• Nenhum resultado encontrado

A dualidade saúde pública X saúde privatista: projetos em disputa

No documento Download/Open (páginas 57-64)

O termo público/privado em sistemas de saúde refere-se à necessidade de existência de serviços voltados para essa área, no sentido de corresponder aos interesses de cada um, tendo o Estado como seu organizador. Nesse sentido, essa combinação pode existir em diferentes aspectos, como: direitos, obrigações, financiamento, prestação de serviços, regulação (ANDREAZZI, 2012).

O mercado privado de saúde, embora seja historicamente questionado pelo Movimento de Reforma Sanitária, possui relações contratuais com o SUS e conta com o apoio financeiro público para o seu desenvolvimento. Isso caracteriza a concordância do Estado, para a sua implementação. Andreazzi destaca que,

Não cremos tratar de caso isolado e sim de um fenômeno mais amplo em que os espaços reservados ao mercado e ao Estado, em um dado sistema, resultam de um processo comum. Trata-se de um frágil, fugaz e mutante ponto arbitrário de corte temporal e geográfico de unidade e luta de contrários, pois mercado e Estado se complementam e disputam ao mesmo tempo. Processo que decorre da dinâmica de cooperação ou extração de excedente a partir dos diversos bens e serviços necessários à produção do cuidado à saúde e da competição entre seus respectivos agentes. (ANDREAZZI, 2012, p. 31).

Nesse sentido, o Estado define as regras de funcionamento especificamente de interesses do capital privado, e estimula a competição nesse setor.

No Brasil, as opções políticas e institucionais definem o padrão de oferta de serviços de saúde, combinando o público estatal e empresas lucrativas com práticas liberais. Desse modo, Bravo considera que,

A estrutura de atendimento hospitalar de natureza privada, com fins lucrativos, já estava montada a partir dos anos 50 e apontava na direção da formação das empresas médicas. A corporação médica ligada aos interesses capitalistas do setor era, no momento, a mais organizada, e pressionava o financiamento através do Estado, da produção privada, defendendo claramente a privatização. (BRAVO, 2009, p. 92).

Nota-se, que a proposta de privatização não é recente, mas se consolidou com o Estado neoliberal, cujo projeto vem se firmando gradativamente, no país.

Nos anos 1990, ocorreu a consolidação dos seguros privados de saúde e na mesma década, a contrarreforma do Estado, aconteceu de maneira efetiva, principalmente a partir do governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que caracterizou a ruptura com o pacto entre as classes sociais, com muitos retrocessos para os trabalhadores, em especial, a sua saúde (TEIXEIRA, 2012).

Esse contexto contribuiu para o abandono e reforço do sucateamento da rede pública de saúde, bem como a contraposição dos preceitos constitucionais no tocante à seletividade da atenção, favorecendo de forma direta e indireta a instalação e expansão da rede privada no Brasil.

Nos anos 2000, concretiza-se a privatização por meio de terceirização e concessão de serviços estatais a empresas lucrativas e não lucrativas (ANDREAZZI, 2012). Assim, na orientação política do governo neoliberal, que assinala a manutenção da política macroeconômica, foram mantidas as políticas sociais de forma fragmentada e subordinadas a essa lógica.

Para Andreazzi,

A conjuntura neoliberal potencializa a corporatização do mercado privado de seguros e serviços de saúde, sob uma base anterior criada pelo próprio Estado de utilizar prioritariamente o setor privado como executor das políticas de atenção à saúde. A focalização não alcança, de fato, os chamados pobres, populações subproletárias e campesinato, de forma integral [...] e mantém-se o país como campo de medicamentos e equipamentos, seja pelos planos de saúde, seja pelo Estado. A oferta heterogênea de serviços é agravada pela concentração dos médicos nos centros mais ricos do país (ANDREAZZI, 2012, p. 49).

Essa realidade expressa o déficit de profissionais médicos nas regiões consideradas pobres do país, o que dentre outros fatores, inviabiliza o acesso dessa população aos serviços públicos de saúde. Diante disso, para autora citada acima,

[...] essa diversificação das interfaces público/privado traz novos impactos sobre o acesso da população à atenção de saúde e novos desafios para as políticas públicas. O excesso de oferta privada, principalmente de tecnologias de alto custo, aumenta o custo da atenção e não facilita o acesso para o usuário do SUS (ANDREAZZI, 2012, p. 49).

