Egito: 1905-1908. Lisboa: Livraria Morais Editora, 1967. Carta de 26 de setembro de 1906.

115 Ibid. Carta de 29 de dezembro de 1907.

116 Id. Cartas de Hastings e de Paris: 1908-1914. Lisboa: Livraria Morais Editora, 1967. Carta de 15 de setembro de 1910.

que lhe é mais caro desaparece, que preenche os vazios da existência substituindo a dor por seu infinito amor.

Numa carta escrita aos pais, por ocasião da morte da irmã Françoise, Teilhard deixa jorrar palavras de profunda fé que nos revelam um homem que se sente, em todos os momentos da vida, abraçado pela misericórdia divina. Ele vive a dor intensamente, sobretudo por não poder estar do lado de seus pais naquele momento; mas consegue se alegrar com a certeza de a morte não é separação, mas união ao Maior que tudo:

Esta manhã chegou-me diretamente de Xangai (por deferência de um dos nossos Padres, suponho) um telegrama anunciando que a Françoise acabava de se reunir ao Albéric.– Tinham oferecido a Deus a vossa querida filha: Ele acaba de aceitá-la definitivamente. Só Ele é o fim de todas as coisas, por isso, da sua parte, levar alguém não é separar, mas unir. Que seja feita a sua Vontade. – Sei que muitas vezes têm repetido esta frase desde há três dias; mas sem que isso os impeça de sofrer cruelmente; também eu daria muito para estar neste momento junto de ambos e poder falar-lhes um pouco. A nossa maior consolação é que seria difícil sonhar com um fim mais santo e mais belo. Françoise acaba, na verdade, de encontrar a morte que desejava acima de tudo – e a que aludia na sua última carta: na China, e por causa da China. Para nós, era certamente consolador saber que ela poderia ainda, de longe em longe, conversar conosco; – mas não seria egoísmo chorar demasiadamente ao vê-la alcançar aquele fim que ambicionava como um ideal longínquo e pelo qual lutava em cada dia da sua vida? – Quantas vezes me confiava o seu desejo de ir para junto de Deus o mais depressa possível.. N.S. recompensou-a antecipadamente: nem sequer temos o direito de lamentar o bem que ela teria feito numa vida mais longa. Bela é a vida que executa os planos de Deus. Ora, em Françoise, formaram e ofereceram ambos a Deus uma santa: não poderiam sonhar melhor destino para a vossa filha. – Aqui, rezaremos muito por ela e por vós; enviei também umas palavras a Canterbury, onde as missas por sua intenção serão numerosas. Mas creio que poucas preces alcançarão Deus como as dos velhos que Françoise encaminhou para o Paraíso, principalmente as dos chineses. – Coragem, meu pobre pai e minha pobre mãe; os momentos de sofrimento passam e aproximam-nos de Deus: então podemos oferecer-Lhe qualquer coisa, e apresentarmo-nos confiadamente na sua presença. Acreditam que os filhos que vos restam os amam ainda mais, e muito dariam para os confortar.(TEILHARD DE CHARDIN, 1967, p. 174-175)118.

A fé de Pierre não o impede de enxergar a existência do mal, da dor, do sofrimento. Ele sabe que estes existem e que às vezes não podem ser evitados. É preciso aceitar a vontade de Deus, diz ele ao pais, certo de que o cumprimento e aceitação dessa vontade não impedem as penas da vida. Durante a existência o homem, ainda que fortalecido pela fé, sofre cruelmente. A fé não livra da dor, mas pode transfigurá-la. Pode fazer com que olhemos mais a frente, que olhemos um pouco além de nós mesmos e de nosso egoísmo, para então aí ver as

118 TEILHARD DE CHARDIN, Pierre. Cartas de Hastings e de Paris: 1908-1914. Lisboa: Livraria Morais Editora, 1967. Carta de 07 de junho de 1911.

mãos de Deus que nos abraçam, para enfim perceber a beleza da vida que executa sempre, em nós e apesar de nós, os planos de Deus.

A morte de Albéric, ao mesmo tempo que o desaparecimento de todos os seres queridos dentro e fora da família, constituem certamente 'intrusões' dolorosas no seu 'desenvolvimento individual': elas são sem ele e apesar dele. No entanto, além de suas aparências, estas perdas testemunham eficazmente a 'influência criadora, formadora de Deus', influência que o arranca de si mesmo, libertando-o e 'renovando-o'.(NEMECK, 1975, p. 78)119.

Teilhard tem, desde muito cedo, consciência da dor e do sofrimento causados pelas perdas e separações e a Guerra faz isto aflorar ainda mais em seu espírito sensível. Em Verdun, nos meses de maio e junho de 1916, ele vive uma profunda crise interior, como demonstra este desabafo feito à prima:

[...] não corri nenhum perigo especialmente sério; mas, talvez por indisposição física ou moral, esta estadia em Verdun (que não lamento) cansou-me imenso. É caso para aprender a dizer com S. Paulo: 'É quando me sinto fraco que sou realmente forte'. Não é verdade que não é mau sentirmo- nos a perder o pé? Agarramo-nos mais sinceramente à mão de NS. Vou tratar de, até sexta-feira, me aproximar o mais possível [...] do Coração de NS. É grande a minha necessidade de n'Ele retemperar a minha alma, para ter mais fé, mais dedicação e mais benignidade. (TEILHARD DE CHARDIN, 1966, p. 119)120.

Em meio ao fogo cruzado, Teilhard sente perder o pé e ao mesmo tempo descobre que o desespero consequentente dessa perda é que nos faz agarrar ainda mais forte a mão de Deus. A estadia em Verdun o cansou demasiadamente, ele desabafa. São os primeiros sinais de sua crise interior, crise que é resultado de um conjunto de fatores. Em primeiro, Pierre se sente embaraçado com o fato de não participar ativamente do combate ou de não se esforçar como tantos outros soldados. Em segundo lugar, na Guerra ele se vê privado do sacramento e isto o entristece porque faz com que Cristo pareça se esconder dele.

Interiormente, ainda não saí absolutamente da espécie de entorpecimento em que me envolveu uma vida feita, desde que estive contigo, de perpétuas deslocações para ou numa região simultaneamente desejada e temida. De novo me senti, já não a mônada individual e cheia de planos de ação pessoal, mas a mônada perdida no grande choque dos povos e das energias brutais; isso como que me atordoou e despersonalizou um pouco. Acrescenta-lhe a

No documento deborahterezinhadepaulaborges (páginas 133-149)