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O Saber como Instrumento de Dominação

O poder é produtor de saber, de conhecimento. Por seu lado, também o saber engendra poder, produz o que Foucault chama de efeitos de poder. É preciso ter em mente que Foucault faz uma distinção entre saber e conhecimento.

Conhecimento corresponde à constituição de discursos sobre classes de objetos julgados cognoscíveis, isto é, à construção de um processo complexo de raciona- lização, de identificação e de classificação dos objetos independentemente do sujeito que os apreende. Já o saber designa, ao contrário, o processo pelo qual o sujeito do conhecimento, ao invés de ser fixo, sofre uma modificação durante o trabalho que ele efetua na atividade de conhecer (REVEL, 2005, p.77).

Quando Foucault fala de uma relação entre saber e poder, ele não tem em mente algo semelhante a um modelo marxista. Não pretende efetuar uma análise da ‘ideologia’11. O que Foucault deseja examinar é como o próprio poder constitui o saber e se constitui como saber. Do mesmo modo, quer verificar de que maneira, como objeto, o próprio saber constitui relações de poder. O poder cria conceitos e fabrica, segundo Foucault, um saber imprescindível a seu exercí- cio e funcionamento. O saber, por sua vez, estabelece o campo onde o poder deverá ser exercido e mantido. Como nos afirma o próprio Foucault:

Temos antes que admitir que o poder produz saber (e não simplesmente favore- cendo-o porque o serve ou aplicando-o porque é útil); que poder e saber estão di- retamente implicados; que não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tem- po relações de poder. Essas relações de ‘ poder-saber’ não devem ser analisadas a partir de um sujeito do conhecimento que seria ou não livre em relação em ao sistema do poder; mas é preciso considerar ao contrário que o sujeito que conhe- ce, os objetos a conhecer e as modalidades de conhecimentos são outros tantos efeitos dessas implicações fundamentais do poder-saber e de suas transforma- ções históricas. Resumindo, não é a atividade do sujeito de conhecimento que produziria um saber, útil ou arredio ao poder, mas o poder-saber, os processos e as lutas que o atravessam e que o constituem, que determinam as formas e os campos possíveis do conhecimento”. (FOUCAULT, 1999b, p.27).

Segundo Judith Revel,

O saber está essencialmente ligado à questão do poder, na medida em que, a par- tir da idade Clássica, por meio do discurso da racionalidade vai-se efetuar uma ordenação geral do mundo, isto é, dos indivíduos, que passa, ao mesmo tempo, por uma forma de governo (Estado) e por procedimentos disciplinares. [...] Ora o poder não pode disciplinar os indivíduos sem produzir igualmente, a partir deles e sobre eles, um discurso de saber que os objetivam e antecipa toda experiência

11 Como diz Marx na Ideologia Alemã, um processo de mascaramento que oculta a origem material e histórica das

idéias; uma representação invertida, ilusória, do processo real que apresenta a aparência como sendo a própria reali- dade. O que faz com que a ideologia não tenha uma função de conhecimento, mas, fundamentalmente, uma função de adaptação social, de organização das relações sociais entre os indivíduos. No entanto, Foucault se mostra cautelo- so com o uso da noção de ideologia na descrição da história do saber e do exercício do poder. (Cf. FOUCAULT, 2004a, p.07)

de subjetivação (REVEL, 2005, p.77-78).

A análise genealógica situa o saber, tal como o poder, na ordem do acontecimento12, pro- curando compreendê-lo em sua materialidade, como prática, como peça de um jogo político. Dis- tancia-se tanto do modelo que concebe o saber como uma idéia, pensamento ou fenômeno de consciência dependente da atividade de um sujeito de conhecimento, quanto da concepção de que é a expressão imediata de determinadas condições econômicas, seu “reflexo”. Um dos alvos de ataque da perspectiva genealógica é a tradição humanista, que difundiu a ilusão da incompati- bilidade entre saber e poder:

Admite-se, e isto é uma tradição do humanismo, que a partir do momento em que se atinge o poder, deixa-se de saber: o poder enlouquece, os que governam são cegos. E somente aqueles que estão à distância do poder, que não estão em nada ligados à tirania, fechados em estufas, em seus quartos, suas meditações, podem descobrir a verdade”. (FOUCAULT, 2004a, p. 141).

O que Foucault pretende é, justamente, tornar mais forte a articulação, a cumplicidade entre saber e poder. Sem os identificar ou reduzir um ao outro, considera que entre eles existe uma relação de imanência (focos locais de poder-saber) e não de exterioridade (Cf. FOUCAULT, 1999b, pp. 93-94). Neste sentido, o poder não apenas se utiliza de um saber ou o solicita para a eficácia de seu exercício: ele cria domínios de saber que não só fazem aparecer novos objetos, conceitos e técnicas, como, também, novas formas de sujeitos de conhecimento.

Enfim, para Foucault, todo saber engendra novas relações de poder, produzindo efeitos de dominação. Não há saber neutro, fruto de uma pesquisa livre e desinteressada: ele é sempre polí- tico, não apenas no sentido de que dele se poderiam deduzir conseqüências na política, mas por- que não há saber que não encontre suas condições de possibilidade em relações de poder. Dessa forma, Foucault coloca-se à margem da distinção entre ciência e ideologia. Esta última noção é

12 Por acontecimento, Foucault entende, antes de tudo de maneira negativa, um fato para o qual algumas análises

históricas se contentam em fornecer a descrição. O método arqueológico foucaultiano busca, ao contrário, reconstitu- ir atrás do fato toda uma rede de discursos, de poderes, de estratégias e de práticas. [...] Entretanto, num segundo momento, o termo ‘acontecimento’ começa a aparecer em Foucault de maneira positiva, como uma cristalização de determinações históricas complexas que ele opõe à idéia de estrutura. [...] O programa de Foucault torna-se, portanto, a análise de diferentes redes e níveis aos quais alguns acontecimentos pertencem. Essa nova concepção aparece, por exemplo, quando ele define o discurso como uma série de acontecimentos colocando-se o problema da relação entre os ‘acontecimentos discursivos’ e os acontecimentos de uma outra natureza (econômicos, sociais, políticos, institu- cionais) (REVEL, 2005, p.13)

questionada por ele, pois, concebida enquanto forma de erro, de ilusão, está sempre em oposição virtual a algo que seria a verdade. (Cf. MACHADO, 2004, pp. 17-19). Segundo Foucault:

Verdade é o conjunto segundo o qual se distingue o verdadeiro do falso e se a- tribui aos verdadeiros efeitos específicos de poder (Cf. FOUCAULT, 2004a, p.13). É, também, o conjunto das regras dos procedimentos que permitem pro- nunciar, a cada instante e a cada um, enunciados, que são considerados como verdadeiros. Os tipos de discurso que elas acolhem e fazem funcionar como ver- dadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros ou falsos, a maneira como uns e outros são sancionados; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que tem o poder de dizer aquilo funciona como verdadeiro (Cf. RE- VEL, 2005, p. 86).

Além disso, supõe um sujeito de conhecimento dado definitivamente, e de direito, aberto a estabelecer uma relação com a verdade, desde que não seja perturbado, obscurecido pelas suas condições de existência. Para Foucault, repetimos, todo conhecimento, seja ele científico ou ideo- lógico, é político. (MACHADO, 2004a, p. XXI). Todo saber (conhecimento, ciência) é político, porque todo saber tem sua gênese em relações de poder.

CAPITULO II