A afirmação da autora contradiz a Constituição Federal de 1988, que estabelece, no art. 196, o acesso da população aos serviços públicos de saúde na perspectiva da universalidade. Isso traz a discussão da política de saúde que, em

princípio, pauta-se pela inexistência, de fato, de um sistema único, e sim, de um sistema dual de saúde.

O público estatal prima pelo acesso universal, gratuito e igualitário na perspectiva do direito. No sistema privatista, o acesso à saúde acontece por meio da compra de serviços ou por inserção no mercado de trabalho (MENICUCCI, 2006). As duas formas divergentes de atuar na prestação de serviços de saúde estão vinculadas ao Ministério da Saúde: o SUS (setor público) e o privatista regulamentado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

Nessa lógica, a política de saúde brasileira não está fundamentada apenas em “duas formas de acesso, financiamento e produção de serviços de saúde, mas também de atuação governamental” (MENICUCCI, 2006, p. 60), o que significa a atuação do Estado no sentido de atender aos dois sistemas. No caso do serviço público, o Estado deve trabalhar na perspectiva de garantir o acesso constitucional aos serviços de saúde. No caso privatista, atua para regular o mercado e estabelecer a concorrência empresarial.

A dualidade nos serviços de saúde está relacionada à própria trajetória da política que, anterior à criação do SUS constituiu uma rede de serviços privados de fundo lucrativo.

Diante disso, o texto constitucional define a participação do setor privado no SUS de forma complementar, o que pressupõe a priorização da rede pública e a utilização da rede privada apenas na hipótese da insuficiência da primeira. (MENICUCCI, 2006).

O texto constitucional, no Título II do Sistema Único de Saúde, no segundo parágrafo estabelece: “A iniciativa privada poderá participar do Sistema Único de Saúde (SUS), em caráter complementar”. E a Legislação estabelece, no Capitulo II Da Participação Complementar

Art. 24. Quando as suas disponibilidades forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área, o Sistema Único de Saúde (SUS) poderá recorrer aos serviços ofertados pela iniciativa privada.

Parágrafo Único. A participação complementar dos serviços privados será formalizada mediante contrato ou convenio, observadas, a respeito, as normas de direito público.

Art. 25. Na hipótese do artigo anterior, as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos terão preferência para participar do Sistema Único de Saúde (SUS).

Ocorre que, na prática, os incentivos fiscais proporcionaram o desenvolvimento do mercado privado em detrimento do público. Esses incentivos possibilitaram a expansão de redes de produção de serviços e “o surgimento de instituições como a medicina de grupo, as cooperativas médicas e os sistemas de autogestão, vinculados a empresas que administram planos de saúde para seus empregados” (MENUCCI, 2006, p. 61). Nesse sentido, percebe-se que o incentivo estatal possibilita e favorece a expansão do setor privado, na perspectiva de atender aos trabalhadores das empresas, diminuindo, assim, a responsabilidade do Estado em garantir saúde para todos.

A escolha do Estado pela compra de serviços de saúde contribuiu para a expansão desse mercado. “Tal situação não permitiu que fosse desenvolvida a capacidade prestadora do governo, na medida em que significou a não decisão de ampliar a rede de serviços públicos” (MENUCCI, 2006, p. 62).

A decisão do Estado em optar pelos serviços privados de saúde demonstra o seu interesse em não cumprir com a legislação em vigor e de fortalecer o capital.

O desenvolvimento paralelo dos dois sistemas de saúde tem gerado a sobreposição do acesso privilegiado à assistência por meio de planos de saúde e outras diferenças, como “renda, ocupação e localização geográfica, que é reflexo da forma como se deu historicamente a expansão da cobertura privada e pública” (MENUCCI, 2006, p. 66).

Entre os privilégios, no plano privado de saúde existe a possibilidade de escolha do local para atendimento, incluindo o profissional e demais serviços. No sistema público, essa lógica não acontece. Os usuários são atendidos pelo sistema e encaminhados aos serviços por ele gerados, não tendo, portanto, alternativas.

Essas, dentre outras diferenças, têm gerado descontentamento na população, levando aqueles de melhores condições financeiras, a migrarem para os planos privados de saúde. Para Bravo e Marques,

O SUS vem se efetivando como espaço de disputa para os dois projetos. Por um lado, é nele que se materializa a luta por uma política de acesso universal. Por outro, na medida em que a dotação de verba pública para a saúde vem sendo restringida ano após ano, é reduzida a sua capacidade em promover o acesso universal (BRAVO; MARQUES, 2012, p. 206).

