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A divisão do espaço interno da QA3 e QA4 – Leituras e significados 117

8. Discussão de resultados 106

8.4. A divisão do espaço interno da QA3 e QA4 – Leituras e significados 117

Como vimos anteriormente em 7.3., as características estruturais do substrato onde foi escavada a QA3, designadamente as diaclases que atravessam longitudinalmente a gruta, e a existência de condições propícias à precipitação de carbonatos, levaram à génese de carbonatações secundárias de CaCO3 no chão do corredor, da antecâmara, da câmara e parte da parede desta.

Estas formações foram interpretadas como sendo uma argamassa artificial feita pelos construtores da gruta, com o intuito de dividir o monumento e criar diferentes espaços.

No século XIX, no relatório de António Mendes pode ler-se “Esta furna está dividida por uma saliencia que faz quatro divisões (…) também sobe pela abobada à altura de 1 metro e acaba em bico…” (Cruz, 1906: 90). A interpretação que faz a seguir é perfeitamente aceitável num colector do século XIX porém, é de estranhar que tenha tido seguidores até aos dias de hoje: “Junto a esta saliencia é que appareceram as lanças de sílex, as mais

aperfeiçoadas e as contas as mais variadas; parece que aquella divisão pertencia ao chefe d’aquella tribu” (Cruz, 1906: 90).

Carlos Ribeiro, como geólogo, percebeu o que eram estas saliências e escreve uma anotação: “Saliencia do tufo n’esta caverna, formando um cordão que para O. se trifurca e deixa ver-se adherente à parede E, formando como um tabique que se adelgaça para a superficie e desapparece, como succede aos veios de tufo que atravessam as rochas persistentes.” (Cruz, 1906: 90). Esta nota é esquecida pelos investigadores do século XX.

Logo no ano seguinte de 1907, é publicado o estudo de Marques da Costa que a este respeito afirma a origem antrópica destas saliências: “…com um addicionamento de um cordão de perfil semicircular de quasi 0,1m de raio, o qual assenta no plano horizontal do pavimento. Este cordão é constituído por uma especie de cimento, que, com quanto tenha o aspecto de calcareo estalagmitico, se vê ser obtido artificialmente com o pó proveniente da pedra calcarea, que se encontra na localidade.” (Costa, 1907: 215-216).

Volvidos cinquenta anos, Leisner e seus colaboradores concordavam com esta tese ao escrever no seu estudo sobre as grutas do Casal do Pardo: “ Le sol du monument, horizontal dans la chambre, se relève considérablement vers l’extérieuer. Il est divisé, dans la chambre comme dans l’antichambre, par des cordons de ciment préparés avec de la poudre calcaire.” (Leisner et al, 1961: 18).

Mas também na gruta 2 (que não é nosso objecto de estudo), observam o mesmo fenómeno e descrevem-no: “Dans le prolongement de ces saillies pariétales le sol de l’antichambre est parcouru par un cordon ondule en ciment artificiel préparé avec de la poudre de pierre locale. Cette division semble indiquer que les deux secteurs de l’antichambre étaient destines à des usages différents” (Leisner et al, 1961: 15-16).

Em 2003, J. Soares, ao abordar esta questão, diz discordar daqueles autores. Todavia, não afirma tratarem-se de concreções naturais. Limita-se a argumentar, que as linhas atravessam o espaço da gruta de forma indiferenciada, para concluir que isto “…pressuporia o precoce alargamento das funções funerárias da câmara à estrutura de acesso.” E logo a seguir regista: “A diferenciação do espaço intra-sepulcral, em análise, pode ser lida como um reflexo de alguma desigualdade social e/ou da necessidade de gerir

um túmulo sobrelotado, onde coexistiram, por hipótese, sepulturas primárias e ossário.” (Soares, 2003: 56).

Relembramos que o processo de formação destas carbonatações ocorreu por precipitação de carbonatos, a partir da circulação ascendente de fluidos carbonatados ao longo das diaclases, sobre as superfícies escavadas (chão e paredes da gruta).

Com efeito, através de oscilações do nível freático, por percolação, estes fluidos ascenderam e, por precipitação no topo das fissuras, geraram aquelas concreções. Este facto, deu-se obviamente após a construção da QA3, mas não sabemos ao certo quando. No entanto, a sua génese só foi possível num ambiente fisicamente estável, sem movimentações internas ou revolvimentos de depósitos dentro da cavidade. Por último, como vimos na análise da lâmina delgada da amostra V-B, esta concreção formou-se sob a estratigrafia. Assim, o mais provável é que estas formações tenham aparecido após o abandono do monumento depois das inumações do Calcolítico final/Bronze antigo. A existência aqui de uma estratigrafia preservada concorre a favor deste contexto estabilizado.

