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O PODER DISCIPLINAR NA SOCIEDADE DISCIPLINAR

2.2. A Economia do Castigo

Ora, algumas das abordagens supracitadas possuem caráter fundamental no que diz res- peito à virada nas análises de Foucault acerca das questões que envolvem os sujeitos e suas rela- ções de poder. Afinal, suas análises ao longo dos anos 70 acerca das microestruturas que envol- vem o poder, características, táticas e estratégias, projetaram-no como filósofo de repercussão internacional. De forma breve, agora buscaremos apresentar e elucidar a mudança, o giro dado por Foucault neste curto espaço de tempo.

Ora, a virada no problema que envolve as estruturas do poder se dá na medida em que o olhar do filósofo desloca-se do âmbito do corpo; isto é da vigilância e punição da matéria, para o

âmbito da violação da ‘alma’, cuja coerção e violência que geram supressão da individualidade atingem a vontade e a mente pelo poder nelas milimetricamente infiltrado. Foucault constata que se as técnicas punitivas podem evoluir do mesmo modo que os seus pontos de aplicação, isso tem como consequência o fato de o sujeito resultar objetivado por práticas disciplinares, que caracte- rizam essa tecnologia geral de poder interrogada pelo filósofo e apontada na sua obra Vigiar e Punir como seu objetivo central.

Uma história correlativa da alma moderna e de um novo poder de julgar; uma genealogia do atual complexo científico-judiciário onde o poder de punir se a- poia, recebe suas justificações e suas regras, estende os seus efeitos e mascara sua exorbitante singularidade. (FOUCAULT, 1999a, p.23).

Para Foucault, o nascimento do indivíduo moderno e a emergência do conceito científico de sociedade formulado pelas ciências humanas são acontecimentos simultâneos. Em Vigiar e punir, Foucault apresenta a genealogia do indivíduo moderno como corpo dócil e útil, mostrando uma interação entre uma tecnologia disciplinar e as ciências humanas normativas. A proposta de Foucault, no entanto, é a de tratar os castigos e a prisão como uma função social complexa. Ora, ao tratar da questão da prisão, Foucault procura isolar o desenvolvimento de determinados meca- nismos de poder, de modo que a prisão se torna um problema tanto político quanto jurídico.

Foucault inicia sua análise descrevendo uma situação de condenação e suplício de Dami- ens, na França do século XVIII, e isso o leva a fazer uma reflexão sobre a penalidade do corpo. O que está por trás de tão tórrida penalização? O que queria demonstrar Foucault com um aconte- cimento tão pavoroso? Tudo concorria para dar exemplo à população. Cada criminoso punido era uma espécie de modelo a não ser seguido. Foucault acompanha a emergência e o desenvolvimen- to do entrecruzamento das relações de poder com o saber e o corpo, investigando e comparando objetivos e estratégias de três tecnologias de poder que se defrontam − o suplício, a reforma pe- nal e a prisão.

Em Vigiar e Punir, Foucault descreve como a multidão acompanhava a melancólica festa da punição que, mesmo horrenda, fazia com que o povo saísse às ruas para assistir ao tenebroso e macabro espetáculo a execução da pena. O castigo ao corpo marcava, assim, as relações de poder, mesmo que simbolicamente, numa época em que o crime era julgado por anciões e sancionado pelo soberano.

A justiça punitiva dos fins do século XVII e inícios do século XVIII traz no seu bojo o exercício da punição do corpo. É com a morte do indivíduo e através do suplício (forca, esquarte- jamento, guilhotina) que tinha uma função jurídica-política e, que era, portanto, um cerimonial para reconstituir, por um instante, a soberania lesada do rei, significando o retorno à ordem, pois cada crime cometido era como se o tivesse sido feito ao próprio rei.

Nota-se, porém, uma mudança na política punitiva: “a punição vai-se tornando, pois, a parte mais velada do processo penal [...] a execução da pena vai-se tornando um setor autônomo, em que o mecanismo administrativo desonera a justiça” (FOUCAULT, 1999a, p.13). Uma ques- tão o incita: por que a prisão se impôs, de forma contundente e rápida, como a principal forma de penalidade? Um dos objetivos de ‘Vigiar e Punir’ é precisamente o de esclarecer essa rápida substituição de programas punitivos variados pelo encarceramento, bem como sua aceitação sem dificuldades, a partir do século XIX, como pena "natural" e "indispensável”. O corpo encontra-se em posição de instrumento ou de intermediário; qualquer intervenção sobre ele pelo enclausura- mento, pelo trabalho obrigatório visa privar o indivíduo de sua liberdade considerada ao mesmo tempo como um direito, um bem. Segundo essa penalidade, o corpo é colocado num sistema de coação e de privação, de obrigações e de interdições. O sofrimento físico e a dor do corpo não são mais os constitutivos da pena (Ibidem, p.14). Agora a realidade a ser punida não é mais uma realidade palpável, é agora incorpórea, mas é também algo que toca a fundo o ser humano, pois é a sua liberdade, o seu direito, o seu bem que lhe será tirado.

Foucault nos fala de uma possível “humanização das penas”, pois o “corpo supliciado é escamoteado: exclui-se do castigo a encenação da dor. Penetramos na época da sobriedade puni- tiva” (Ibidem). Portanto, há algo que é certo:

Em algumas dezenas de anos, desapareceu o corpo supliciado, esquartejado, amputado, marcado simbolicamente no rosto ou no ombro, exposto vivo ou mor- to, dado como um espetáculo. Desapareceu o corpo (a parte visível) como alvo principal da repressão penal (FOUCAULT, 1999a, p.12).

Os mecanismos punitivos adotam um novo tipo de funcionamento que os levam a reduzir o suplício. Há um afrouxamento da severidade penal no decorrer dos últimos séculos, levando- nos a perceber que isso se dá em menos de cem anos. Com isso não se quer afirmar que o poder sobre o corpo se extinguiu, muito mas, ao contrário, dominou-o ainda mais. O que surge em meio a esta transformação é o sujeito sujeitado que rouba a cena do sujeito criminoso, muito oneroso

para a justiça punitiva da época. Há, portanto, uma troca de atores nesta peça teatral que é a justi- ça penal.