A demanda por serviços públicos de saúde tem aumentado devido à não cobertura dos planos privados em vários serviços. Nesse sentido, os usuários

pagam, mas não usufruem integralmente dos seus direitos. Fato que os leva a recorrer ao sistema gratuito, o que aponta para falhas daquele sistema.

Os baixos valores repassados pelo Estado têm contribuído para o desligamento da rede SUS de vários prestadores de serviços da rede privada, que preferem vender serviços a quem paga mais (MENUCCI, 2006). Essa realidade advém do investimento privado em tecnologia. Isso conduz à busca de uma maior remuneração pelos seus serviços, pois na lógica capitalista, o lucro é o seu objetivo principal.

Apesar dos entraves para a sua plena efetivação, o SUS vem conseguindo, dentro dos seus limites, oferecer o atendimento que lhe é exclusivo: repasse de medicamentos, utilização de Unidade de Terapia Intensiva (UTI), sem limite de prazos, encaminhamento de usuários para Tratamento Fora do Domicílio (TFD)5, cobertura de transplantes, maior número de unidades de saúde, além de outros (MENUCCI, 2006).

O acesso dos usuários aos serviços públicos de saúde consiste na preservação do texto constitucional, em que o Estado intervém no sentido de cumprir minimamente o seu papel. Para a ampliação desse direito é necessário que a sociedade organizada continue na luta pela garantia do projeto sanitarista em detrimento do privatista.

Contraditoriamente, o governo do ex-presidente Lula deu continuidade ao processo de privatizações. A proposta de reforma da Previdência Social, iniciada no governo FHC, foi concretizada no governo Lula como outra investida neoliberal, no sentido de diminuir a participação do Estado na sua responsabilidade pelos direitos sociais.

Destaca-se nesse período, a criação das Fundações Estatais de Direito Privado, que “abrange todas as políticas que integram a área social, consideradas atividades não exclusivas do Estado” (TEIXEIRA, 2012, p. 56) como saúde, educação, cultura, e outras.

5

Tratamento Fora do Domicílio (TFD), instituído pela Portaria nº 55 da Secretaria de Assistência à Saúde/MS consiste no encaminhamento de usuários para centros especializados quando o seu município de origem não disponibiliza o tratamento de saúde de que necessita. É necessário agendamento prévio de procedimentos (consultas). O TFD é responsável pelo custeio de passagens de ida e volta para o usuário e acompanhante (quando necessário) e ajuda de custo para hospedagem.

A intenção foi implantar a terceirização sob diferentes modalidades: Organizações Sociais (OSs), que consistem na prestação de serviços de ensino, pesquisa, desenvolvimento tecnológico, preservação do meio ambiente, cultura e saúde. Conforme estabelecido no projeto de reforma do Estado, “instituições públicas podem se converter em organizações privadas, sem fins lucrativos” (SILVA, 2010, p. 142). Isso significa que uma parte do orçamento pode vir da venda de serviços. No caso da saúde, tal organização pode vender serviços ao SUS, aos planos de saúde e para interesse particular; Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPS), que prestam serviços desde a assistência social até os de tecnologias alternativas e Organizações não Governamentais (ONGs), que realizam serviços sociais de forma filantrópica (SILVA, 2010).

Essas modalidades surgem como um “novo” modelo ou alternativas de gestão. Assim, Teixeira explicita:

A concessão de prestação dos serviços assistenciais é dirigida para os entes privados, públicos não estatais regidos pelo direito privado. Traz em seu bojo a parceria público-privado, na fase complementar da ideologia desestatizadora do capital monopolista, agora voltada para os serviços sociais. Ainda no plano ideológico, essas privatizações são justificadas pela “ineficiência do público” e pela necessidade de ser alternativas para a gestão. (TEIXEIRA, 2012, p. 60).

Tais organizações se diferenciam das instituições públicas, no sentido de que podem comprar medicamentos sem licitação, não se submetem à fiscalização dos Conselhos de Saúde, o quadro de pessoal é regido pela CLT, em substituição ao Regime Jurídico Único (RJU). São vinculadas ao Conselho de Administração, que possui caráter decisório e não permite a participação da população.