Por tudo isto, é abusivo falar de divisões com cimentos artificiais do espaço da QA3 feitas pelos construtores e/ou utilizadores. Por outro lado, não é seguro a partir da descrição de António Mendes, falar de contextos artefactuais diferenciados, quando o mais provável é que as concreções carbonatadas se tenham formado nos séculos subsequentes à utilização desta necrópole.

De igual modo, em relação à QA4, há confusão entre aquilo que é produto de um fenómeno natural geológico e aquilo que é uma construção artificial feita pela mão humana.

Isto teve óbvias consequências na interpretação dos espaços. Desde logo, considerar as carbonatações das cavidades naturais de dissolução e as suas superfícies, um produto de um alargamento que foi construído pelo homem.

Em contrapartida, a estrutura composta por lajes e pedras de rochas diferentes daquela onde está escavada a gruta, foi interpretada, como um abatimento natural de uma abóbada (Costa, 1907: 323).

As formas de dissolução na QA4 são vistas como um espaço interior e integrante do monumento. Um prolongamento da câmara, que adquire uma importância acrescida pela suposta função de “altar”. Na realidade, é um espaço relativamente exposto e externo à gruta 4. Neste sentido, está desprovido da “intimidade” necessária à deposição de corpos.

Destas inferências erradas, resultaram abusos interpretativos acerca do significado e arquitectura da QA4. Ao conjunto da estrutura e concreções, enquadrados pelas concavidades naturais, foram atribuídos significados de “altar” dentro de um “nicho” na parede NW da câmara, ao qual se veio associar um espólio e um ritual de fogo.

“A partir deste ressalto, que terá sido em parte afeiçoado como possível altar, desenvolvem-se, na vertical, três depressões, alargadas na base, que podem ter correspondido a uma tentativa de alargamento da câmara, mal sucedida, ou à deliberada criação de um espaço diferenciado, segundo a lógica que presidiu à execução dos nichos dos monumentos 3, 4 e 7 de Alcalar.” (Soares, 2003: 60).

E ainda: “No mesmo túmulo, encontrou-se uma estrutura de tipo altar, também ela provavelmente associada a rituais de fogo. Esta estrutura possui escassos paralelos entre nós.” (Soares, 2003: 44).

É verdade que as transformações sócio-económicas do III milénio cal AC se reflectem nas diversas áreas da vida destas comunidades. A arquitectura e os novos simbolismos dos espaços criados são apenas mais um reflexo. A progressiva complexificação social e a emergência de grupos com estatuto diferenciado podem estar espelhadas em alguns contextos de espaços funerários. Mas por enquanto, os exemplos de individualização do espaço interno em hipogeus para o território português são poucos.

Poderíamos considerar um exemplo a concavidade hemisférica escavada na Gruta II de Ribeira de Crastos (Jordão e Mendes, 2000), um espaço diferenciado dentro da câmara, mas também ele mal conhecido. Naturalmente, que esta escassez pode estar relacionada com o número reduzido de monumentos conhecidos e sobretudo pela falta de contextos preservados pois a existência de nichos, pequenos cubículos diferenciados, e banquetas são estruturas vulgares no hipogeismo Mediterrâneo.

No que respeita à necrópole da Quinta do Anjo, somos da opinião que não há elementos arquitectónicos de per si ou associações contextuais espaço/inumação/espólio que sejam individualizáveis. Se existiram não chegaram até nós elementos que nos permitam colocar essa hipótese em nenhuma das quatro grutas.

A diacronia de utilização da necrópole da Quinta do Anjo durou várias centenas de anos e assistiu provavelmente a diversas transformações na relação das comunidades com este espaço. Estas ter-se-ão traduzido numa evolução das práticas de inumação, deposição de conjuntos artefactuais e suas diferentes associações num mesmo espaço. O que cada uma das sucessivas “visitas” depositou, retirou, destruiu ou reutilizou, não sabemos. A falta de uma sequência de contextos preservados dificulta as nossas conjecturas sobre a relação que estas comunidades tiveram com aquele espaço.

Como temos vindo a demonstrar, os dados materiais que possuímos, não são suficientemente bem conhecidos e seguros, para elaborar análises tão complexas como a enumeração de rituais e seus significados.

No entanto, a análise geo-arqueológica permitiu corrigir algumas destas leituras, ao determinar de forma objectiva os elementos que eram de origem natural e aqueles que o não são. Deste modo, apesar do mau estado de conservação, e de já não ser possível fazer ali escavações arqueológicas, esta nova perspectiva viabilizou importantes conclusões acerca da arquitectura original destes monumentos.