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A divisão sexual do trabalho na estruturação da vida social

1. Gênero, trabalho e saúde mental

1.2. A divisão sexual do trabalho na estruturação da vida social

Em um mesmo momento histórico, os sentidos atribuídos ao trabalho podem ser bastante diferentes e complexos. Em função da diversidade de práticas existentes, o que é considerado trabalho varia de acordo com os critérios estabelecidos por cada agrupamento social e suas circunstancias políticas, econômicas, históricas e culturais. Contudo, a noção moderna de trabalho é fortemente ligada ao conceito engendrado, desde Adam Smith, pela economia política que relaciona o trabalho ao valor.

Karl Marx e os teóricos marxistas, influenciados por essa concepção de trabalho- valor, acreditam que o trabalho corresponde à atividade humana que transforma a natureza nos bens necessários à reprodução social. Na teoria marxista sobre o trabalho, houve uma preocupação acentuada em diferenciar o trabalho produtivo (aquele que produz mais-valia) do reprodutivo (que não produz mais-valia, mas é essencial para a manutenção do sistema capitalista). Segundo Hirata e Zarifan (2009), essa definição possibilitou avançar na conceituação do trabalho assalariado, inaugurando a ideia de trabalho como atividade social mensurável e passível de ser objetivado.

Todavia, nessa caracterização o trabalho doméstico acaba sendo considerado improdutivo, mesmo contribuindo na economia doméstica. A partir dos anos de 1970, essa definição passou a ser criticada por partir de um modelo assexuado de trabalho, em que “o masculino é apresentado como universal e as relações de gênero não são contempladas, além de se limitar à esfera da produção e de não incluir adequadamente as formas de trabalho diferentes da assalariada” (Brito, 2005, p. 881).

O gênero se manifesta materialmente em duas áreas fundamentais, de acordo com Mathieu (2009, p. 223): “1) na divisão sociosexual do trabalho e dos meios de produção, 2) na organização social do trabalho de procriação, em que as capacidades reprodutivas das mulheres são transformadas e mais frequentemente exacerbadas por diversas intervenções sociais”. Todas as outras características relativas ao gênero seriam marcas ou consequências dessa diferenciação social elementar.

Segundo Fonseca (2000), conceito de gênero enquanto construção e sua articulação com a categoria trabalho possibilitam não só uma redefinição do conceito de força de trabalho, mas também o reconhecimento de que o capital dialoga com os gêneros, tornando evidente sua capacidade e interesse, tanto de discriminar a mão-de- obra a ser utilizada, quanto de “generificar” as ocupações:

Afirmar, pois, que o trabalho passa por uma categorização de gênero, quer dizer que ele é “generificado”, ou seja, que, enquanto atividade a ser realizada, é (des)valorizado, segundo sua correspondência com os sentidos atribuídos ao feminino e masculino em uma dada cultura e em dado tempo histórico. Trata-se, portanto, do arbitrário cultural impondo-se na própria constituição de sua valorização e prestígios sociais, devendo-se situar sua análise, logo, para uma direção diametralmente oposta de uma suposta essencial natural e imanente (Fonseca, 2000, p. 24).

Assim, embora os papéis desempenhados por homens e mulheres variem nas diferentes culturas, os papéis atribuídos aos homens geralmente são mais valorizados e recompensados do que os das mulheres, os quais são quase sempre responsáveis pelas crianças e pelo trabalho doméstico. Essa divisão do trabalho, apesar de ser arbitrária e socialmente condicionada, é vista como uma disposição natural e universal e leva à desigualdade na distribuição de poder, prestígio e riqueza entre homens e mulheres.

Além disso, o conceito de gênero, ao mostrar a fragmentação e multiplicidade da categoria mulher em suas diversas circunstâncias de etnia, de nacionalidades, de orientação sexual, etc., também nos ajuda a pensar que além de sexo, o trabalho tem cor, classe e geração bem definidos, de acordo com aquilo que é ou não socialmente valorizado. No Brasil, por exemplo, a despeito de terem, segundo o censo de 2011, a maior parte dos diplomas universitários no país, as mulheres ainda têm salários mais baixos e são frequentemente encontradas trabalhando no setor informal da economia, enquanto as taxas de desemprego ainda são maiores para as mulheres (7,5%) do que para os homens (4,7%) (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2011). Entre as mulheres jovens e negras a taxa de desemprego chega a 25%. Além disso, as mulheres negras têm empregos mais precários, sendo que 71% trabalham na informalidade contra 54% de mulheres brancas e 48% de homens brancos na mesma situação (Instituto de Pesquisa Aplicada [IPEA], 2012).

Com a crise9 que vem afetando todos os países do sistema econômico neoliberal desde 2008, percebe-se que há uma diminuição em relação aos empregos estáveis em todo o mundo e uma intensa precarização social e do trabalho. Essa crise social, que é consequência do desenvolvimento da globalização desde meados dos 1980, aprofundou as consequências negativas de uma série de fenômenos de cunho neoliberal como as privatizações, a diminuição da proteção social e a redução de todos os serviços públicos (Hirata, 2011).

Diante desse cenário, nos padrões de trabalho presentemente adotados em nível internacional, a flexibilidade no volume dos empregos e no tempo de trabalho é garantida basicamente pelas mulheres (Hirata, 2001). De acordo com Brito (2000),

9 Deflagrada a partir do estouro da “bolha” financeira e imobiliária nos Estados Unidos da América, o que

afetou o mercado de investidores em todo o mundo. Tal crise trouxe à tona um importante debate sobre a sustentabilidade do modelo econômico neoliberal e sobre a responsabilidade do Estado na regulação econômica.

podem-se notar três tendências analíticas em relação à inserção feminina no processo de reestruturação produtiva neoliberal:

(1) Deslocamento de trabalho nas empresas multinacionais dos países centrais para os “países periféricos” que possuem custos de produção mais baixos e péssimas condições de trabalho;

(2) Bi-polarização do trabalho assalariado feminino, ao lado de uma maior diversificação de tarefas e funções e de um crescimento de mulheres pertencentes à categoria estatística “profissões executivas e intelectuais” tanto em países do Sul quanto do Norte;

(3) Maior vulnerabilidade das trabalhadoras frente à precarização do trabalho, processo que se reflete seja no aumento do setor informal seja nas modalidades de emprego baseadas em contratos temporários ou em outros regimes atípicos.

A conciliação entre trabalho remunerado e responsabilidades familiares parece ser um dos maiores desafios das mulheres diante do processo de transformação da estrutura das famílias e do mercado de trabalho. Vale lembrar, entretanto, que as mulheres pobres sempre estiveram inseridas no mercado, mesmo que informalmente e em péssimas condições de trabalho. Contudo, a entrada de mulheres de outras classes sociais, chama atenção para as dificuldades enfrentadas pelas trabalhadoras. Segundo Sorj, Fontes e Machado (2007), a carência de políticas públicas que permitam redistribuir ou socializar os custos dos cuidados familiares e o baixo nível de abrangência das políticas já existentes, confirmam que a gestão das demandas conflitivas entre família e trabalho permanecem em grande medida um assunto privado. Essas tendências e as problemáticas apresentadas apontam que, além da carga do trabalho doméstico, do ponto de vista de gênero, o processo de exclusão ou de inserção precária da força de trabalho nas atividades econômicas não foi homogêneo, sendo mais

intenso para a população feminina, o que contribuiu sobremaneira para o processo de “feminização da pobreza” 10 em escala global.