Os Conselhos e as Conferências de Saúde perderão com isso, o “significado social de construção democrática e não terão mais poder deliberativo sobre a diretriz da política de saúde local e nacional” (TEIXEIRA, 2012, p. 60), o que representa um grande retrocesso para o controle social.

Nos anos 2000, foram relevantes a convocação extraordinária da XII Conferência Nacional de Saúde (2003), a escolha pelo governo Lula, de um representante da Central Única dos Trabalhadores (CUT) para assumir a secretaria executiva do Conselho Nacional de Saúde e a criação da Secretaria de Gestão do Trabalho em saúde, com o objetivo de formar recursos humanos para a área. A medida tinha como intuito a ampliação dos conhecimentos e o compromisso dos

profissionais da saúde, no sentido de participar e fortalecer o Programa Humaniza SUS - Programa Nacional de Humanização, implantado em 2001, com o propósito de resgatar o respeito à vida e estabelecer um novo modelo de gestão na área da saúde. Estava focado, inicialmente, no desenvolvimento de experiências em hospitais públicos por meio do Programa Nacional de Humanização Hospitalar (PNHAH). Foi ampliado em 2003, com o eixo articulador de todas as práticas em saúde (COSTA, 2009).

Constitui-se como aspecto significativo dessa década o Pacto de Gestão estabelecido em 2006, que apresenta a ênfase na descentralização compartilhada entre as três esferas de governo (União, Estados e Municípios). Os pactos devem ser realizados sempre por consenso, nos Conselhos Estaduais de Saúde, e se encontram fundados na estratégia de racionalização dos gastos e otimização dos recursos. São pactos que buscam apenas resultados quantitativos (TEIXEIRA, 2012).

Na XIII Conferência Nacional de Saúde (2007), realizou-se a discussão a respeito da Fundação Estatal de Direito Privado. A Plenária foi contrária à instalação desse projeto. Esse posicionamento, todavia, não foi aceito pelo ministro da saúde, demonstrando banalização e desrespeito quanto às decisões do controle social. (BRAVO; MENEZES, 2013).

Contraditoriamente, o governo Lula investe no setor saúde, e ao mesmo tempo propõe a sua privatização. Nesse sentido, dando continuidade a esse projeto, a lógica neoliberal atinge os Hospitais Universitários (HUs). O presidente Lula, no último dia do seu segundo mandato (31/12/2010), sancionou a Medida Provisória (MP) nº 520, que autorizou a criação da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), de caráter público de direito privado, vinculada ao Ministério da Educação (MEC).

A discussão é anterior ao governo Lula, mas foi nessa gestão que a proposta se efetivou. Somado a outros interesses, tanto o Ministério da Saúde quanto o da Educação, concordaram com a concretização desse objetivo. O referido governo, pela força política junto ao Congresso Nacional, obteve a aprovação desejada.

A EBSERH foi criada oficialmente, no governo da presidenta Dilma Rousseff, pela Lei 12.550, em 15/12/2011. A justificativa para tal medida é que os HUs possuem financiamento inadequado, infraestrutura física precária, tecnologia desatualizada, insuficiência de recursos humanos e dificuldade de gestão. Situação

que poderia ser diferente se existisse interesse governamental no sentido de investir no setor público.

Diante desse contexto, para o enfrentamento do quadro instalado na área da saúde, os sindicatos, federações, profissionais da área, Conselhos de Saúde, promovem debates, seminários, audiências públicas, para discussão e tentativas de impedir que seja implantada a privatização da saúde (BRAVO, 2012).

Nesse sentido, foi realizado, em 2010, no Rio de Janeiro, o I Seminário Nacional de Saúde. Na oportunidade, foi criada a Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde, composta por vários segmentos organizados. Essa entidade, atenta às mudanças, busca percorrer o país com intuito de realizar encontros com trabalhadores das instituições de saúde, no sentido de envolvê-los na luta contra o desmonte do SUS e a consequente perda de direitos referentes aos serviços públicos de saúde.

Observa-se portanto, que a disputa entre os dois projetos de saúde continuou e se aprofundou nos governos supostamente democráticos. Significa dessa forma, que a sociedade deve estar atenta no sentido de impedir que as conquistas na área da saúde, dentre elas, o acesso universal sejam derrotadas pelo projeto hegemônico.

No documento Download/Open (páginas 57-64)