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Contribuições do conceito de gênero para a compreensão da interface saúde mental

1. Gênero, trabalho e saúde mental

1.4. Contribuições do conceito de gênero para a compreensão da interface saúde mental

A saúde mental é expressão de condições sociais, culturais e históricas das coletividades em que o trabalho desempenha papel crucial (Brito, 2000). Como vimos anteriormente, o trabalho realizado em nossa sociedade é determinado por complexo entrelaçamento de relações de poder, sociais, econômicas e políticas.

Questionar a saúde no trabalho a partir das relações de gênero nos permite entender qual o papel da divisão sexual na construção diferencial da saúde entre os gêneros na articulação da vida produtiva e reprodutiva (Thébaud-Mony, 2009). Os estudos da psicopatologia do trabalho ainda não consideram, de forma suficiente, a relação entre gênero e trabalho para entender o processo saúde/doença dos sujeitos, e só recentemente, vemos que a emergência do olhar sobre a mulher trabalhadora tem evidenciado a impossibilidade de separar, analítica e concretamente, os espaços de trabalho e de consumo, trabalho e descanso e trabalho remunerado e não remunerado, apontando novos temas de pesquisa (Brito, 2000).

Dejours (1992), problematizando a relação trabalho-saúde, defende que o trabalho nunca é neutro em relação à saúde, podendo tanto favorecê-la, quanto contribuir para o adoecimento. O emprego pode ser benéfico ao bem-estar, a depender também da condição de trabalho, da qualidade de sua organização e das percepções subjetivas da pessoa. Portanto, de acordo com Neves & Silva (2006), faz-se necessária não a verificação mecânica dos “impactos” do trabalho “sobre” os indivíduos, mas uma análise que leve à compreensão da complexidade da dinâmica das relações sociais.

Nos países industrializados, as pesquisas têm-se centrado geralmente nos efeitos do emprego sobre a saúde mental feminina, comparando as mulheres que são exclusivamente donas de casa com aquelas que desenvolvem uma atividade remunerada fora do lar (Ludermir, 2000). Santana, Loomis e Newman (2001) argumentam que as mulheres assalariadas relatam menos sintomas psicológicos, ansiedade, sintomas depressivos, angústia psicológica ou sintomas psicossomáticos, quando comparadas a mulheres não assalariadas.

Por outro lado, Ludermir (2008) acredita que as mudanças atuais no mundo do trabalho são importantes analisadores dos processos de sofrimento psíquico, pois

explicitam como as mudanças das atribuições tradicionais de gênero podem gerar conflitos para ambos os lados. O aumento da jornada de trabalho e o acúmulo das funções domésticas e profissionais trazem, muitas vezes, uma situação de fadiga e sobrecarga emocional.

Ludermir (2000) revisou alguns estudos que demonstram os impactos positivos do trabalho remunerado sobre a saúde mental, assim como os efeitos adversos do desemprego. A falta de remuneração e seus desdobramentos não são os únicos fatores que ligam desemprego aos transtornos mentais. Existem outras funções da inserção laborativa: a estruturação temporal do cotidiano, contatos com pessoas fora da família, metas que transcendem o nível individual, status e identidade. Os sujeitos desempregados seriam, portanto, privados dessas cinco funções do trabalho, que funcionariam como eixos de organização do viver cotidiano.

A autora também argumenta que as mulheres são muito afetadas emocionalmente pelo desemprego de seus companheiros e que os significados do trabalho são diferentes de acordo com os gêneros – enquanto os homens associam o trabalho informal à independência, as mulheres o associam à insegurança e aos salários mais baixos.

Contudo, como nos mostra Ludermir (2008), vários autores assinalam que a associação entre o desemprego e os transtornos mentais é mais frequente entre homens do que em mulheres, em especial nos desempregados de baixa renda. A experiência do desemprego varia de acordo com o significado que a sociedade lhe atribui, sendo bastante variável em relação à classe e ao gênero. Dessa maneira, o desemprego seria uma condição mais “amena” para as mulheres, já que delas não seria esperado o sustento da casa. No entanto, dados epidemiológicos de estudos atuais não confirmam tal hipótese (Barros & Oliveira, 2009; Ludermir, 2005; Argolo & Araújo, 2004).

As diferenças entre o significado do trabalho entre homens e mulheres também foi verificada por Amato, Pavin, Fernandes, Ronzani e Batista (2010) em um estudo sobre a prevalência de TMC entre bombeiros da cidade de São Paulo que verificou indicativos de depressão, estresse, comprometimentos em saúde mental geral prevaleceram para a amostra feminina. Os discursos de homens e de mulheres se organizaram diferentemente, tanto nas queixas sobre o trabalho e a vida pessoal e social, quanto nas consequências percebidas para a vida e a saúde.

Araújo et al. (2005) identificaram que existe uma relação entre o número de filhos, as características do trabalho doméstico exercido, o lazer, a renda, a situação conjugal, a escolaridade e as condições de saúde mental e bem estar psicológico dos sujeitos. Elas afirmam que, à medida que o número de filhos aumenta, também aumenta a quantidade de horas dedicadas ao trabalho doméstico, diminui o tempo disponível para o cuidado pessoal e para o lazer e, conseguintemente, aumenta a prevalência de TMC, sendo os sintomas depressivos e de ansiedade os mais comuns entre as pesquisadas.

Assim, vemos que a insegurança causada pela vulnerabilidade socioeconômica e pelas más condições de trabalho parece levar a processos de grande estresse e sofrimento psíquico, ao mesmo tempo em que o trabalho e suas circunstancias também pode ser um elemento de promoção de bem-estar subjetivo e saúde mental, em especial quando se trata do trabalho remunerado.

A articulação entre as desigualdades de gênero, o sofrimento psíquico, a baixa autoestima das mulheres e suas condições de vida, nos ajuda a pensar sobre o porquê da maior prevalência de sintomas como a depressão e ansiedade entre as mulheres. Vale lembrar que outros fatores como a violência de gênero, podem desencadear processos de intenso sofrimento psíquico e transtornos mentais entre as mulheres.

Para Neves e Silva (2006), sem desconsiderar as possíveis implicações dos sujeitos singulares na relação trabalho/saúde mental, deve-se refletir sobre o modelo de sociedade e sociabilidade em curso na contemporaneidade para entender como se dá essa relação. Trata-se de uma sociedade marcada pela centralidade do capital, onde a ideia de valor controla e determina o processo de trabalho.

Por essa razão, ao pensarmos a interface entre gênero, saúde mental e trabalho, devemos levar em consideração que as categorias gênero e trabalho são importantes dispositivos de construção da subjetividade dos indivíduos e dos coletivos, entendendo que a fabricação das subjetividades se dá por uma articulação de inúmeras instâncias, de forma que não se pode pensar em uma determinação ou primazia nesse processo de produção (Guattari, 2000).